sábado, julho 21, 2012

Personagens surpreendidos pela modernidade

Resenha de Tévye, o leiteiro, de Scholem Aleikhem, ed. Perspectiva 

Haron Gamal - especial para O Globo (Caderno Prosa e Verso), publicado em 21/04/2012

A obra literária – no caso, aqui, a narrativa – não apresenta sua potencialidade apenas no relato, por mais surpreendente que ele possa parecer. O modo utilizado para transmiti-lo é que o potencializa e surpreende. Assim se pode observar desde as narrativas homéricas, passando pela Bíblia, caso a encaremos como literatura, até desaguar nos autores que se tornaram clássicos. Dante, Shakespeare, Flaubert, Machado de Assis, Proust, James Joyce, entre outros, não surpreenderam apenas pelo conteúdo de suas obras. O que mais chama a atenção no que escreveram e que serve de fator determinante para torná-los imprescindíveis é, sobretudo, o artificio que utilizaram para contar suas histórias. A carpintaria narrativa, portanto, acaba por se tornar o fiel da balança quando se deseja emitir juízo de valor e apontar se uma obra pertence ou não ao universo da alta literatura.

Apesar de outras as circunstâncias e do caráter peculiar da cultura que representa, Scholem Aleikhem bem que poderia pertencer a esse restrito clube dos clássicos.

A edição em português de sua obra principal, Tévye, o leiteiro, é constituída de uma carta introdutória e nove capítulos. As narrativas apresentam-se em forma de falso diálogo. Durante as histórias que relata, o personagem-narrador se dirige a ninguém menos do que ao autor do livro, o próprio Scholem. Mas o autor-ouvinte, assim como o interlocutor de Riobaldo em Grande Sertão: Veredas, nada replica. Tal artifício proporciona à narrativa a característica de pertencer à oralidade. Então nos vem à mente o texto “O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, do filósofo Walter Benjamim.  Como bem observa a professora da USP, Berta Waldman, na introdução: “Na novela de Scholem Aleikhem, o pretenso autor parece delegar ao narrador a autoria da obra, porque este, além de ser o depositário da experiência, estava, em algum momento, no mesmo nível de seus interlocutores”.

Para Benjamim, a ação de contar uma história fazia parte de uma experiência de sentido pleno, sentido que se tornava cada vez mais raro à medida que o capitalismo avança e se consolida.

Outro fator importante desse modo de narrar, com Tévye sempre a encontrar ou a fazer uma visita ao autor, é que essas cenas nos remetem a uma prática conhecida, surgida inclusive no meio judaico, a psicanálise. Há de se conferir que o jovem Freud é contemporâneo a Scholem, embora nada indique que se tenham conhecido nem que o criador de Tévye tivesse alguma informação sobre as primeiras experiências do médico vienense.

As narrativas do leiteiro são as de quem pertence ao universo do schtetl, uma organização comunitária pré-moderna e pré-burguesa, de economia fechada, situada no universo de uma Rússia ainda czarista. Percebem-se o riso, muitas vezes de si próprio, e a constante melancolia em que os personagens se veem mergulhados. A modernidade avança e surpreende o leiteiro através do comportamento de suas sete filhas – elas passam a querer ser donas do próprio destino. Ao mesmo tempo, o meio judaico sempre se sente ameaçado por pogroms e cercado pela miséria. Desta, o personagem quase sempre se safa com o auxílio de seu cavalinho. O animal não apenas lhe serve para puxar a carroça e levar os potes de leite, mas também de interlocutor. Scholem, num processo de animização da natureza, proporciona ao texto profunda reflexão sobre a solidão.

Tévye a todo o momento está a citar as leis sagradas, o Talmud e seus comentaristas. Mesmo sendo de pouca cultura, como a maioria dos judeus do schtetl, ele vê no estudo e na sabedoria um meio de superar seus oponentes.

