terça-feira, dezembro 09, 2008

Crônica do desejo

Nada melhor do que o passar do tempo para apontar a boa literatura. Um livro que apareceu nas livrarias brasileiras há algumas semanas foi editado pela primeira vez em 1928, na Áustria; chama-se Crônica de uma vida de mulher, de Arthur Schnitzler. A obra do autor vienense, polêmica à época, hoje é considerada literatura maior e, traduzida, freqüenta vários idiomas. Ele diplomou-se em medicina e especializou-se em psiquiatria, mas dedicou a maior parte da vida à carreira de escritor.
Schnitzler coloca como cenário os últimos anos do Império Austro-Húngaro, faltando pouco para a eclosão da Primeira Guerra Mundial. Assim como vemos os nobres em decadência, também há a burguesia que, sem escrúpulo, tenta aproveitar o máximo da situação. Do mesmo modo, não deixam de faltar os pobres, a quem nada resta além de uma vida miserável e sem perspectiva. Mas o romance derrama suas luzes sobre outra questão ainda mais explosiva, tabu não só no meio em que o autor viveu mas também na maioria dos lugares: o problema da realização do desejo. Tanto mais quando a personagem principal é uma mulher. O mesmo assunto será estudado por Freud, o criador da psicanálise, que inclusive foi amigo do escritor.
Thesere Fabiani, uma moça de dezesseis anos, tem a mãe de ascendência nobre, e o pai, Hubert Fabiani, militar. No início do romance o autor apresenta o processo de desagregação familiar, que acontece a partir da aposentadoria do tenente-coronel e da conseqüente transferência da família de Viena para a então pequena Salzburg. O pai logo se entedia do lugar e tem planos grandiosos para voltar à carreira militar. Mas isso é entendido como insanidade pelas autoridades. Ele é internado num manicômio local e dia-a-dia seu estado piora.
A mãe, quase indiferente à situação, refugia-se na leitura de folhetins e em reuniões consideradas suspeitas pela medíocre sociedade local. O irmão de Therese, Karl, parte para a Viena com o objetivo de estudar medicina, não mais retornando. A jovem torna-se alvo de galanteio de um oficial, de quem ela inicialmente gosta, mas depois se decepciona; a seguir, de um conde, para quem a mãe tenta atraí-la devido a interesses financeiros. Therese então parte sozinha para Viena. Na capital, tenta estabelecer-se como preceptora de crianças e adolescentes. O autor nos conduz pelo submundo da vida vienense e por todo o tipo de lar, desde os mais pobres até os dos banqueiros e aristocratas. Therese tem esperança nos homens, deseja alguém que possa torná-la feliz. Mas num trânsito constante, eles fazem-lhe promessas, relacionam-se com ela, para logo depois desaparecerem.
No decorrer da narrativa, o autor esquadrinha quase todo o tipo de comportamento humano, tanto relativo aos homens por quem Therese se apaixona, como também em relação às pessoas para quem ela trabalha. Vemos um fervilhar de almas e, ao mesmo tempo, toda uma trama de artimanhas criadas para ocultar libidinagem e traições; o texto soa como denúncia à hipocrisia familiar.
Por mais de trezentas páginas, vemos Therese – não por sua vontade – trocar constantemente de patrões e a acompanhamos em suas constantes andanças pela cidade e arredores. As personagens são inúmeras e às vezes é possível vê-las reaparecer em situações novas.
Crônica de uma vida de mulher foi publicado dois anos antes da morte do autor, apresentando-o em plena maturidade artística. Schnitzler já se tornara um escritor consagrado devido ao sucesso de suas peças de teatro, contos e novelas. Por vezes é possível perceber um certo exagero na criação de peripécias. O fato, no entanto, serve como contraponto à referência aos folhetins escritos pela Senhora Júlia Fabiani-Halmos, mãe de Therese, que de tanto viver imersa nesse tipo de literatura, acaba tornando-se uma escritora de certa notoriedade.
Outra observação interessante é a seguinte: ao retratar na ficção o ser humano e suas pulsões, assim como teorizaria Freud na psicanálise, Schnitzler não poupa ninguém, o que há de mais recôndito na natureza humana vem à tona, impossível de ser recalcado.
Eis uma passagem do romance:
“Therese esperava na entrada do parque central da cidade. Do outro lado, em frente a um certo Café da Ringstrasse, os hóspedes estavam sentados ao ar livre, tomando sol. Uma criança pálida ofereceu violetas a Therese para que as comprasse. Ela pegou um ramalhete. Um passante sussurrou algo ao seu ouvido, um convite totalmente desprovido de papas na língua e em palavras tão desavergonhadas que ela ousou se virar. Ficou vermelha como sangue, mas não apenas por causa da fúria. Por acaso ela não era louca de viver como uma escrava?... Como uma freira? Como todos olhavam para ela! Alguns se viraram para ela; um deles, um homem belo e elegante, passou por ela um punhado de vezes, e parecia esperar para ver por quanto tempo ela ainda permaneceria sozinha. Talvez fosse bom que Kasimir não viesse. Um pobre-diabo... E um tolo ainda por cima. E justamente ele? Mas por quê? Ela é que tinha o poder de escolha.”
Nos dias de hoje, uma reflexão desse tipo, mesmo partida de uma mulher, não causaria estranheza. Mas o livro é da primeira metade do século passado, e a narrativa ambientada há exatamente cem anos.

Crônica de uma vida de mulher
Arthur Schnitzler
Tradução de Marcelo Backes
Ed. Record, 398 páginas

terça-feira, dezembro 02, 2008

Errâncias

Na última sexta-feira de novembro, dia 28, Vera Lyrio lançou seu segundo livro de poemas, Errâncias, na Fafima, em Macaé. Transcrevo o pequeno prefácio, que é de minha autoria.

Quem se dedicar à leitura dos poemas de Vera Lyrio, só terá a ganhar. Ao trabalhar a sonoridade das palavras, a construção original do verso e a força fundadora da metáfora, a poeta atinge, neste Errâncias, plena maturidade artística e filia sua obra ao que há de mais universal na tradição lírica de língua portuguesa. O perfeito trabalho estético com a linguagem não é dom ao alcance de qualquer autor. Aqui, porém, ela nos presenteia com versos que mostram a premência e permanência dessa arte que se mantém viva, a poesia. O simbolismo presente em muitos dos seus poemas possibilita pleno vôo de significantes e significados, permitindo que nomeemos a escritura poética como o lugar da transgressão. Essa arte difícil de se lidar, chamada literatura, tantas vezes dita superada, tantas vezes dada como morta pelo avanço de uma civilização altamente tecnológica, mostra pelas mãos da escritora infinitas possibilidades.
Versos como “Nas ruas perdidas do nada / versos infinitos / nítido azul... “Ergo os olhos / Já não estás / Vais longe! Qual tropeiro vagante / A desenterrar tesouros!”, indicam que, na verdade, para o verdadeiro artífice da palavra, o tesouro é o alcance do trabalho perfeito. A meta-poesia também comparece em seus versos: “...o encantador de palavras / Ouve o chamado das estrelas / Aconselha-se com elas / Desnudar-se é a palavra de ordem / Nesse processo mágico / Onde o metafísico se desenrola / Em transcendentes novelos / Violinos admiráveis”. E não está ausente a voz dos desterrados, deserdados, perdidos em terra alheia: “Basta-me um pouco de banzo / para ouvir o lamento das caravelas que partem / para que relembre as glórias tantas vezes cantadas / A despedida no porto, a viuvez lusitana / ... O som nítido das correntes / misturados à dor e à mágoa dos cativos / Ao martírio dos desterrados / Que abarrotam navios negreiros / Arrastados à terra estranha...”.
A literatura só tem a ganhar com versos desse quilate, versos bordejados pela dor, pelo desejo de trazer à tona uma vivência não só de náufragos, mas também daqueles que conseguem aportar.
Essa escritora, que vive a sua arte quase de maneira epidérmica, além do trabalho perfeito com sons, sentidos e significados, sabe também lidar com o silêncio e fazer dele um dos instantes supremos da arte poética: “Palavras sangram / Enfim, os filhos dos deuses / profetas de um tempo / Essência desperta entre as metáforas / Misturados à noite e ao dia / À alegria e ao pranto dos homens? No silêncio imóvel das páginas.”

Quem desejar comprar o livro, é só entrar em contato com a autora: veralyrio@uol.com.br; ou pelo telefone: (22) 27629081.

quinta-feira, novembro 27, 2008

A cafeteria
“Vem, vem, já não agüento mais, me aperta, me beija, tira minha roupa.”
Ainda entrávamos pelos corredores do edifício. Às vezes, junto à escada, queria que eu a agarrasse e fizesse sexo com ela ali mesmo.
“Vamos pra dentro, aqui é perigoso, pode aparecer alguém”, eu dizia.
“Me come aqui, por favor, estou morrendo de desejo.”
Lembro uma vez em que entrou nua em casa. Fiquei temeroso de sermos surpreendidos enquanto ainda íamos no elevador.
No momento de extrema excitação, ela gritava: “vou gozar, vou gozar, não agüento mais, estou pegando fogo.”
Depois que gozava, encolhia-se, ria e me beijava. Não deixava de demonstrar então algum acanhamento. Só então se dava conta de que não devia ficar nua por mais tempo. Procurava suas roupas. Se demorava a encontrá-las, seu vexo aumentava.

A cafeteria era um lugar quase silencioso às quatro da tarde. Ali, eu costumava tomar café enquanto lia algum livro. Outras pessoas entravam, faziam seus pedidos, mas eu não olhava o que acontecia em volta. Só notei aquela fogosa garçonete na terceira ou quarta vez em que estive lá. Ela sorria e procurava encontrar meu olhar de cumplicidade. Mas eu estava perdido em meio à leitura.
“O senhor quer mais alguma coisa?”
“No momento, não”, eu respondia sério, para depois reparar que ela se dirigira a mim com intuito de estabelecer contato.
Num dos dias seguintes, colocou uma das mãos sobre meus ombros. Reparei que se insinuava. A partir daí passei a observá-la melhor.
Ao me ver, transpirava satisfação. Vinha rápido. Tentava algum diálogo. Deixei então um cartão.
Em uma noite, telefonou.

Quando encontrei com ela pela primeira vez, comportou-se com o máximo de recato. Pensei aonde levá-la. Foi ela que sugeriu:
“Sabe aquele restaurante no Flamengo etc...”
Tínhamos marcado às nove. Conversamos enquanto andávamos pela rua principal. Depois entramos num táxi. Permanecemos no restaurante até depois da meia-noite. Ela não bebia e, naquela noite, tomei apenas água mineral.
Ela disse que morava num apartamento pequeno, no Centro.
“Eu morei por muito tempo em Campo Grande, mas é muito longe. Divido um apartamento na rua do Resende com uma amiga.”
Tomamos de novo outro táxi. Quando pediu para o motorista parar junto a um prédio alto, de janelas pequenas, minha intenção foi continuar dentro do carro e seguir para casa. Mas ela me tentou.
“Você não vai saltar?”
“Receio que não vou encontrar condução, moro em Santa Teresa, acho melhor seguir em frente.”
“Ah, fica mais um pouquinho comigo...”, pediu numa voz que era um doce.
Acabei por aceitar.
“Você não falou que mora com uma amiga?”
“Moro.”
“Então, como quer que eu suba?”
“Acho que hoje ela não vai dormir em casa.”
Entendi seu desejo.
Entramos no prédio e subimos. Havia um porteiro que tinha cara de aborrecido. Mas quando a cumprimentou, deixou escapar um ligeiro sorriso. Quanto a mim, pareceu não dar por minha existência.
O apartamento ficava no décimo andar. Era pequeníssimo: apenas um quarto e um banheiro minúsculo. Mas era decorado com uma certa graça. Dava para os lados da Central do Brasil. O que tinha de pequeno contrastava com a vasta paisagem do centro do Rio, possível de ser vista pela única janela. Muitos prédios alternavam-se, como que disputando altura e espessura. O centro à noite tem um quê de soturno. Virei-me para os lados da rua dos Inválidos; era possível ver além da Lapa alguns prédios do centro financeiro, tinham quase todas as janelas apagadas, sobre os mais altos havia uma espécie de torre com algum tipo de iluminação. Pensei nos escritórios vazios, nos corredores quase fantasmagóricos àquela hora. Ao voltar-me procurando por Lara, reparei que ela estava nua.

