sexta-feira, dezembro 14, 2012

Ricardo Piglia discute em seu romance a natureza da literatura

Tardewsky, personagem de Ricardo Piglia no romance Respiração artificial, afirma: “a natureza não existe mais, só nos sonhos. Ela, a natureza, só se faz notar sob a forma de catástrofe ou então se manifesta na lírica. Tudo o que nos rodeia é artificial: tem as marcas do homem.” O livro, agora em edição de bolso, foi publicado recentemente pela Companhia das Letras.

O autor quando diz, através de seu personagem, que dos dois lugares possíveis para a manifestação da natureza um deles é a lírica, ou seja, a própria literatura, ele quer dizer que essa literatura passa a ter enorme responsabilidade. Então, é necessário aprofundar a questão.

A natureza, como algo absoluto, apresenta-se como total impossibilidade. No filme “Matrix”, dos irmãos Wachowski, no momento em que toda a parafernália tecnológica para de funcionar, alguém diz: “Bem vindo ao deserto do real”. Logo, retirada toda a ilusão criada pelo homem, mesmo as ilusões mais concretas, a natureza seria o deserto, o mar revolto, a densa floresta onde nenhum humano penetrou, ou algum tipo de desastre natural impossível de ser contido pelos seres humanos e por seus artifícios. Partindo-se do princípio de que nos dias de hoje tudo pode ser previsto e medido, estão aí os instrumentos cada vez mais precisos oriundos da avançada tecnologia, pelo menos se tornou possível orientar as pessoas a dirigirem-se a abrigos, ou mesmo aconselhá-las a abandonarem os locais de risco na iminência de catástrofes. Diminuída a surpresa de a natureza manifestar-se, resta a ela a literatura. Como isso, no entanto, poderia acontecer?

A meu ver, de dois modos distintos. O primeiro através da poesia, do teatro e da narrativa, mesmo representando toda a violência que a natureza humana é capaz de comportar; o segundo por meio da idealização daquilo que costumamos nomear de catástrofe, ou seja, do sublime kantiano.

A natureza habita com pleno direito de posse, desde a mais longínqua antiguidade, o espaço literário. Por outro lado, é certo que essa mesma natureza, quando crua, é devoradora. Basta dizer que morreríamos caso fôssemos abandonados a seus cuidados. Em um mundo onde tudo funciona a partir de um clique, obter fogo com dois pedaços de madeira ou mesmo nos defender de animais ferozes não seriam nossas especialidades.

Isso, no entanto, é uma questão apenas adjacente no livro de Piglia. O que a narrativa aborda e discute é a natureza da literatura.

Um jovem escritor extremamente culto, que acaba de publicar o seu primeiro livro, recebe carta de um tio que mal conheceu e que se encontra desterrado. Ele deseja contar-lhe novos fatos, já que o livro do sobrinho tem como tema a própria família. “Ninguém jamais fez boa literatura com histórias de família”, afirma. A partir deste fragmento, vamos descobrindo como se deve fazer literatura. Não apenas por causa do conselho desse tio chamado Marcelo Maggi, mas através das situações que Piglia nos apresenta.

Cartas vão sendo trocadas até que o personagem-escritor Emilio Renzi resolve viajar a Concordia, cidade da Argentina na Província de Entre Rios. Sua intenção é encontrar o tio. Mas quem vai recebê-lo na estação ferroviária é Tardewsky, um imigrante polonês que fugiu do nazismo e vive exilado no país desde o começo da Segunda Guerra Mundial. Alguém que joga bem o xadrez e que conheceu James Joyce. Ele, porém, é um homem deslocado, definitivamente fora de sua terra, despossuído de sua língua materna. Tardewsky ocupa o lugar sempre movediço e transitório do imigrante, espaço visceral de estranhamento, isto é, ocupa na verdade o não lugar, o mesmo lugar itinerante da própria literatura.