As narrativas, publicadas inicialmente em forma de folhetim na imprensa ídiche da Europa oriental e depois na dos Estados Unidos, representam uma cultura que se desagrega devido ao aumento do antissemitismo e da imigração forçada. Essa cultura, pouco a pouco, passa a habitar apenas as prateleiras das bibliotecas, principalmente depois do avanço do nazi-fascismo.

Embora o périplo de Tévye tenha sido adaptado já em 1915 pelo próprio Scholem para a peça teatral que ficou conhecida como “O violonista no telhado”, a qualidade e o alcance dos textos narrativos originais publicados agora se situam num outro patamar. Na adaptação para o teatro, não foi possível o diálogo de Tévye com o próprio autor nem são bem resolvidas as situações em que a própria língua apresenta-se como uma das principais personagens.

Capítulo à parte teria de ser escrito a respeito da tradução de J. Guinsburg. O conhecido professor, autor e tradutor consegue recriar em português o ritmo e a sintaxe do ídiche, fazendo o leitor perceber, através de um texto em que o significante é ressaltado, o lugar sempre precário a que esteve submetido o povo judeu, sobretudo o do leste europeu.

sábado, julho 14, 2012

Silêncio e plenitude na narrativa de Per Johns

“As palavras nos atam ao já vivido. Só quando amadurecem em silêncio restituem-nos a plenitude prometida”, diz o narrador ainda nas primeiras páginas de Hotéis à beira da noite (Tessitura Editora – Belo Horizonte, 2010), o mais recente livro de Per Johns. A afirmação, grosso modo, não deixa de reiterar a literatura do autor brasileiro, que se desenrola também quase em silêncio, distante do burburinho, ou mesmo do ruído, espetáculo a que foi transformado todo tipo de arte. A obra de Johns, certeira, sem outros objetivos que não o próprio fazer artístico e a discussão da condição humana, temáticas sempre presentes nos grandes escritores, marcha sólida, sem precisar dos amparos da cultura de massa, incluído aí o cinema, modelo intelectual que alguns “pensadores” introduziram como imprescindível para discutir o mundo a partir do século 20. Grande parte deles chegou a se interrogar se a literatura ainda valia a pena, se, solitária, ainda teria capacidade de estabelecer e discutir questões. Vão espalhafato. A arte das palavras só perdeu terreno na mente incauta daqueles que se afiguravam positivistas e tecnocêntricos. Hoje, submersos na assepsia dos chipes e na velocidade dos circuitos, eles se perguntam: a serviço de que está a razão? Da reflexão ou do incremento cada vez mais inclemente de uma sociedade de massa voraz e lucrativa, em que o humano tornou-se apenas um detalhe?  Ri-se, enquanto isso, a literatura, na sua sólida e ao mesmo tempo movediça morada, no seu silêncio reverberador. Mesmo que não passem os ruídos, mesmo que perdure o festeiro e sedutor carnaval das imagens, cada vez mais presente e possível de ser manipulado pelo simples deslizar de dedos sobre o teclado, sempre pesará mais o lado daqueles que resistiram contra o irrefletido abandono da primazia das palavras.


Lembrando seus livros anteriores, sobretudo Aves de Cassandra e Cemitérios marinhos às vezes são festivos, não nos surpreende o personagem principal de Hotéis à beira da noite, alguém que se move continuamente, alguém sempre a mudar de hotel, hospedando-se primeiro no antigo Glória para, logo a seguir, embarcar para Zurique, e remar na canoa de Joyce – que ali viveu e deixou marcas –, chegando até mesmo a estabelecer diálogo com o autor de Ulisses. O mais famoso de todos os irlandeses lhe segreda: “Não diga nada. Fale comigo sem falar, essa gente gosta de mim, mas não gosta de minha verdade. Gosta de quem não sou.” E toda a narrativa de Hotéis vai jogar com esse duplo em relação ao personagem principal, alguém que é e não é, alguém que tem uma verdade que não é a verdade dos outros. Um homem que foge da pele de quem foi, tendo decretado a própria morte, e que tem no seu encalço personagens verdadeiros, digamos assim, gente de carne e osso, mas, ao mesmo tempo, seus fantasmas também estão a persegui-lo.