Durante toda a semana ela quis que eu encontrasse com ela. Às vezes passeávamos pelas ruas próximas; outras, entrávamos em algum pequeno bar, na Lapa. Voltamos ainda uma vez ao restaurante do Flamengo.
O que Lara tinha de bom era o ardor na hora do sexo. Pouco conversava. Parecia não ter sobre o que dizer. E quando tinha era para falar sobre alguma coisa que uma ou outra amiga havia comprado. Quando eu ia ao seu encontro no dia seguinte levando de presente o objeto de que falara na véspera, ela só faltava pular de emoção. Me beijava muitas vezes e não queria me soltar.
Passei a freqüentar seu apartamento todas as noites. Comecei a desconfiar que sua amiga não existia. Não me custou a descobrir, por meio de uma gorjeta ao mesmo porteiro, que ela tinha um caso com um homem estranho, alguém que vivia da contravenção.
Desapareci então da cafeteria. Sabia o que aquele relacionamento podia me custar.
Num domingo, fui à praia. Minha intenção não era o banho de mar. Queria caminhar um pouco, relaxar. Estava cansado de tanto ler e escrever. As revistas me cobravam os artigos; as editoras, os livros. Não podia descumprir os contratos. Caminhava pelo calçadão de Copacabana, creio que ia pelo Posto 2 quando ouvi alguém chamar meu nome. Olhei. Era Lara.
Quis saber por que eu desaparecera. Disse que me procurara por toda parte, que estava sofrendo por causa da minha ausência.
Respondi qualquer coisa apressado e quis logo me desvencilhar dela. Olhei para um lado e para o outro, temia me deparar com o tal contraventor.
“Você está esperando alguém?”, ela quis saber.
“Não.”
“Por que está olhando assim, pra lá e pra cá?”
“Não sei, acho que é alguma mania” respondi já de saída.
“Ah, fica comigo, prometo uma surpresa, você não vai mais querer sair de perto de mim depois disso.”
“Surpresa; que surpresa?”, repeti.
“Fique e verá.”
Quis inventar uma desculpa, mas ela se mostrou tão afetuosa que acabei cedendo. E, além disso, vestia um biquíni mínimo.
Achou um local para sentarmos. Alugou um guarda-sol e duas cadeiras de praia. Colocou a sua bem junto a mim e ficou me acariciando o peito com uma das mãos.
Depois de alguns minutos, sugeriu.
“Vamos tomar um banho de mar?”
Eu não queria, mas ela insistiu, me beijou, me prometeu mil carícias. Acabei cedendo.
Entramos n’água e ficamos num pedaço em que o mar estava calmo.
Ela me abraçou e falou:
“Passa a mão pela minha cintura.”
Fiz o que pediu. Descobri que ela estava sem a parte de baixo do biquíni.
“Você está nua?”, foi a minha pergunta óbvia.
“Estou.”
“E onde está seu biquíni?”
Foi então que ela me mostrou uma pulseira de pano.
“Quer pra você?”, tirou no braço e prendeu num dos meus pulsos.
Namoramos ali durante quase uma hora.
Quando me dei conta de que o local estava cheio de gente, disse:
“Não é melhor você se vestir?”
“Ainda não”, respondeu resoluta.

Até hoje não consegui me livrar dela. Confesso que sua ousadia e seu ardor me deixam louco. Voltei a freqüentar a Cafeteria. Passo boa parte das tardes lá. E, quando pensou no seu protetor, sou assaltado por um ligeiro tremor. Mas prefiro acreditar que os porteiros de edifício, principalmente os noturnos, também têm seus personagens de ficção.

terça-feira, novembro 04, 2008

O flâneur de Walter Benjamin pelas ruas de Copacabana: João Antônio
João Antônio retrata em seus contos o homem comum, o homem do povo, aquele sobre quem pesa o maior fardo. Na história da literatura, a presença do homem do povo como protagonista é coisa recente. As artes de modo geral e, no específico, a literatura sempre comportaram apenas heróis oriundos de casas reais, e de preferência do sexo masculino. Seus feitos eram considerados grandiosos, mas, se eram assim classificados, o fato não se dava porque o homem comum seria incapaz de realizá-los, mas porque os heróis descendiam de “dinastias” de longa estirpe. As ações levadas a cabo por eles não deixavam de render fama para si, mas, ao mesmo tempo, conduziam os que lhe estavam próximos a uma certa distância do perigo.
Podemos exemplificar esse tipo de herói voltando à Antigüidade Clássica. Ali, um Aquiles ou um Ulisses aparecem com coragem e força descomunais, capazes de levar avante ações heróicas. Por que essas empreitadas só eram possíveis a eles? Talvez devido à origem desses homens. Nesse tempo, na representação artística, quem os pratica é alguém de origem nobre.
Durante muitos séculos, o herói foi, de modo geral, alguém dessa espécie, um homem de origem nobre, um rei, um príncipe, ou alguém ligado à casa real. Na modernidade, esse tipo de herói entra em decadência. Não é difícil saber o motivo. A burguesia inicialmente tem o poder econômico e, algum tempo depois, o poder político. Como continuar colocando alguém da nobreza no papel de herói se os nobres estavam em derrocada?
A Antigüidade Clássica, então, jazia enevoada num passado distante e idealizado; a nobreza do momento, em crise quase permanente.
Num primeiro momento em que se prenuncia a modernidade, logo após o Renascimento, já se antevê as engrenagens assumindo o papel que caberia ao herói. O mundo começa a mover-se em direção à técnica; quem a domina tem predominância sobre os outros. Embora algumas realezas se beneficiem da expansão marítima, logo se vê que seus domínios não durarão. Com a expansão comercial, lucra a burguesia, mestra na arte do comércio.
No final dos setecentos, levada a cabo a Primeira Revolução Industrial, já, em definitivo não há lugar para o herói. Por isso o vemos representado a princípio como um herói do passado. No presente, a quem caberá esse papel? Quem teria a força de um Hércules, a astúcia de um Ulisses, ou a habilidade de Aquiles?
Talvez tenha chegado a hora do homem do povo. Apesar da vida medíocre, vida de exploração a que é submetido, sem mesmo tempo para o descanso e com a saúde sempre debilitada, ele é o único que tem a força para levar o mundo adiante, mesmo que de forma não consciente, mesmo que aderindo ou não, já no final do século dezenove, ao marxismo.
Walter Benjamin observa essa questão e vai estudar esse tipo de herói no texto “A modernidade”, onde aborda a obra de Charles Baudelaire. Vejamos alguns recortes do que diz o filósofo a respeito desse herói:
O herói é o verdadeiro objeto da modernidade. Isso significa que, para viver a modernidade, é preciso uma constituição heróica. (p.73)
Baudelaire [...] reconhece no proletário o lutador escravizado.(segundo Baudelaire, apud Benjamin) é impossível não ficar emocionado com o espetáculo dessa multidão doentia, que traga a poeira das fábricas, inspira partículas de algodão, que se deixa penetrar pelo alvaiade, pelo mercúrio e todos os venenos utilizados na fabricação de obras primas. (p.73)
Aquilo que o trabalhador assalariado executa no labor diário não é nada menos do que, na Antigüidade, trazia glória e aplauso ao gladiador. (p. 74)
O herói é o verdadeiro objeto da modernidade. Isso significa que para viver a modernidade, é preciso ter constituição heróica. (p. 73)
Os poetas encontram o lixo da sociedade nas ruas e no próprio lixo o seu assunto heróico. (p. 78)
Tais citações nos bastam para que possamos estudar um pequeno aspecto da obra de João Antônio. Escolhemos para esse fim o livro em Ô Copacabana!, sobretudo o trecho em que privilegia a então galeria Alaska, páginas 39 a 50.
O bairro, um dos mais característicos do Rio, é retratado pelo autor de Malagueta, Perus e Bacanaço como um bairro onde se mistura todo tipo de gente. A galeria, citada no conto, até os anos de 1970 era um conglomerado de comércio a varejo, bares e boates. O freqüentador do local de modo geral era o homem ou a mulher do povo, ávido por algum tipo de prazer ou divertimento. Dentre esses predominava um número muito grande de malandros, vadios, pequenos aproveitadores, homossexuais masculinos e femininos etc.
Eis como João Antônio caracteriza o bairro, a galeria e as personagens:
[...] esta hora cinza, chumbo carregado, hora parada, neutra, a que os boêmios, os pederastas, os artistas da noite, as mulheres e seus cáftens, as curriolas da galeria chamam de rabo da manhã.
Sete da noite, quando Copacabana troca de mão, num golpe, na muda da turma de garçãos, barbeiros, balconistas, motoristas de táxi, botequineiros, e o resto dos serviçais, a luz elétrica acende o olho diferente, vesgo da noite na galeria.
A moçada sai da Zona Norte ou dos subúrbios lá longe, toma suas luzes como modelo de vanguarda no Rio. No bairro se sabe vestir bem, comer bem, beber o melhor. E os meninos, cabeça cheia, começam a descer dos ônibus xexelentos, vindos do outro lado da cidade, o bravo e esquecido, onde moram três quartos das gentes do Rio de Janeiro. Sem praia e sem recreio. A meninada principia na galeria Alaska, certa de que com o físico, juventude, gingas, bossa, conseguirá o melhor em mulheres, boates, facilitações e exuberância.
O trecho começa com o amanhecer no bairro, o conto descreve os primeiros empregados que chegam dos subúrbios distantes, o caminhão com o entregador de leite, os bares iniciando o expediente, as lojas se abrindo, o acordar dos moradores e também os vagabundos que vivem do esforço alheio. O autor observa a vida dos trabalhadores da galeria: zeladores, seguranças, manicuras, copeiros, barbeiros, vendedores ambulantes etc, como também a dos moradores do prédio acima da galeria, apelidado de balança; estas pessoas fazem o papel de classe média, mas na verdade vivem em dificuldades, cuidando para que a máscara da aparência não descole. A vida marginal não é desprezada. Seres humanos emigrados de bairros distantes, que viverão às custas de alguém, muitas vezes mesmo de modo humilhante, apenas para livrar-se do modelo de vida provinciano e sem perspectiva da Zona Norte, ou da Baixada Fluminense.
Todos esses personagens são tratados senão com simpatia, ao menos como seres capazes de direcionar a própria existência. João Antônio não os julga. Apesar de rotulá-los, não os condena dentro do moralismo predominante, mesmo no momento em que o esforço de cada um deles na luta pela sobrevivência redunde em fracasso.
O caráter heróico desse flâneur da pós-modernidade está em demonstrar força suficiente para o que der e vier, a troco de que consiga ascender socialmente, ou ao menos viver de modo melhor do que vivia outrora. Copacabana está mais próxima de uma Nova York, uma Londres, ou uma Paris, do que da localidade distante de onde provém esse herói, que não sucumbe por antecipação.
O homem comum anda pelo bairro, observa as mulheres, olha as vitrinas, procura oportunidades. Alguns se agarram ao pequeno emprego, outros biscateiam para, durante a noite, escapar em uma boemia que há de recompensar o esforço. Tudo em troca de uma vida que lhes afigura senão heróica, ao menos uma vida de Zona Sul, local badalado, centro de poder econômico e de emancipação social, ao menos em teoria. O simples cidadão sabe construir abstrações.
João Antônio poderia ser esse flâneur que Benjamin retrata na modernidade baudeleriana. Não estaria deslocado no tempo nem no espaço, porque observa a decadência de um sistema e também constata que, na verdade, o lugar do herói continua vago; e se por acaso em algum momento o homem do povo o preenche é através das mãos do artista que o transforma em ser que resiste, ao menos nessa arte de representação chamada literatura.
Referências bibliográficas:
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas III – Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. Tradução de José Carlos Martins Barbosa e Hemerson Alves Baptista. São Paulo: Brasiliense, 1994.
ANTÔNIO, João. Ô Copacabana! Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.