O eixo narrativo do romance situa-se na década de 1970, período em que vigorou uma ditadura militar das mais sanguinárias que chegaram ao poder na Argentina. Renzi, além de receber uma caixa com escritos de Enrique Ossorio, papéis que possibilitariam recuperar parte da história do país, discute não apenas política, mas, sobretudo, literatura nacional contemporânea e mundial.

Num trecho, somos surpreendidos pela seguinte afirmação: “a literatura argentina não existe mais”. “E Borges?”, retruca o interlocutor. “Borges, disse Renzi, é um escritor do século 19.” Aqui é introduzido Roberto Arlt (1900-1942), escritor argentino descendentes de imigrantes europeus pobres a quem se atribui o título de introdutor do Modernismo no país e que promoveu a renovação nas letras portenhas. Arlt abandona o beletrismo reinante até então, quando se cultivava uma espécie de purismo parnasiano, tentativa de manter a identidade da literatura nacional. Seus textos abordam a sordidez do homem comum, que vive em meio a dificuldades e num constante flerte com a vida fora da lei. Seu estilo narra as vilezas e as grandezas de personagens que poderiam ser chamados de indolentes. Hoje, ele é considerado o mentor de grandes autores latino-americanos, como Bolaño e o próprio Piglia.

Nas discussões sobre literatura, entre os personagens e nas próprias cartas trocadas entre Marcelo e o sobrinho, desfilam também Proust, Joyce, o filósofo Wittgenstein e principalmente Kafka, a quem é atribuído um diálogo com Hitler, no Café Arcos em Praga entre 1909 e 1910, quando o precursor do nazismo era um obscuro pintor e desertor do serviço militar. “Kafka faz em sua ficção, antes de Hitler, o que Hitler lhe disse que ia fazer”.

Assim como o xadrez de Tardewsky, jogo passível de inúmeras variações, onde as peças só estão em local fixo no início da partida, a literatura permite infinitas combinações, e aquelas que revolvem os sedimentos da nacionalidade acabam por potencializá-la.

Respiração artificial
Ricardo Piglia, tradução de Heloisa Jahn
Companhia das Letras, 197 páginas

sábado, dezembro 01, 2012

Raduan Nassar, um clássico da literatura

Escrever sobre escritores clássicos contemporâneos não é tarefa fácil, pois nada melhor do que o passar do tempo como método eficaz para avaliar as obras. O crítico deve comportar-se como um juiz experiente, não pode julgar sob o clamor das ruas, ou sob o reflexo desse clamor, que sempre transparece nas listas dos livros mais vendidos. Terry Eagleton, intelectual e escritor inglês, ex-professor da Universidade de Oxford, afirma que ao assumir a cátedra de literatura inglesa em 1992 na mesma universidade, a literatura estudada até então chegava apenas ao início de 1900. Os professores, que ocuparam a mesma cátedra antes dele, consideravam que a distância ideal para a aventura crítica seria em torno de um século.

Faço essas conjecturas no momento em que pretendo alinhavar um artigo sobre Raduan Nassar, autor brasileiro que se consagrou com a novela Um copo de cólera e, sobretudo, com o romance Lavoura Arcaica. Raduan nasceu em 1935, em Pindorama, São Paulo, publicou seus dois principais livros em meados da década de 1970 e, em 1984, abandonou a literatura para viver recluso num sítio, no interior do mesmo estado.

É consenso entre a crítica afirmar que o autor de origem libanesa, apesar de vivo e de obra pequena e recente, já se tornou clássico. Seus livros estão traduzidos em muitos idiomas. Nas faculdades de letras do Brasil e mesmo em muitas do exterior, já se tornou obrigatório estudá-los.

Não precisamos, portanto, ter a mesma precaução dos circunspectos professores de Oxford, que achavam suspeita a literatura recente. Sobre a obra de Nassar, esse argumento é frágil e fácil de ser refutado.

Mas, para isso, perguntamos: o que torna clássico um autor? Mais precisamente: o que tornou Raduan Nassar um clássico da literatura brasileira?