A viagem pode ser vista como uma experiência metafórica. O trajeto a ser percorrido apresenta, ao mesmo tempo, a inviabilidade. Tudo acontece como se o personagem constatasse ser impossível a existência. Então, é preciso fazer o caminho inverso: procurar referências no mundo afetivo e, sobretudo, no universo da literatura, estabelecendo diálogos com as grandes obras e autores. A arte se apresenta como único lugar em que a viagem é possível, “navegar é preciso, viver não é preciso” e navega-se nessas águas, às vezes turvas, como um meio de tentar encontrar o seu próprio eu. A literatura torna-se a trilha não só da busca a si mesmo, mas também sua razão de vida.
Coriolano Warming, o narrador protagonista, vai de hotel em hotel, até chegar à terra de seus antepassados, na antiga Dinamarca. Viaja já no limiar da existência, e está o tempo todo em busca de um sentido, embora tenha consciência de que, para a vida, não há sentido algum. A moradia sempre provisória revela a precariedade da condição humana, a solidão, enfim. Vez ou outra, procurado até mesmo por policiais, vive uma espécie de paranóia. O passaporte falso jamais é descoberto, mas as autoridades insistem em estar nos seus calcanhares constantemente à procura de uma pessoa que, na verdade, não é ele. Na lista de nomes, é confundido até mesmo com um suicida, e, numa tirada kafkiana, retruca: “O senhor diz que tenho que provar que estou vivo.”

O não lugar, problemática de seus outros livros, surge de novo de forma ainda mais contundente. Onde quer que Coriolano esteja, é estrangeiro. Os funcionários dos hotéis onde se hospeda olham-no com suspeição a ponto de confessar-lhe: “seu olhar é o de quem procura um pouso e não o encontra neste mundo de Deus, que nunca olha de frente, só de esguelha, um tanto temeroso, assustadiço.”

Se em Aves de Cassandra o autor nos oferece um romance de formação, e em Cemitérios uma narrativa da maturidade, neste Hotéis ele nos apresenta a inviabilidade, o beco sem saída. Não só em relação a Coriolano Warming, mas a todo ser humano que se põe a pensar com seriedade a questão existencial. O autor encontra apenas na arte o único lugar possível para questionar e esquadrinhar essa condição, em toda plenitude. Talvez Per Johns, na literatura brasileira, seja o único autor que levou mais a fundo a discussão de O mundo como vontade e como representação, de Schopenhauer.

De intensa densidade poética é a última parte do livro, denominada: “Pequenas prosas de um breviário”. A pretexto de procurar a paz, longe da civilização, o personagem se atira à sua ultima aventura: compra uma palhoça num recanto rústico do litoral paulista e vai viver entre os caiçaras locais. Na pequena casa, recebe de um morador, “uma espécie de pai de santo”, um breviário de um artista que morou na mesma casa e que desapareceu, deixando como vestígio apenas o caderno de notas. Já que a literatura permite vários artifícios, neste, Johns vai discorrer, com liberdade maior, sua veia poética e filosófica: “Desmobilize-se a casa herdada [...]. Mas deixem de fora as ruínas para que possam rebrotar como ervas de ninguém, levadas pelo oceano largo da vida...”

E, para terminar, fazendo um contraponto com o que afirmei no começo deste texto, quando situei a literatura de Per Johns como irmã do silêncio, demarcadora do duplo e, por paradoxal que possa parecer, mapeadora do não lugar, poderíamos ainda perguntar: mas, onde a literatura, em meio ao ruidoso mundo de hoje? Responderíamos com as palavras do próprio autor, no pequeno capítulo denominado “Terra Prometida”: “Ela está onde sempre esteve. Em todos os lugares e em lugar nenhum.”

sábado, julho 07, 2012

A febre da poesia

A ideologia avança sutil, desliza como o surfista hábil no cimo da onda maior, torna-se o que há de mais natural no mundo. Quando damos por nós, percebemos que não nos ocorreu perguntar: como a indústria, como o comércio das pranchas?