quinta-feira, outubro 16, 2008

Os filhos de Machado de Assis

Na comemoração do centenário de morte de Machado de Assis, observa-se uma enxurrada de lançamentos a respeito da obra e da vida do autor. Apesar do grande número de publicações, tem-se discutido nos eventos universitários que pouca coisa nova tem vindo à luz. As editoras, ao mesmo tempo, aproveitam para relançar em novas edições e formatos os romances, contos, poemas e a obra crítica daquele que foi um dos maiores escritores em língua portuguesa. Outro tipo de publicação, no entanto, também ocupa as prateleiras e estandes das livrarias: a reescrita de livros de Machado sob outras perspectivas, ou mesmo a retomada de determinadas personagens machadianas, que reaparecem em novas situações.
Um dos livros que surge nessa esteira é A filha do escritor, de Gustavo Bernardo. Temerosa empreitada a retomada de uma personagem feminina de Machado de Assis e a sobrevida que ela recebe na contemporaneidade. Trata-se de Lívia, heroína de Ressurreição, primeiro romance de um Machado ainda em início de carreira, mas em cuja narrativa já cintilam as características básicas que irão brilhar de modo mais intenso nos romances que surgirão a partir da década de 1880. Gustavo, professor de literatura em universidade pública, já há muito na estrada, inclusive com publicações teóricas sobre a matéria, é de longa data um bom ficcionista. Seu livro mostra-se inicialmente interessante e até capaz de empolgar o leitor. Deseja-se saber o que acontecerá àquela adorável mulher que chega a um “estabelecimento” em Itaguaí e diz que precisa hospedar-se ali porque marcara um encontro com o próprio pai. Nada haveria de estranho se o pai da jovem mulher não fosse Machado de Assis. Sim, é isso que acontece. Lívia, a personagem principal de Ressurreição, surge cem anos depois da morte do autor, para esperá-lo. Traz junto a si um filho, que apenas ela vê, e o estabelecimento onde pretende hospedar-se é um hospício, situado exatamente em Itaguaí. Daí em diante, o leitor já suspeita o que poderá acontecer. Há um cruzamento de textos, desde o que já citamos até o famoso conto O alienista, também de Machado. Mas quem fica na verdade perturbado pela situação é o médico psiquiatra que a recebe e deixa-se envolver pela história que a moça conta. Talvez a caracterização dessa Lívia, de Bernardo, já pagasse o preço do livro e a curiosidade para se ler o romance. Mas eis que acontece o inesperado (ou o esperado?): o escritor opta pelo final mais óbvio, entrevisto até mesmo por quem nunca leu Machado de Assis.
Mas, no cômputo geral, vale a pena acompanhar o desventurado médico, toda a sua angústia, as histórias dos outros loucos que habitam a casa e até mesmo os olhos desconfiados da enfermeira Leonela. O autor demonstra ter estudado um pouco a ciência médica, especialmente a psiquiatria, para escrever o romance, embora para um ficcionista nada seja impossível.
Talvez a maior dificuldade seja conseguir retomar personagens machadianas e dar a elas uma mão de tinta diferente. O autor é convincente a respeito de Lívia e seu filho, mas quanto ao narrador deixa a desejar.
Tornou-se uma obsessão entre os estudiosos de Machado de Assis a questão do narrador. Todos sabem que o narrador é um personagem que possui um nível maior de autoridade, e neste livro quem narra – a princípio – é o próprio médico. Mas Gustavo Bernardo traz para as suas páginas a questão já discutida exaustivamente e que não é unanimidade no meio acadêmico: o problema do narrador não-confiável. Durante um bom tempo os críticos talvez tenham desejado dar a Machado a característica de querer lograr o leitor. Brás Cubas é caracterizado por muitos como um narrador não-confiável; a mesma qualificação é atribuída a Bento Santiago, em Dom Casmurro. O autor de A filha do escritor faz a opção por esse tipo de narrador, talvez querendo seguir uma das trilhas mais sutis e bem sucedidas do autor de Ressurreição. E é lógico que acaba por não atingir o sucesso desejado.
Uma literatura não é feita só de clássicos e, em todas elas, é difícil encontrar autores geniais. Gustavo Bernardo é um bom escritor, merece ser lido, mas – nem talvez seja essa sua intenção – não atinge a estatura de um Machado de Assis. O que fica em quem lê A filha do escritor é o desejo de retomar os livros de Machado e tentar descobrir, sobretudo caso se trate de um leitor não especializado, a genialidade de um escritor que, muitas vezes, ficou obscurecida por sua equivocada abordagem nos anos escolares. Inclusive o médico de A filha do escritor, doutor Joaquim (mais uma coincidência?), diz que nos tempos de estudante nunca leu um romance completo de Machado, mas encomenda toda a obra e nela mergulha a partir da chegada de Lívia a seu “estabelecimento”. Portanto, a vinda a público de mais esse lançamento no rastro do centenário de morte de Machado de Assis pode levar muitos – fora dos círculos universitários – a reverem a cotação deste autor e fazer que uma nova leva de leitores mergulhem, seguindo o exemplo do transtornado psiquiatra, na obra do criador de Capitu.

A filha do escritor
Gustavo Bernardo
Ed. Agir, 148 páginas.

quinta-feira, setembro 18, 2008

Ainda bem que escritores não morrem

Um livro editado recentemente em português, que merece a atenção do leitor brasileiro, é o romance Senhor das almas, de Irène Némirovsky. A trama, ambientada entre as duas grandes guerras mundiais, apresenta um problema que ainda é preocupação constante nos países onde a perspectiva de prosperidade parece ter-se estabelecido: a rejeição ao imigrante. Dario Asfar é proveniente do leste da Europa, instala-se na França e consegue estudar medicina. Diploma-se; sua vida, no entanto, torna-se um constante perambular em busca de clientela. Como sua aparência e sotaque revelam-no estrangeiro, os franceses não lhe dão crédito. O médico passa a atender apenas emigrados e outras pessoas pobres, que mal lhe pagam para o sustento diário. Casado, com um filho pequeno, sobrevive em meio a dívidas e a ameaças de despejo.
A autora talvez tenha desejado retratar neste livro uma parte de sua própria vida. Ela, nascida em Kiev no ano de 1903, emigrou ainda adolescente com os pais, que fogem da revolução russa. A família se estabelece na França onde o pai, após algumas dificuldades, retoma seus negócios e pouco a pouco volta a proporcionar a todos uma vida tão confortável como usufruíam na antiga pátria. Irène adota o francês como o idioma em que escreverá toda a sua obra.
A questão principal tanto em relação ao protagonista do romance como à autora não é apenas financeira. O que conta é que o lugar do exilado jamais será um lugar seguro.
Dario, o personagem criado por ela em Senhor das almas, consegue dar uma guinada na própria vida, tornando-se um homem de sucesso. De maneira inescrupulosa, em conluio com a amante de um milionário – personagem este construído a partir de algumas grandes personalidades francesas da primeira metade do século XX – passa a tratar as “almas” angustiadas e insones. A psicanálise, ainda dando os seus primeiros passos, é utilizada por ele de modo “eficaz” e enriquecedor. Embora se possam perceber algumas alfinetadas nessa prática terapêutica, a crítica à psicanálise é questão adjacente no livro. Dario tem contra si toda a escola de Viena e grande parte dos médicos franceses. Mas não se dá por vencido. Ele passa a freqüentar a alta sociedade parisiense; tem, à própria mesa, políticos influentes e milionários franceses. Seu espírito, porém, já não possui o idealismo dos primeiros anos de juventude, quando iniciou a prática médica e procurava a sobrevivência respeitando princípios morais. A palavra ética ainda não estava tão em voga como nos dias de hoje.
O romance apareceu inicialmente em forma de folhetim, no semanário Gringoire, no ano de 1939. Sua estrutura é simples: com trinta e seis capítulos pequenos, a narrativa se desenvolve em ordem cronológica; a trama inicia-se em 1920 e termina às vésperas da Segunda Grande Guerra. Não se pode negar alguma influência naturalista e a presença de personagens até certo ponto caricaturais. Mas a autora não nos poupa de um mergulho a fundo na natureza humana, mostrando-nos de que o homem é capaz em meio a situações limites. Eis algumas palavras de Dario a Elinor, a amante de Wardes, homem rico e proprietário de uma fábrica de motores, que virá a ser tratado pelo médico: “o que preciso não é de um doente, mas de uma clientela. Todos os seus amigos, esses aí, são uma presa de primeira categoria. Você não quer fazer propaganda de mim? Não quer dizer que descobriu um médico ainda desconhecido, jovem, pobre, mas genial? Essas doenças nervosas, esses distúrbios funcionais, essas fobias extraordinárias que nenhum médico, com toda certeza, seria incapaz de curar, é um campo de sucesso vasto, ilimitado, mas é preciso ter um fiador! Preciso de alguém que diga: ’Ele me curou... me salvou! Vá vê-lo, escute-o’. Você ficará com cinqüenta por cento de cada paciente rico que me enviar, assim que eu tiver recebido os honorários.”
Irène Némirovsky foi aclamada pela crítica com o lançamento do seu primeiro livro: David Golem, em 1929; escreveu vários romances, mas com o correr dos anos, por ser judia, começou a encontrar dificuldades para publicar, tendo que apelar para a utilização de pseudônimos. Enquanto viveu também não conseguiu manter relações harmoniosas com a comunidade judaica. Muitas de suas histórias não poupam nem mesmo os da mesma origem. Foi redescoberta em 2004, devido à publicação póstuma do romance Suíte Francesa, livro que ganhou o Prêmio Renaudot, sessenta e dois anos depois do desaparecimento da escritora em Auschwitz, vitima das leis raciais francesas da época, deportada pelo governo pró-nazista de Vichy.

O senhor das almas
Irène Némirovsky. Trad. : Rosa Freire D’Aguiar.
Companhia das Letras, 231 páginas.