Em primeiro lugar, um clássico é avaliado como tal pela profundidade que sua obra alcança ao abordar temas que se relacionam com a vida, isto é, com o âmago do humano. Uma obra também torna-se clássica quando o autor consegue trabalhar a linguagem e elevá-la ao nível do “sublime”. Nesses dois pontos, o autor de Lavoura arcaica é mestre.

Na abordagem da família de características patriarcais, Raduan consegue dissecar o sistema nervoso de um grupo de imigrantes que procura sobreviver através do próprio ethos. Um pai tenta impor sua moral, sua fé, enfim, sua lei, à mulher, aos filhos e a todos que o cercam. Mas ele tem a visão turva, não conta com o dissenso. Talvez aqui se apresente uma das principais características do ser humano: o direito à liberdade. Quando ela não é respeitada, surge o conflito. Portanto, a princípio, teríamos um clássico porque o autor expõe com maestria a questão da liberdade. Isso, no entanto, não seria suficiente para elevá-lo ao panteão dos melhores escritores. Ainda faltariam o trabalho com a linguagem e a elaboração da estrutura narrativa. Mas Nassar sabe trabalhá-las com perfeição, conduzindo a língua portuguesa a meandros onde predomina o mais absoluto requinte. Poderíamos dizer que o seu poder narrativo invade a seara da poesia, e a sua prosa convive de modo harmonioso com o gênero lírico.

Há ainda um elemento a mais, e talvez fundamental em sua obra. Raduan Nassar explora o mito e o trabalha de modo bastante eficaz ao tocar em concepções conceituais formadoras da civilização.

Um parêntese. Todo autor que se tornou clássico navegou nessas águas, sobreviveu a tempestades e muitas vezes a naufrágios. Foi assim com Homero, Eurípedes, Dante, Shakespeare, Dostoievsky, Joyce e, para citar mais um brasileiro, com Nelson Rodrigues. Claro que há muitos outros, a nível nacional e universal, mas interrompo a lista nesse último para não me tornar enfadonho.

O autor de Um copo de cólera mergulha em alguns dos principais mitos de formação e manutenção da sociedade civilizada. Um deles é o da negação ao incesto. Numa sociedade que precisa voltar-se para fora, que necessita de relações extrafamiliares, o incesto isolaria os indivíduos não permitindo o intercâmbio, a negação e/ou a aceitação das diferenças. Outro ponto que os seus livros mostram é o predomínio da pulsão, melhor dizendo, da pulsação dos desejos, enfim, da violenta manifestação da emoção sobre a razão.

Um assunto que pode ser bastante explorado na obra de Raduan Nassar é o da tentativa de formação da razão e de sua superação através do transbordamento dos desejos, até mesmo dos mais recônditos. Na história da humanidade a razão sempre se mostrou frágil, sempre se apresentou como uma construção. Na verdade, a razão realiza-se para poucos, e acaba por sobreviver apenas como teoria. Talvez o racionalismo nunca tenha existido, e isso serviria de munição suficiente para dinamitar as teorias ditas pós-humanas, que pretendem atestar a morte do "Racionalismo Clássico".

Na Oréstia, de Ésquilo, em determinando momento, um dos personagens grita: “queira a ira de todos os homens contra si, mas não a ira de um dos deuses”. Se até mesmo os deuses gregos se mostraram irados, desequilibrados e tomados pela emoção, como poderia o humano viver a razão pacificamente?

Logo, quando desejamos verificar se um autor tem a dignidade de um clássico, precisamos observar se suas obras trabalham o fracasso da razão; se soube mostrar que a razão é apenas uma construção sustentada por alicerces extremamente frágeis. Assim é a vida humana, assim é a humanidade. E Raduan Nassar, através da ira do patriarca, mostra que o ser humano sempre esteve mais próximo de colocar tudo a perder do que de erigir um mundo sólido. Ou melhor, nos dias conturbados de hoje, é lícito afirmar que a solidez do mundo, ou seja, o predomínio da razão, é apenas uma questão de crença. Isso não quer dizer que devemos abandoná-la (a razão). Essa é a tensão que sustenta o humano, a mesma tensão que mostra a necessidade de cada obra de arte.