Haron Gamal

segunda-feira, agosto 11, 2008

O lugar do herói

Bem articulado na divisão em quatro partes, o livro Sexmaster 5 e outras histórias, de João Paulo Vaz, apresenta vinte e três contos que compõem um conjunto não apenas harmonioso, mas que consegue chegar à completude, talvez objetivo do autor. Privilegiando as relações pessoais e contemplando a poesia existente no dia-a-dia, seu terceiro livro não decepciona.
No primeiro conto, há a chegada de uma mulher e um menino a um ferro velho, onde quase incógnitos passam a viver. O narrador também é alguém que está ali num semi-anonimato, procurando fugir de um passado que lhe pesa às costas. Quando a mulher é privada da criança, ele nos diz: “o grito de Alice vibra entre as ferragens e nos meus ossos. Soa como as buzinas a ar comprimido dos caminhões maiores.” O espaço é imenso para a pequenez desses seres que tateiam a própria existência e habitam um mundo sobre o qual não conseguem exercer poder algum. Resta a eles ficar “olhando juntos as seis pistas de asfalto e o sol que desaparece por trás da fumaça dos motores.” Acertada a escolha deste como primeiro conto, porque durante todo o livro encontraremos personagens que procuram juntar os próprios cacos para dar sentido às suas vidas. Nessa primeira parte, como o próprio título nos revela “plano 1 – do amor”, os contos apontam para esse elo, o amor, sentimento que escapa a qualquer tipo de explicação mas que não se consegue viver sem ele. Em “A mulher do rio”, um personagem se bate às voltas com uma boneca trazida pela correnteza. Ele a resgata, amarra-a às costas e vai rio acima à procura de seu dono. Apesar de se tratar de uma boneca, ela acaba por ter uma função surpreendente na vida de dois homens. “Dois ovos, um tomate e a mulher do apartamento ao lado” mais revela sobre um narrador sobressaltado pelo comportamento da vizinha que se vê abandonada. “Manhã de domingo”, “Chuva da tarde” e “Frágil teia do desejo” apresentam personagens cujas escolhas é a solidão. Mesmo que em “Chuva da tarde” o homem tenha a companhia de Marta, ela esteve longe dele durante muitos anos e, agora, o relacionamento parece fazer água. Um outro ponto positivo desse conto é a menção à resistência à ditadura militar. João Paulo, nascido em 1949, sempre que pode dá mostras da politização que marcou a sua geração. “Frágil teia” apresenta um homem que observa e idealiza uma mulher que está na praia, mas se decepciona ao reparar a revista que ela lê. “Anjo polar” apresenta as relações ausentes estabelecidas a partir da Internet.
“Plano 2 – do humor” começa pela realização das fantasias sexuais de um casal, mas logo adiante o que na verdade transmite, através dos outros seis contos, é a desumanização. Na teia do humor, deve-se ressaltar Château d’Orly, onde o protagonista recebe de herança um apartamento suntuoso, mas não possui dinheiro para pagar a taxa de condomínio, vendo-se às voltas com a função de síndico. Há de se fazer menção elogiosa ao conto “Como se fosse essa noite a última vez”, em que o autor envereda por um tipo de ficção científica muito original; apesar das peripécias das personagens, a questão principal é a realização do prazer e, conseqüentemente, no que há de mais humano nele: o sexo. “Invasão de Privacidade”, "Telefonia fixa” e "Papai na TV" têm como fio condutor a violência que a imagem exerce sobre pessoas nos dias de hoje; principalmente no último, porque estão implicadas as vantagens comerciais sobre a pequenez humana.
Em “plano 3 – da construção do herói (masculino)” destacam-se “O enterro de Juvenal Batista”, em que o personagem bem sucedido faz uma viagem no tempo ao comparecer ao enterro do pai de um amigo de infância, e “O dia em que meu pai matou o cachorro”, pungente narrativa, que inaugura a entrada do herói no mundo adulto.
A última parte, denominada “plano 4 – de ataque, fuga e rendição”, consagra talvez o objetivo do autor e a qualidade literária da obra, com os dois contos – que voltam ao viés de ficção científica muito bem trabalhada – “Visita anual” e o que dá título ao livro: "Sexmaster 5". No primeiro temos um futuro sombrio: o fiasco a partir de experiência com a clonagem de seres humanos leva as vítimas ao total abandono. No último, podemos observar a tentativa de restabelecer as relações amorosas e sexuais entre os seres humanos num mundo em que amor e sexo tornaram-se um jogo a distância, através de imagens. A vitória é de quem submete o oponente ao descontrole diante do prazer.
É importante observar neste livro que, embora muitas vezes o foco privilegie situações e personagens que não nos permitem antever qualquer possibilidade de saída, os belos textos de João Paulo mostram que a literatura pode ser instrumento de resistência e de beleza.

Sexmaster 5 e outras histórias
João Paulo Vaz
Ed. Cais Pharoux, 159 páginas.

quinta-feira, julho 03, 2008

“Esse fogo da alma”

É importante observar que Milton Hatoum, antes deste último livro, Órfãos do Eldorado, escreveu três outros: Relato de um certo oriente, Dois irmãos e Cinzas do Norte, todos ganhadores do Jabuti, um dos principais prêmios da literatura brasileira. Neste novo livro, ele volta a nos surpreender.
Ao iniciar sua história, um narrador pungente e pleno de paixão nos remete a duas mulheres: uma índia que, à primeira vista, fora atraída por um ser encantado e opta por mergulhar nas águas do rio Amazonas, “ia morar com o amante, lá no fundo das águas. Queria viver num mundo melhor, sem tanto sofrimento, desgraça”; a outra é Florita, a mulher que traduz ao narrador-personagem as últimas palavras da índia tapuia. Florita fora uma espécie de ama, cuidara dele desde criança e lhe permitiu a primeira relação sexual. Essas duas personagens femininas vão apontar para uma outra, Dinaura, que será o motor da história, mulher em que ele vai ancorar toda a sua possibilidade de vida futura.
Hatoum opta por começar o livro mostrando esse personagem, Arminto Clodovil, já num adiantado processo de decadência e alheamento. Até o menino, um picolezeiro num triciclo, vai desdenhá-lo aproximando-se de mansinho da sombra do jatobá: “Antes eu podia comprar a caixa de picolé e até o triciclo. Agora ele sabe que eu não posso comprar nada. Aí, só de pirraça, vai me encarar com olhos de coruja. Depois de uns risinhos, sai pedalando, e lá perto da igreja do Carmo ele grita: Arminto Cordovil é doido.”
A partir daí, Arminto nos conta sua história. Somos apresentados a uma Manaus do início do século XX, com sua população local composta de índios, caboclos, bêbados, brancos pobres à espera de oportunidades e empresários plenos de esperança devido às expectativas de progresso que a região anuncia.
Todo leitor ao abrir um livro deseja uma boa história. E aqui ela se apresenta plena. É uma história de perdas e decadência. Mas toda grande literatura é feita desses dois ingredientes. Hatoum reconstitui o Amazonas numa rememoração quase proustiana. Apesar de este livro ter pouco mais de cem páginas, apesar de – ao menos no tamanho – estar um pouco fora das características do autor, que é de romancista mais caudaloso, a construção da trama nos envolve e quando findamos a leitura temos a impressão de que a narrativa é bem maior do que o número de páginas comporta.
Como dizíamos, a construção do passado se revela como uma busca do tempo perdido, uma reconstrução do que fluiu, como as águas de um rio, e que só é possível ser recuperada pela arte. Essa busca está na tentativa de encontrar a mulher amada, na viagem ao Eldorado e no próprio sentido que a existência passa a ter com a arte de contar histórias.
O Eldorado, como o próprio nome anuncia, sempre foi sinônimo de riqueza, razão de vida de muitos aventureiros, de pessoas vindas de todas as partes do mundo; para Arminto, no entanto, tem outro significado. Ao se deparar com ele, em meio à extrema beleza do local e junto ao seu único habitante, uma menina, faz a pergunta decisiva: “Onde estão os outros?”, Ela não titubeia, responde: “morreram e foram embora.” Ele parece não acreditar e repete em forma de pergunta o que ela acabou de falar: “morreram e foram embora? Ela confirma.”
Talvez o Eldorado, como o leitor poderá descobrir em sua própria leitura, além de estar presente nas lendas do Amazonas, de ser o nome de um navio – cujo proprietário fora o pai desse personagem – e ainda existir na geografia explorada por Arminto, seja esse pequeno achado: a arte de saber contar uma boa história, com personagens, lendas e lugares perdidos; todos capazes de nos comover, de nos mostrar que viver é saber conviver com os danos, como diz Arminto a seu interlocutor – possivelmente nós mesmos: “aí tu entraste para descansar na sombra do jatobá, pediste água e tiveste paciência para ouvir um velho. Foi um alívio expulsar esse fogo da alma”.

Órfãos do Eldorado
Milton Hatoum
Companhia das Letras, 107 páginas


hjgamal@ig.com.br

domingo, maio 18, 2008

Cartomante

A casa era na verdade um sobrado antigo. Da rua era possível ver o gradeamento do que antes fora uma aprazível varanda. Agora emoldurava roupas ao sol e ao vento. Como chovera, dois guarda-sóis grandes foram colocados como anteparo às gotas da chuva. O tempo ia virado e ainda se prenunciava alguma serração. Meio escondida, entre panos amarelecidos, tendo ao fundo o que fora a grande porta de um quarto, estava lá a placa: cartomante, quiromante, prevê-se o futuro, não deixe escapar a sorte.
Olhei a rua, uma artéria perdida do centro velho; outras casas, um muro comprido; no lado oposto algum comércio, brechós em maioria. Ao longe se via uma igreja. Tentei perceber como se dava sinal à pessoa responsável pelo lugar. Não havia onde bater. Só depois de muito tempo percebi um cordão. Devia-se puxá-lo, alguma coisa no sobrado dava o aviso; e a mulher aparecia na sacada.
A própria puxou o cordão. A porta se abriu tornando possível às vistas um túnel úmido, com cheiro de panos velhos e algum odor de tempero que escorria escadas abaixo. O resto era o negrume e gordura.
Ao atingir o patamar, após meus passos se multiplicarem sobre os degraus de uma escada oca e irregular, pude apreciar envolta em sombras a figura feminina. O que logo me prendeu a atenção foi sua saia comprida, de fazenda amassada, quase um crepom, que ia até os pés. A blusa lhe deixava os braços nus. Tinha os olhos negros, grandes. Acima da cabeça um lenço vermelho não escondia a farta cabeleira também negra.
“Um senhor!, prazer, Madame Soledad”, chegou a pronunciar de leve a última consoante.
Vi-me meio embaraçado e pensei em voltar. Diria que errara o número, que não era aquilo que desejava. O ambiente ameaçava sufocar-me; mas acabei achando que devia resistir.
Fui salvo por uma menina loura que passou correndo; olhou-me de soslaio e chegou a pronunciar “mamãe”, mas desapareceu em um dos cômodos que se perdiam à meia-luz.
Apontou-me uma banqueta. Reparei então a pequena mesa com o baralho. Surpreendeu-me que era novo.
A mulher seguiu alguns passos até o que me pareceu ser a cozinha. De lá voltou com um copo comprido, com água até a metade, que pousou sobre a mesa, ao lado esquerdo. Reparei então um livro; sinais esotéricos se espalhavam desordenados sobre a capa negra.
Fiz que falaria alguma coisa. Ela, no entanto, fez sinal de silêncio. Sentou-se também e embaralhou as cartas. Fez vários movimentos com as mãos, fechou os olhos, pareceu concentrar-se, já com as mãos paradas por sobre a pequena toalha que cobria a mesa.
“O senhor me visita por causa de uma suposta doença”, sua voz soou límpida, em tom seguro, ecoou pela sala e só então a olhei nos olhos.
Pensei qual devia ser sua idade, já que era impossível qualquer prognóstico. Tanto poderia ter vinte e cinco como quarenta anos. Mas tinha alguma beleza. Era esguia; vestida com roupas chiques não se poderia dizer sua origem humilde. Seus braços compridos moveram-se ainda com o baralho à mão. Imaginei aquelas mãos a fazer carícias; dali, furtivo, fui aos lábios, enquanto seus olhos se voltavam para a mesa. Eram lábios carnudos.
Fiz, instintivo, um movimento com a cabeça, mas ela dirigiu a palma da mão em minha direção e através de uma negativa sugeriu que não era hora para que eu me manifestasse.
“Não é nada grave”, disse séria e voltada para as cartas que esparramara para logo as recolher.
“Uma mulher está próxima ao senhor, mas ela já não pertence a este mundo”, falou sóbria, voltando os olhos e demorando a face sobre mim. Depois os abaixou mais uma vez e manteve-se pensativa. Virou novamente carta a carta e, ante a figura de um rei de copas, fisgou-me de novo pelo olhar. Nada mais pronunciou.
Quando acabou, colocou-se de pé. Quis perguntar-lhe o preço, tirei algumas notas do bolso.
“No seu caso, não costumo cobrar”.
“Como assim?”.
“O senhor não precisa pagar”.
“Gostaria de saber sobre a mulher; disse que não é desse mundo”.
“Maneiras de dizer; é que vive voltada a uma outra época”.
“Ah, sim, agora entendo”.
Movimentei-me como de partida; voltei-me, porém, de súbito.
“Mas, não entendo, a senhora parece ser pobre; como vive sem dinheiro?”.
“Não vivo sem dinheiro”, voltou-me as costas e fez que eu a seguisse até a escada.
Abriu-me caminho.
Meus passos ecoaram pela escada do sobrado, após um estalo a porta entreabriu-se e me perdi na pequena rua. Em breve, misturava-me às pessoas que surgiam pelas calçadas, ao tempo em que a tarde se dissipava.
Já noite, em um café, ao pousar a xícara sobre a mesa de mármore, a mulher voltou-me à mente: seus braços finos, suas mãos ágeis, seu rosto comprido; seu corpo ereto.
Eu a admirá-la; quase uma dor.

quinta-feira, abril 24, 2008

Teatro - Crítica

O poder da metáfora – Onde você estava quando eu acordei potencializa fragilidade e resistência do ser humano

A peça começa quando a atriz Cristina Flores, que interpreta Sara, dirige-se para fora do teatro, na verdade um casarão, enquanto o público entra na pequena sala de espetáculo. Os bancos de dois ou três lugares, arrumados de modo quase aleatório, tornam a sala capaz de abrigar apenas trinta pessoas. A luz é baixa, quase penumbra. Nota-se, então, Vera (Márcia do Valle), sentada, encostada à porta corrediça; o teatro um dia teria sido uma loja. Quando todos já silenciaram e esperam, Sara entra e Vera a recebe. Estamos na verdade dentro de uma casa e lá chega uma mulher, não esperada por outra, que foge de um mundo envelhecido, está em busca de abrigo e talvez de uma vida nova. Do embate entre as duas, suas convicções, esperanças e dúvidas o texto se desenvolve.
Escrito por Sidnei Cruz, inspirado no livro de Valérie Solanas: Scun Manifesto: uma proposta para a destruição do sexo masculino, o texto é instigante e cumpre seu papel ao colocar duas mulheres como agentes do próprio destino. A literatura, no caso o texto dramático, não escapa do poder da metáfora; essas mulheres são vozes que representam talvez séculos de opressão, são seres à procura de liberdade, mesmo que, para atingi-la, tenham que praticar com esmero e alegria seus crimes. Não se pode acusar o texto de datado devido à obra de origem pertencer a um momento do movimento feminista. O que está em jogo não é a questão de gênero, mas do ser humano. Ao mesmo tempo em que explora a fragilidade – de modo explícito a da mulher –, o texto mostra a necessidade de um outro (ou outra), que sirva como reflexo do próprio eu, uma espécie de cúmplice que da própria fraqueza construa a resistência.
A direção de Sidnei Cruz é eficaz e consegue exigir o máximo das atrizes. A encenação opta pela movimentação intensa, e muitas vezes em separado, das duas por toda a sala e por entre a platéia, obrigando a cada um optar a qual delas seguir, sugerindo a impossibilidade de qualquer espécie de experiência totalizante. Vale ressaltar a interpretação de Cristina Flores, que dá intensa vitalidade à sua Sara.
A precariedade do local acaba por reforçar a temática da precariedade do ser humano, sempre às voltas com suas intempéries. O cenário de José Dias e a iluminação de Juju Moreira são bastante úteis, porque conseguem situar todos no patamar da permanente sombra e transitoriedade. Interessante também a trilha sonora e música original de Jean Mafra, que pode ser baixada no sítio dos Leões de Circo.
É importante que grupos como este façam a diferença no panorama teatral contemporâneo, como diz o próprio programa do espetáculo: “desenvolvendo uma pesquisa cênica centrada sobretudo na conjugação orgânica de três fatores: a primazia do ator em cena, a economia de elementos cenográficos e o jogo aberto com o público”. Esse jogo que não deixa de ser compartilhado quando as atrizes bebem de uma garrafa de vinho e comem sanduíches, servindo também ao público.

Onde você estava quando eu acordei?
CASA MERCADO 45
Rua do Mercado, 45
De sábados a segundas, às 19:00h
Temporada: até 19 de maio.

quinta-feira, abril 03, 2008

Imagens Brilhantes

Será talvez um pouco tarde para escrever sobre Lugar público, de José Agripino de Paula? O livro teve primeira edição em 1965, com prefácio de Carlos Heitor Cony, que reaparece na edição de 2004, da Ed. Papagaio. Cony inicia assim seu texto: “A primeira constatação, após a leitura desse romance, é positiva: ganha a literatura brasileira um novo criador” e ainda acrescenta algumas linhas depois: “[o autor] consegue construir o seu universo peculiar e universal; para ser mais exato, seu universo particularmente universal”.
Quarenta e três anos depois, a obra sobrevive. Acompanhamos as histórias de Cícero, Pio XII, Napoleão, Bismarck, César etc. Ou melhor, seguimos esses personagens que caminham sem rumo pela cidade; vez ou outra os encontramos numa biblioteca pública – alguns são leitores! –, ou numa sessão de cinema, até então uma instituição quase pública. O percurso deles talvez seja melhor definido pela palavra errância. É isso o que acontece a todos, erram continuamente para nos revelar a acertada premonição de Agripino a respeito daquilo que perderíamos décadas depois: o espaço público.
A construção da narrativa também não se dá de forma linear. Muito pelo contrário, cada parágrafo significa um bloco diverso. Os acontecimentos vão desfilando sem ordem alguma, e às vezes até mesmo se repetem. Criticaríamos o autor por isso? Não nos seria lícito tal procedimento. Talvez se José Agripino tivesse nascido e vivido na França, nos dias de hoje já seria um clássico. Ele esgarça a narrativa de maneira tão violenta, que em muitos segmentos do romance pensamos que se tornará incompreensível. Mas não é isso que acontece. O caos é aparente e a narrativa surpreende com tiradas poéticas.
Outra prerrogativa do leitor é desfrutar de um texto sobre o qual não pode desviar a atenção. Em algumas obras a desatenção pode nada acarretar, Agripino, no entanto, é duro com esse leitor. É preciso que se esteja em constante sintonia com o texto para que se possa não propriamente entender o desenrolar da história, porque essa pouco importa, mas ser cúmplice de uma horda de personagens à beira do abismo. É possível constatar que todos beiramos de modo irrefreável esse mesmo abismo e muitas vezes não temos o pudor de negar a fascinação que ele exerce sobre nós.
Seriam loucos esses personagens? Não podemos chamá-los assim porque são públicos, vide o nome de cada um deles. Caso fossem loucos, toda a humanidade estaria na verdade muito próxima à loucura.
A profusão de temas vários e complexos como viagem, doença, morte, suicídio, fome, loucura, arte, relações familiares deterioradas – tendo como cenário sempre a cidade com suas grandes avenidas, viadutos, praças etc. –, apresenta em duzentas e poucas páginas a vida de modo totalizante e ao mesmo tempo fragmentada. Quem são as pessoas que compões esse universo partido senão todos nós?
José Agripino de Paula morreu no ano passado; no âmbito da literatura, deixou dois livros enigmáticos: esse Lugar público e Panamérica. Pelo que consta terminou sua vida quase em silêncio, intraduzível. Como seus próprios personagens, manteve-se à margem, talvez ainda acreditasse na força da literatura.
Nas últimas linhas de Lugar público, acompanhamos os passos de um de seus personagens: “Atravessou a avenida, contemplou os cartazes de um cinema, retirou o dinheiro do bolso, pagou, entregou o bilhete ao porteiro, entrou na sala de projeção escura e fixou os olhos nas imagens brilhantes”. Assim como as imagens brilhantes do cinema, a narrativa também nos ilumina, nos instiga à imaginação e à fantasia. Apesar de todas as dificuldades, esses personagens não desistem; embora lhes falte o chão para a sobrevivência material, eles resistem nos livros que lêem na biblioteca pública e nas imagens dos filmes a que assistem.
Respondendo a questão inicial: nunca será tarde para se escrever sobre a obra de José Agripino de Paula. Talvez ainda seja cedo. Morreram as utopias, mas a arte quando se mostra plena ainda pode ser esses olhos fixos nas imagens brilhantes.

Lugar Público
José Agripino de Paula
Ed. Papagaio
267 páginas

segunda-feira, março 31, 2008

Três histórias do tamanho do mundo

Por Elinete Oliveira

A primeira história de Tinha uma coisa aqui começa por um narrador em primeira pessoa, na verdade uma mulher; suas lembranças de infância são apresentadas como positivas, já que foram importantes no seu processo de formação. Ela precisará enfrentar um mundo complexo, cheio de desafios que, se não resolvidos, poderão transformar sua vida adulta num enorme fardo.
Os dois contos seguintes se diferenciam muito do primeiro. Pema, a personagem principal do segundo, tem uma vida passiva. Sabemos de suas lembranças, quando o narrador, um menino frágil que está sempre a observar o que vai à volta dela, diz que “[ela] viaja por entre as rachaduras de uma parede branca, sem vê-las.”
À medida que cada conto se vai desenvolvendo nosso interesse aumenta. A risada da personagem é comparada à fala de seu próprio avô quando ele diz que “mulher com dedão menor que o indicador tem característica de ser dominadora”. Pema, porém, não possui tal atributo físico. Fica-se sabendo que sua “risada [é] como a de um homem” que teria assim sempre “esse sentido de domínio sobre as mulheres.”
Pema, uma mulher que parte várias vezes devido a conflitos familiares e sempre retorna, é para o narrador, a tia que quebrou o tabu imposto às crianças sobre a existência de um deus onipotente. Quando já idosa, sentada no sofá e entregue a seu mundo interior, mostra-se resignada ante a incompreensão dos parentes que, durante a juventude, foram seus algozes.
O narrador acorda de suas lembranças e se vê diante de uma situação comum, a de massagear os pés de Pema. Revive as injustiças sofridas pela tia, como num filme. A mulher é forte: agüentou sozinha a vida na cidade com um filho na barriga, ao mesmo tempo em que sofria o desprezo dos familiares.
Outro momento importante no segundo conto é a incansável fadiga de uma barata, que tenta se proteger do esmagamento. A mesma fadiga poderia sentir um ser humano diante dessa corrida desenfreada pela sobrevivência, como a vida de Pema. Embora, como nos assegura o narrador, as baratas corram pela vida mais do que as pessoas, o avô de Pema nos é apresentado como um bravo que não fugiu da morte. Sua alma vive rondando a casa, com ar de alegria, porque morreu pelo motivo do que mais o deixava contente: a cachaça. A questão da existência é discutida e deixa muitas interrogações sobre o que seja uma vida feliz.
No terceiro conto, Tina sente saudade de um amor perdido, um homem chamado Léo. Ela nos dá a dica do que seria o amor verdadeiro – sem cobranças, somente anseios. Desse relacionamento, teria um filho, porém é mais ousada que Pema, ao decidir pelo aborto.
Todos temos medo, vivemos injustiças e amamos; tentamos sempre resistir, mesmo que tudo venha cair por terra.

Tinha uma coisa aqui
Ieda Magri
Ed. Sete Letras, 65 páginas.

domingo, março 16, 2008

A alegoria e o símbolo em duas narrativas de Murilo Rubião

A literatura, de modo geral, sempre se mostrou resistente ou avessa a qualquer tipo de definição. É comum nos depararmos com as seguintes questões: o que é exatamente o literário?; o que faz um texto tornar-se literatura?; será suficiente a definição de literatura como a língua trabalhada esteticamente, como queriam os formalistas russos? Durante a história dessa arte feita de palavras, a captura e definição de sua essência enveredaram por caminhos sinuosos, chegando-se muitas vezes ao seu conceito pelo lado negativo. Tornava-se literatura o texto que não se enquadrava nas classificações referenciais. Ainda não se coloca aqui a questão do valor, a questão do que é boa ou má literatura, ou mesmo quais as obras dignas de serem nomeadas literárias. O juízo de valor também tem variado através dos tempos e ainda hoje é um tanto incerto. Como exemplo nós, professores, às vezes enfrentamos com certo temor o seguinte dilema: quais das obras recentes devem ser trazidas para a apreciação e estudo na universidade e, de modo geral, nas salas de aula? Tememos equívocos quanto às escolhas. Às vezes, em meio ao clamor recente do público ou da crítica ante um novo autor, preferimos esperar, aguardamos o passar do tempo para que nos sirva como ponteiro a ajuizar o valor do novo.

As ramificações do literário ainda assim se mostrariam mais problemáticas. Se já era difícil, arriscada e fugidia a definição do que é ou não literatura, como adentrar o terreno específico? A literatura chamada de realismo mágico, realismo fantástico, ou realismo irrealista aqueceria o caldo das discussões.

Quando se fala em ficção, todo aquele que tenta encontrar sentido nas páginas que percorre, depara-se com um momento de hesitação. Vejamos, exemplifiquemos dentro da nossa própria literatura; atentemos o olhar a um livro relativamente fácil como “Memórias de um sargento de milícias”, de Manuel Antonio de Almeida. Logo no início da narrativa, ao percebermos o nascimento marginal de Leonardo (o filho) e seu conseqüente destino “irregular”, chegamos a “torcer” para que ele se volte ao caminho que entendemos como certo; na verdade o queremos bem sucedido, como esperamos aos heróis, sendo estes grandiosos ou pequenos (às vezes pode parecer paradoxal desejar a alguém diminuto a posição de herói – preconceitos que o classicismo nos legou). Mas o momento de desequilíbrio surge ao percebermos que o personagem não se enquadra no modelo de herói que nos ensinaram. Então, atirado ao destino traçado pelas ruas e pelos vagabundos locais, Leonardo se perde e nos faz também perder a esperança de vê-lo um dia bem sucedido. Há na obra o momento do desvio, da hesitação, o instante que podemos nomear de conflito. No final, este irá se resolver (ainda que de modo precário), mas durante boa parte da narrativa, somos espectadores vãos seguindo o herói (ou anti-herói) pelos caminhos tortuosos que a narrativa instaurou.

“Memórias de um sargento de milícias” e seu personagem principal nada ou pouco tem a ver com a discussão que desejamos estabelecer aqui a respeito do gênero fantástico ou denominado realismo irrealista. Mas, através dessa linha de raciocínio, não se pode classificar o realismo irrealista como aquele em que há apenas um momento de hesitação, um desvio. Pois a literatura é composta de desvios. O que se poderia dizer a respeito dos realismos irrealistas é que estes se instauram a partir da quebra de uma aparente verossimilhança “com o real”; um momento em que não existe uma causalidade explicável e aparente ao que nos é apresentado pela narrativa (TODOROV, 1975, p.31)[1]. Classificação também um tanto arriscada, porque aquilo que denominamos real é construído pelas subjetividades que o habitam.

Devido a esse terreno pouco seguro, desejamos trilhar outro, que talvez seja um tanto mais escorregadio. Tentaremos percorrer algumas páginas de Murilo Rubião – autor que optou por escrever toda a sua obra nesse viés discursivo propenso a ludibriar qualquer tipo de verossimilhança – por uma linha de leitura em que se jogue por um lado com a alegoria e por outro com o símbolo.

O texto sobre o qual nos tentaremos basear para desenvolver esse trabalho é “O segredo de Golem”, um dos capítulos que compõe o interessante livro O livro por vir, de Maurice Blanchot.


“O homem do boné cinzento”[2] se inicia com uma acusação feita pelo narrador. Nesse momento, já se estabelece de antemão uma ruptura na narrativa, apesar de ela mal ter começado.

Numa narrativa convencional, a normalidade é quebrada por algum acontecimento, o que fará um dos personagens – possivelmente o protagonista – ter que providenciar soluções para que ela seja restabelecida. Talvez um dos componentes do literário, no caso do gênero narrativo, seja o estabelecimento dessa complicação e sua respectiva solução, fato que levará o enredo adiante.

O que talvez acentue a originalidade dos contos de Murilo Rubião, antes mesmo do conteúdo surpreendente de suas histórias, seja esse início abrupto, surpreendendo o leitor desde a primeira frase, a qual não deixa de comportar um forte fator desestabilizante. Apenas no parágrafo seguinte nos é dada a situação. Tratava-se de um trecho de rua tranqüilo “o trecho mais sossegado da cidade” (p.11), até que surge um homem enigmático que, segundo esse narrador em primeira pessoa, desencadeará uma série de acontecimentos que mudará totalmente a vida não só desse narrador, mas também e, sobretudo, de seu próprio irmão.

A oposição – vida tranqüila versus vida mergulhada no caos – vai se instalar na narrativa de forma irremediável. Ainda no terceiro parágrafo da página 11, é-nos mostrado o movimento de caminhões que trazem a mudança do novo morador ao casarão que havia tempos estava abandonado; na verdade, o prédio de um antigo hotel. O movimento dos veículos indicia o antagonismo que vai pôr abaixo a paz que existia anteriormente. Mais uma vez se acentuam os conflitos: uma construção que jazia fechada, sem movimento algum, se contrastando com a idéia de que se tem de um hotel: um estabelecimento movimentado, pleno de hóspedes que se deslocam constantemente; aqui, o edifício se encontra abandonado. O ambiente calmo que resiste em determinadas localidades é rompido e nada mais será como antes. Os volumes do forasteiro como um tumor que surge do inesperado vão “empilhados na vasta varanda do edifício” (p. 11).

Até aqui temos um culpado, uma ex-rua tranqüila, um homem estranho e sozinho que se estabelece no local.
A partir do quarto parágrafo, surge segundo o narrador “Meu irmão Artur, sempre ao sabor de exagerada sensibilidade” (p.11). Esse irmão, na verdade, passa a ser o “ator principal” do espetáculo. É ele que vai observar atentamente o homem que chega para habitar o casarão, é ele que a princípio abastecerá o narrador sobre o que acontece com o novo morador, é ele que antecipa os acontecimentos ao afirmar que “as casas começavam a tremer e apontava-me o céu, onde se revezavam o branco e o cinzento” (p. 11), imagem antecipatória da cor do boné usado pelo futuro morador. É importante observar que o narrador qualifica o irmão de pessoa de exagerada sensibilidade, fato que já nos pode adiantar algum desequilíbrio vivido por este, que vai ser na verdade o interlocutor de tudo que acontecerá na narrativa.

Os contos de Murilo Rubião, como outros analistas já observaram, não comportam explicações que transitam numa lógica realista, em que os fatos são esclarecidos e resolvidos no término do relato. Antes disso, apesar de os personagens se mostrarem até mesmo suscetíveis a determinados desequilíbrios, sujeitos a algumas enfermidades, eles serão atropelados pelos acontecimentos, porque não se poderão dar explicações lógicas ou coerentes a episódios como à metamorfose a que será submetido o novo morador e à conseqüente também transformação que Artur sofrerá. Mas não antecipemos os fatos.

Na página 12, o narrador nos apresenta algumas características de si próprio: revela-se como alguém que possui uma “mania de contradição” e diz que “Daquela vez, a mania de contradição me arrastara a um erro grosseiro” (p. 12). Murilo Rubião cria para esse conto um narrador cético, irritadiço com o próprio irmão, predisposto a não acreditar em suas prédicas e a não lhe seguir os passos. Mas o desenrolar da história vai mostrando-nos alguém que pouco a pouco se deixa levar por esse “outro”, que é seu irmão Artur.

Uma observação interessante, que se pode fazer a partir dessa narrativa, é a respeito da formação da personalidade, ou mesmo características dela. O século XX foi um período em que as teorias psicanalistas se impuseram; inicialmente através de Freud, depois, por meio de seus seguidores, entre eles Jacques Lacan. Sabemos que este autor desenvolve um estudo peculiar sobre a formação do “Eu”, diferenciando-o do que chama de sujeito. Para Lacan, a constituição da personalidade – ou do “Eu” – é semelhante à psicose paranóica; o autor chega a dizer que uma e outra são a mesma coisa. Explica que a personalidade se forma através do processo de alienação, isto é, a criança, até em torno dos dois anos de idade, se espelha na imagem que pode ser a sua ou de um "outro". Tal fenômeno, na linguagem lacaniana, se denominaria estádio do espelho. Teríamos o processo de formação do indivíduo baseado em alguma coisa que se encontra fora dele; a singularidade construída a partir de um processo que vem de um “outro”, na verdade um processo de alienação (SAFATLE, Unesp, 2006).

No conto de Rubião, através de Artur, podemos perceber esse fenômeno. Em momento algum há qualquer preocupação dele com o próprio “Eu”, ou com a própria vida, ou a vida do irmão. Ele, indiferente a si, estará sempre preocupado com o “outro”: Anatólio, o homem do boné cinzento. A vida do personagem é o objetivo da vida de Artur, que passa a vigiá-lo constante e continuamente, chegando ao termo de contaminar o irmão com seu modo de vida, capturado in extremis pela imagem do vizinho. Teríamos, assim, dois personagens que em momento algum se situam como sujeitos, mas vão a reboque de um “outro”, mergulhando num processo paranóico. Quando o personagem se torna uma bolinha negra, no final, a ponto de ser recolhido pelo irmão, não é difícil perceber a nulidade do sujeito, sujeito que entra num processo de reificação. A leitura psicanalítica desse conto põe em destaque a questão premente de todo o século XX, que é a da fragmentação, alienação e anulação do indivíduo, questões caras não só à psicanálise, mas também às vanguardas européias.

O narrador em primeira pessoa é uma boa opção utilizada pelo autor, porque acentua a característica de unilateralidade da narrativa. Além de hiperbolizar o contágio que ele sofre através do irmão, mostra que a vizinhança também não passa imune ao acompanhar o dia-a-dia do novo morador: “Os seus hábitos estranhos deixavam perplexos os moradores da rua” (p. 12).

O terceiro parágrafo da página 12 apresenta Artur já totalmente transtornado, tendo o novo vizinho se tornado alvo de sua loucura: “A sua excitação crescia à medida que se aproximava o momento de defrontar-se com o solitário inquilino do prédio vizinho” (p. 12). O que se pode ver como enigmático ao mesmo tempo se mostra revelador. É o que acontece quando reparamos o personagem a alertar o irmão (o narrador): “– Olha, Roderico, ele está mais magro do que ontem!” (p. 12) Ao observá-lo continuamente, Artur percebe que pouco a pouco o vizinho vai desaparecendo. Esse desaparecimento, no entanto, não seria também um reflexo da gradativa extinção da própria personalidade do observador? O viver tendo como motivo apenas a observação de um “outro”, tendo sido deixado de lado o próprio “eu”, na verdade revela que o personagem se tornou o “outro”, passando a acompanhá-lo não só em todos os passos, mas também em todas as deformações e metamorfoses.

Roderico ainda se agarra ao que tem de amor a si, ou à própria personalidade: “[...] dizia que não me aborrecesse, nem se ocupasse tanto com a vida dos outros” (p. 12)

No segmento seguinte, há o aparecimento de uma mulher, também enigmática. É vista apenas duas vezes: ao chegar e ao partir.

Na obra de Murilo Rubião, a presença e a companhia da mulher – quando simboliza o amor ou mesmo a tentativa de realização dele – são fugazes, não correspondendo aos desejos do outro; a relação normalmente não se concretiza e o destino do homem é viver mergulhado em extrema solidão. Ela acaba por se tornar objeto de sofrimento e de incompletude. Parece que, para o autor de “O homem do boné cinzento”, a tentativa de diálogo entre os seres humanos – sendo esses diálogos de qualquer espécie – não é viável. A concretização da relação amorosa, o que se poderia classificar como tentativa suprema de entendimento e correspondência num processo dialógico, sempre se corrói e tudo o que acontece é que há sempre uma partida após cada momento de chegada.

É o que se dá nesse trecho do conto. Uma mulher bonita chega, o que contrasta com a afirmação inicial de que Anatólio é um celibatário; aparentemente se pensa que ela lhe vai fazer companhia. A personagem, entretanto, desaparece por completo dentro do próprio casarão (seria outro indício do desaparecimento futuro de Anatólio?), para surgir apenas três meses depois e partir a pé e sozinha. Talvez aqui, tivéssemos mais uma vez a frustração de todo e qualquer tipo de relacionamento. O ser humano estaria destinado à solidão e ao desaparecimento.

No penúltimo trecho do conto, após a partida da mulher, nos deparamos com o narrador já totalmente transtornado pela observação do vizinho. Como mencionamos no início desse estudo, agora é ele que se vê numa ânsia semelhante à de Artur. A presença desse “outro” assaltou-lhe o espírito, e o personagem não tem outra preocupação: “Eu não tirava os olhos do homem. Sua magreza me fascinava. [...] Anatólio tornara-se minha única preocupação.” (p. 14)

A seguir, é o momento da transparência. O homem observado além de emagrecer continuamente torna-se transparente a ponto de os dois observadores poderem vislumbrar o que se encontra através dele. No mundo alegórico de Murilo Rubião, o que significaria essa invisibilidade? Mesmo que tentemos alguma resposta, adentraremos a terreno pantanoso, de difícil caminhada. O que se pode insinuar, mesmo que timidamente, seria talvez que tal fato expressasse a insignificância da condição humana, fragilidade e fugacidade da vida, vida essa capaz de se manter por um fio como também possível de desaparecer, deixando como vestígio apenas os objetos sem função aparente.

No último trecho da narrativa, os dois irmãos testemunham o desaparecimento de Anatólio. Tal acontecimento, esperado por ambos os espectadores, se dará de forma apoteótica, em meio a espasmos, jato de fogo “que varreu a rua” (p. 15), vômito e um incêndio. Não basta a Murilo Rubião fazer seu personagem simplesmente desaparecer, é necessário como preparação para esse desaparecimento uma espécie de show; talvez isso represente a culminância da insignificante e enigmática passagem do homem sobre a face da Terra. Mas eis que ainda nos resta um sobressalto: Artur também sofre uma assustadora metamorfose: sob o olhar perplexo do irmão, transforma-se em uma bolinha negra.

A literatura que contempla o absurdo comporta algum tipo de significação, apresentando questões em forma de símbolos ou alegorias, já que não seria possível uma literatura só de significantes. Quando procuramos nela, porém, a decifração dessa simbologia, sentimos o terreno não tão seguro. Vai-se para um lado, escorrega-se para o outro. Isso sem querer diminuir as qualidades do autor, muito pelo contrário, porque é essa ambigüidade proposital que dá ímpeto a tal movimentação.

Talvez, uma das possibilidades de leitura desse conto, além da questão da formação da personalidade – como tratamos acima –, seja a falta de sentido da própria vida, onde os seres humanos são extremamente sós, perdendo-se qualquer possibilidade de diálogo, extinguindo-se todos os meios de comunicação ou relação entre os homens.

O mais interessante, porém, em lugar de buscar uma significação, uma interpretação da diegese, mesmo apontando-a como alegórica, seria constatar a impossibilidade de interpretá-la ou de nomeá-la.

Maurice Blanchot em seu Livro por vir[3], no capítulo “O segredo do Golem”, desenvolve um ensaio sobre o símbolo, em que o situa e distingue as diferenças dele em relação à alegoria[4]. Começa o autor “A palavra ‘símbolo’ é um vocábulo venerável na história das literaturas” (p. 125). Adiante continua: “O pensamento é simbólico. A existência mais tacanha vive de símbolos e lhe dá vida.” (p. 125) No segundo parágrafo desse texto, Blanchot já diz aonde quer chegar ao comentar o que poderia dizer um autor quando dizemos que sua obra é simbólica:

“pode ser que ele [o autor] aí se reconheça e se deixe lisonjear por esse belo vocábulo. Sim, é um símbolo. Mas, nele, algo resiste, protesta e secretamente afirma: não é uma maneira simbólica de dizer, era sempre real.” (p.125)

Blanchot investe no terreno de que o símbolo tem por meta ele mesmo, não tendo qualquer pretensão que não seja o real, isto é, o que é apresentado na obra; mas, ao mesmo tempo, o que se encontra muito longe dela. A seguir desenvolve seu raciocínio sobre a alegoria, com o intuito de diferenciá-la do símbolo.

“A alegoria não é simples. Se um velho com uma foice significa o tempo, e uma mulher sobre uma roda significa a fortuna, a relação alegórica não se esgota nessa única significação. A foice, a roda, o velho, a mulher, cada detalhe, cada obra em que a alegoria apareceu, e a imensa história que aí se dissimula, e sobretudo o modo de expressão figurado, estendem a significação a uma rede infinita de correspondências. [...] A alegoria desenvolve até muito longe a vibração emaranhada de seus círculos, mas sem mudar de nível, segundo uma riqueza que podemos classificar de horizontal: ela se mantém em seus limites de expressão medida, representando, por algo que se exprime ou se figura, outra coisa que poderia ser expressa, também diretamente.” (p. 126)

A seguir, o autor desenvolve sua própria concepção a respeito do símbolo:

“O símbolo tem pretensões muito diferentes. De imediato ele espera saltar para fora da linguagem, da linguagem sob todas as suas formas. O que ele visa não é, de modo algum, exprimível, o que ele dá a ver e a entender não é suscetível de nenhum entendimento direto, nem mesmo de qualquer tipo de entendimento. O plano de onde ele nos faz partir é apenas um trampolim para nos elevar, para nos precipitar, em direção a uma região outra à qual falta todo o acesso.” (p. 126)

Esse acesso que, muitas vezes, não conseguimos encontrar na leitura de Murilo Rubião. Seriam as epígrafes um acesso ou elas estariam presentes para nos desviar ainda mais de qualquer tipo de significação? Como pudemos discutir nas aulas, durante o curso[5], a palavra bíblica já é portadora de uma imensa carga de mistério. Dentro das próprias escrituras, não há consenso sobre o que significa. As expressões bíblicas e suas respectivas significações acabam por se tornar questão de crença. Trazidas para o universo da literatura, tais expressões não deixariam de se tornar ainda mais enigmáticas. Outro ponto: as constantes metamorfoses a que são submetidos os personagens rubianos. Seria um tanto simplório afirmar de forma absoluta o que significa o apoteótico desaparecimento de Anatólio, como que num festim, entre fogos de artifícios; outra explicação temerosa seria assegurar sentido ao acompanhamento que Artur lhe proporciona, também desaparecendo e se transformando em uma pequena bolinha negra. Seria por demais diminuir a narrativa com possibilidades de leitura que a conduzisse de volta ao universo lógico e racional a que estamos acostumados e condicionados. O símbolo com todo o seu grau de arbitrariedade se espraiaria como a categoria mais reluzente em meio ao opaco balburdio.

Com a alegoria, ainda assim estaríamos procurando retirar véus que nos conduziriam a algum tipo de esclarecimento. Esta figura, como mencionamos através das palavras de Blanchot, é um recurso da linguagem que visa o ato de representar; por outras palavras: a alegoria nada mais é do que um tipo de linguagem figurada.

O conto que acabamos de analisar, dado a seu caráter ambíguo, enigmático, de transcurso e final arbitrários, contrafeito a todas as regras de verossimilhança, teria como bom termo a classificação de simbólico. Por quê? Porque o símbolo tem a arbitrariedade como característica e em conseqüência não tem o dever de ser decifrado, como acontece à metáfora, ou à alegoria. A decifração do símbolo estaria mais próxima à crença, ou à paixão (Blanchot, 2005, p. 128); ele apenas poderá significar alguma coisa por convenção, tal como o vocábulo, ou melhor, como o signo lingüístico.

Como já estudamos a constituição da semiose literária e a classificamos como um sistema lingüístico de significação em segundo grau, o símbolo transitaria num grau de arbítrio ainda mais avançado. Teríamos aqui de lidar com alguma coisa incômoda, algo de decifração quase impossível: grupo de palavras organizado como texto literário que está elevado à potencialidade máxima de arbítrio. Quando falamos em literatura do absurdo, ou realismo irrealista, não seria avançar demais ao estendermos em mais um grau todo esse arbítrio. Assim, a literatura a princípio não escaparia de sua característica interna, tendo como referente o real instaurado por ela mesma mas, para logo depois, variar de tom dentro da sintaxe não estabelecida pelo autor, mas pelo leitor, que com toda sua capacidade de crença e paixão, nomeando e convencionando símbolos (que escorregam quando beiram a esterilidade) trafegaria no itinerário dessa intensa aventura simbólica.

Para estender a questão simbólica e sua conseqüente classificação como algo sujeito a crenças e convenções, podemos dar como exemplo o caráter simbólico e arbitrário dos idiomas, ou mesmo de qualquer outro tipo de linguagem. É consenso entre os especialistas da linguagem o caráter arbitrário do signo lingüístico, o aspecto simbólico de toda e qualquer linguagem, sendo o ato de nomear fruto de pura convenção.


Outro conto de Rubião, “Marina, a intangível”[6], também é digno de nota à hipótese da aventura do símbolo.

Essa narrativa, também em primeira pessoa, apresenta-nos um narrador atormentado, que procura por socorro. Alguém que está na mais absoluta solidão, no mais profundo estado de desamparo, não encontrando saída nem mesmo na bíblia, crente que ele demonstra ser. Em determinado momento, chega a afastar o livro sagrado de sua frente. Após perceber que algo está para acontecer, esse personagem, ainda obscuro para nós, encerra o pequeno parágrafo inicial com a frase enigmática: “Certamente seria a vinda de Marina”.

Essa espera por alguém que possivelmente emanará alguma luz e levará o personagem ao estado oposto àquele sob o qual jaz, juntamente com a presença do livro sagrado revelam as características religiosas do episódio, que ainda nos oferece de acréscimo a vinda de Marina como a chegada de um messias, de alguém que traria algum tipo de revelação.

Um clima noturno se instala em contraste à expectativa de luz que o personagem aguarda.

É interessante observar, já que aqui tratamos do símbolo, que é a religião a portadora talvez da maior parte deles. Veja-se o livro sagrado, veja-se essa Marina que pouco a pouco, vai se mostrar na figura de uma santa, veja-se a iconografia cristã nos objetos ligados ao culto dela. Ao atingirmos o clímax da narrativa, daremos conta de que toda essa simbologia se desloca a outro possível símbolo, a poesia; que, da mesma forma, vai apresentar-se problemática, ambígua, escorregadia; visto que nem escrita vai se dar.

Percorramos o texto, no entanto, como num longo e descansado passeio, onde seja possível ora caminhar, ora parar para admirar uma bela paisagem, ora bebericar um pouco de água fresca, para que, refrigerados, possamos seguir em frente.

O conto elenca outros elementos religiosos como a referência à capela dos capuchinhos e a uma oração, de que o narrador se utiliza como que para “reprimir a angústia” (p. 25).

O elemento primeiro que desestabiliza a narrativa arremessando-a ao árido terreno do realismo irrealista é o momento em que esse personagem que nos conta a história diz a respeito das “duas pancadas longas e pesadas” que seriam de um relógio da capela: “Sem me impressionar com o fato de a capela não possuir relógio [...]” (p. 25). Observamos algo que se anuncia, mas sem a presença de seu corresponde físico; há o som das duas pancadas, mas o que soa? Temos o anúncio de algo que está por vir? O que, na verdade, significa o soar de um relógio inexistente? Ainda é cedo para se ter uma resposta. Se é que a teremos. Ao mesmo tempo percebe-se o espaço em que o personagem se encontra e o que faz. Trabalha numa redação de jornal e permanece sozinho no plantão da noite.

Nesse momento, a narrativa já nos apresenta algo interessante, que contrasta ao elemento noturno em que está encerrada: as folhas brancas de papel. A seguir, há a revelação da esterilidade desse autor, cronista noturno de um jornal, alguém que não consegue criar, não consegue escrever o que realmente deseja, isto é, não consegue simbolizar. Tudo que produz são “poucas linhas desconexas” (p. 26)

Daí em diante, todo o conto se forma através da impossibilidade desse homem escrever uma história, ou qualquer matéria que seja, vide as folhas amontoando-se no cesto. Ele chega a se desesperar: “Para vencer a esterilidade, arremeti-me sobre o papel, disposto a escrever uma história, mesmo que fosse a mais caótica e absurda” (p. 26) Num processo que diz de esterilidade, se considerarmos esse narrador o autor do texto, veremos que mesmo assim esse texto se vai construindo. A escritura emergente é, portanto, fruto da não-história, ou seja, da própria impossibilidade de escrevê-la (ou de simbolizá-la). Mas a narrativa se vai construindo e avança. A literatura, aqui, torna-se processo, ou seja, um texto metaliterário, fala de si mesma, de seus próprios limites e de suas impossibilidades.

Voltando à questão do que escrever, o personagem retorna à bíblia, onde diz ter encontrado a solução:

“Poucas páginas havia lido e descobri o assunto procurado. Iria falar do mistério de Marina, a Intangível, também conhecida por Maria da Conceição.” (p. 27) Sua alegria, no entanto, dura pouco e o que ele acreditava fácil lhe acaba escapando. Surge então um desconhecido, que diz o motivo de estar ali: “– Recebi o seu recado, José Ambrósio, aqui estou.” (p. 28)

A introdução desse novo personagem vai trazer-lhe esperança. De início, recusa a presença e a ajuda do desconhecido, mas, adiante, acaba cedendo. Suspeitamos que esse narrador tenha enlouquecido, ante o que nos revela o recém-chegado, que resiste às primeiras negativas quanto aos versos encomendados pelo próprio jornalista: “– Encomendou-me sim. Talvez não se recorde porque o pedido que me fez é anterior à sua doença.” (p. 28)

A seguir, sentimos a recusa da criação literária e da própria representação simbólica quando ouvimos mais uma vez a voz do narrador: “Morra a poesia, morram os poetas.” (p. 29) Afirmação nada sutil, mas reveladora, talvez por ser a poesia o processo máximo de arbitrariedade da língua. Pode-se até mesmo dizer que a verdadeira subversão só é possível na literatura, onde mudar significados e sentidos desestabilizaria talvez o pouco de possibilidade que o ser humano tem para manter o mundo como ordem ou organização. Aqui se esvairia o acordo tácito que existe entre os usuários dos idiomas de modo geral, tornando a representação estética através da língua como algo de extrema potência.

A expressão do interlocutor: “– São versos para Marina, a Intangível”, funciona como passe de mágica para que José Ambrósio recue e caia de joelhos. A analogia que existe entre esse aposto “a Intangível” com a própria poesia é importante ser assinalada. A mulher, praticamente elevada à categoria de santa, assume para o personagem altura inatingível, assim como o próprio ato criador, ao qual ele se mantém estéril.

Daí em diante, há toda uma aventura para que os versos se tornem realidade, desde gestos do homem recém-chegado como a percepção do narrador de que a poesia realmente acontece, apesar de ele não conseguir simbolizá-la, ou registrá-la.

Mas a representação acontece, independente da vontade de ambos, num desfile delirante e surreal em que Marina aparece em meio a uma procissão silenciosa e ao mesmo tempo trepidante, meio santa (trazida em um andor), meio mulher (o vestido amarfanhado e rasgado, as coxas à mostra, as olheiras muito negras e os lábios pintados). Nessa festa de delírios, em que a própria narrativa oscila em temperatura alta, há mais uma vez a potencialização de uma simbologia que intencionalmente beira o inexprimível. A representação artística, no caso a literária, surge na imagem de uma mulher que, ora beira o sublime, ora o erótico, não nos dando tempo ou não nos permitindo – como acontece ao personagem que a observa – fixá-la por mais do que alguns segundos. E quando a festa termina e ele se vê só, no terreiro, não deixa de nos informar: “Sabia, contudo, que o poema de Marina estava composto, irremediavelmente composto. Feito de pétalas rasgadas e de sons estúpidos.” (p. 33)

Poder-se-ia dizer que esse conto, com muitos componentes que transitam no que costumamos chamar de realismo irrealista, talvez pudesse ser chamado de alegórico, já que o surgimento de Marina seria a representação do momento em que a própria arte encontra sua possibilidade de realização. Teríamos de fazer, no entanto, uma ressalva, por paradoxal que nos possa parecer. Para que a alegoria se estabeleça faz-se necessário a tessitura de toda uma cadeia simbólica. Vejamos quais são esses símbolos.

Em primeiro lugar há algumas palavras ou imagens religiosas, como a bíblia, os capuchinhos, e a prece. Por que podemos chamá-los de símbolos e não de alegoria? Porque os símbolos estão ligados a uma convenção, a uma crença; e nada melhor do que a religião para utilizá-los. A própria Marina, quando surge num andor, rodeada de outras mulheres e escoltada por anjos e padres está numa posição de destaque, como cabe às pessoas santificadas. Pode-se saber disso porque se convencionou aplicar àquele que vai num andor proeminência sobre os outros.

Em segundo há os símbolos mundanos; um deles é o relógio a marcar as horas através de badaladas, cuja inexistência é constatada pelo personagem-narrador. A questão principal, aqui, não seria essa, mas outra convenção: o tempo. O passar do tempo, não o passar dos dias e das noites e das estações do ano, mas o tempo como objeto linear e convencional, marcado por uma linguagem estabelecida pelos homens, um calendário. Este também pertence ao mundo das convenções; também é simbólico.

Um estudo sobre o tempo poderia ser feito à parte, o que não é nosso objetivo nesse trabalho. O tempo transcorre de diversas formas durante a narrativa e, em alguns momentos, poderíamos associá-lo a imagens, devido o ambiente noturno vivido pelo personagem. Há a marcação desse tempo através das badaladas de um relógio inexistente – como já nos referimos acima –, do surgimento do personagem que diz trazer os versos para serem publicados, e do diálogo que este estabelece com o narrador (o processo dialógico revela a passagem do tempo). Só então é que vislumbramos a possibilidade (reparem, digo possibilidade) de ele, o narrador, não estar delirando. Adiante, quando há o aparecimento de Marina, em respeito ao caráter mágico da aparição e representação, temos a desmistificação do tempo convencional para o elevarmos à categoria máxima de simbólico. O que demonstra que a viabilidade da representação artística também se daria num tempo fugidio, que escaparia a qualquer parâmetro de convenção ou medida; pois o desfile de uma infinidade de componentes tendo vários obstáculos a serem superados não se poderia dar num tempo tão exíguo a ponto de se comportar num piscar de olhos de quem nos narra.

A santa/mulher que surgiria como algum tipo de alegoria passa a ter lugar na categoria arbitrária do símbolo porque – se depende de uma questão de crença, de ritual, e até de paixão, se está sujeita a uma linguagem que precisa levar em conta tantos fatores significantes – pertence a um universo em que as convenções, num processo anterior de nomeação, passaram a dar significação (a criar uma linguagem própria) ao que era, por natureza, impossível de se traduzir.


Como contribuição às pesquisas sobre os realismos irrealistas, a abordagem do símbolo e da alegoria possibilitada por Blanchot só tem a enriquecer as apaixonadas discussões sobre esse assunto. Sem querer diminuir ou refutar teses consagradas de autores importantes (Todorov etc.) que se esmeraram no aprofundamento teórico referente a esse gênero, a lembrança de que vivemos num mundo simbólico nunca é demasiada, apesar de nos arremessar ainda de modo mais vigoroso à consciência da fragilidade de todos os nossos conceitos relativos ao mundo da cultura. Se tudo é símbolo, sempre estaremos pisando num terreno que jamais será seguro. Murilo Rubião, de certa forma, não deixou imune esse tipo de discussão e sua conseqüente representação. O realismo irrealista praticado pelo autor, que quase não nos permite qualquer referencialidade (aqui entendida como tradução à lógica convencional dos estudos científicos), atestaria o arbítrio de toda e qualquer linguagem.


Referências bibliográficas

RUBIÃO, Murilo. O homem do boné cinzento. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

RUBIÃO, Murilo. A casa do girassol vermelho. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

BASTOS, Alcmeno. Os realismos irrealistas na literatura brasileira contemporânea. Apostila utilizada em sala de aula.

BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

SAFATLE, Vladimir. A paixão pelo negativo: Lacan e a dialética. São Paulo: Unesp, 2006.

TODOROV, Tzevtan. Introdução à literatura fantástica. Trad. Maria Clara C. Castello. São Paulo: Perspectiva, 1975.


[1] Na verdade, Todorov não fala em realismo irrealista, ele busca a conceituação do fantástico em oposição a outros termos como maravilhoso e estranho.[2] RUBIÃO, Murilo. O homem do boné cinzento. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, pp. 11-15.[3] BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. São Paulo: Martins Fontes, 2005.[4] É importante observar que Blanchot, na parte final do ensaio, faz comentários à narrativa A invenção de Morel, de Bioy Casares, cujo conteúdo também pode ser denominado de realismo irrealista.[5] Realismos-irrealistas, ministrado pelo Professor Doutor Alcmeno Bastos no segundo semestre de 2007, UFRJ, Faculdade de Letras.[6] RUBIÃO, Murilo. A casa do girassol vermelho. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, pp. 25-33.

segunda-feira, fevereiro 11, 2008

Hei de amar

As narrativas sempre são um modo de colocar em ordem o que na verdade está à beira do caos; são uma espécie de estilização ordenada do mundo em que se vive. Principalmente na ficção, o que o leitor percebe é a construção e ordenação de uma realidade que não existiria daquela forma em outro lugar. Os acontecimentos que se estendem através de uma história, as ações e os pensamentos dos personagens não se apresentam da mesma forma como na vida real. Não estou a exigir que a literatura seja uma representação perfeita da realidade, uma espécie de mimeses, fato já por demais discutido. O que se observa, no entanto, é que toda espécie de narrativa é a organização de um mundo que dificilmente se mostraria organizado fora da literatura. Toda escrita por mais realista que tente ser, jamais o conseguirá. O fluxo de pensamentos, os atos falhos, os fatos cotidianos que se entrelaçam não permitem uma ordem tal qual existe nas histórias. Portanto, toda representação ficcional seria deste modo uma tentativa vã ou um tanto pálida de trazer à vida fatos e personagens que quiséssemos iguais a nós próprios.
Colocando a questão nessa perspectiva, podemos apreciar com a devida importância a literatura de António Lobo Antunes. Não é à toa que o autor português seja um dos mais prestigiados pelos estudiosos e por leitores especializados. Não incluo nessa última categoria apenas os mestres ou doutores em literatura, mas todos aqueles que estão acostumados a ler muitos romances e por ora percebem uma espécie de esgotamento do gênero; pois haverão de compreender a diversidade de representação e caminhos escolhidos pelo autor de Hei de amar uma pedra.
Lobo Antunes opta por uma forma narrativa que poderia parecer estranha àqueles que não estão familiarizados à sua obra ou mesmo à ficção contemporânea. No livro citado, observamos o percurso de vários membros de uma família portuguesa e de algumas pessoas que estão à sua órbita; todos vivem em Lisboa ou arredores. A história não apresenta muita novidade, porque os acontecimentos ali narrados são comuns a todas as famílias de classe média pelo mundo afora. Mas o autor português dá forma à sua história de uma maneira muito original. Seus personagens têm voz própria, lembranças e preocupações que se repetem, tal qual acontecem a todos os seres humanos, e são representadas com mestria. Não seria exagero afirmar que Lobo Antunes cria uma linguagem particular, linguagem capaz de dar conta da natureza humana com “quase” inteiro realismo. A forma como os episódios aparecem e se repetem, o modo como as rememorações vão e voltam à mente dos personagens, o martelar permanente de preocupações são capazes de trazer à tona a angústia plena à qual o ser humano sempre esteve submetido.
Não é premente o interesse pela direção a que a narrativa há de tomar, ou qual será o seu desfecho. Isso não é o mais importante. O que soçobra é a quantidade de cacos que deixamos à deriva durante a existência, cacos impossíveis de reconstituírem o objeto que constituíram no passado, mas capazes de revelar a inteireza – por paradoxal que seja essa afirmação – da angústia provocada pelo estar no mundo, enfim, pelo existir.

Hei de amar uma pedra
António Lobo Antunes
Ed. Alfaguara
558 páginas