No universo das palavras, nada acontece de muito diferente. Elas se vão multiplicando como não houvessem os fatos, como se o que expressam não pesasse na sentença que proferem.

Alguém escreve um conto, um ensaio, um poema, ou mesmo um romance. No momento em que se dá o toque suave da ponta dos dedos sobre o teclado, não lhe vem à mente que suas ideias e palavras já foram por demais utilizadas, algumas vão até desbotadas, precisando de nova cor. Todos os textos que o pretenso escritor leu durante a vida, que ouviu, e mesmo os pedaços de frases que lhe passaram pelos olhos aqui e ali acabam de certa forma metabolizados naquilo que ele chama de sua obra original. Portanto, lutar com palavras é a luta mais vã. O que há de novidade? O quê, de repetição?

Para destronar a ideologia, somente a poesia, se mal que me exceda a rima. E veio um cineasta nos alertar sobre isso, sobre a ideologia. Logo alguém que lida com imagens. Já pensaram na primeira aula do curso de cinema? Cinema é feito de imagens. Truísmo? Mas é necessário dizer. Caso contrário, alguém filma um romance stricto sensu, inclusive mostrando as páginas do livro, e há de pensar que fez um filme. Mas, voltando ao cineasta. Veio ele para mostrar o que só cabe à poesia dizer. E as imagens? Não importam, o que vale é a poesia.

Assim me pareceu A febre do rato, de Cláudio Assis. Fui ao cinema meio temeroso. Qualquer tentativa de mexer em time que está ganhando, trata-se de pura loucura (exemplo da ideologia!). O mundo dos negócios, esse nosso. No entanto, a poesia surge na voz de um deserdado que desfila ora pelas ruas do Recife, num automóvel velho com alto-falante na capota; ora num barco rústico pelo rio, pelos canais, pelo Capibaribe. E a poesia é forte, ela tem a febre do rato.

O que seria essa febre, afinal? Vendo o filme, concluímos que é a potência das palavras, a celebração do não celebrável, o encontro com a alegria. Esta, como a poesia, só existe se fora do lugar.

Haverá quem diga que o filme privilegia cenas chulas, que banaliza o sexo, a figura da mulher e, sobretudo, que há uma escarrada de maconha e de cachaça. Portanto, como pode haver poesia nisso? Eu responderia: perguntem a Baudelaire.

Mas as cenas do longa de Assis, são apenas suportes para a poesia, assim como o corpo é suporte para o prazer e para a alegria. As cenas, na verdade, mostram a insignificância do cinema ante a poesia. E a voz do poeta, em constante vibração, quando soa social lembra João Cabral; quando musical, o santo Chico que está no céu. Não o de Assis, mas o Science.

E a ideologia? Está no subtexto, nas interseções de vários textos. Não sou partidário da semiologia, de releituras nem de transdisciplinaridades. Nomes tão em moda, porém mais velhos que Homero. Homero, o homem; não Homero, a obra. O único modo de denunciar a ideologia é mostrar a sua contraparte, a poesia. Mas não existe poesia ideológica? Respondamos não. Poesia ideológica, por mais escolhidas as palavras, por mais sonoras, não é poesia, ainda que a avalize alguma academia.


Daí, o que poderia ser mais contra-ideológico do que o corpo, utilizado para uma espécie de prazer total, o prazer não convencional? Alguns chegam a nomear as cenas do filme de orgiásticas. O prazer não é apenas a dois, mas a três, a quatro, a cinco. Entre jovens e velhos (ou velhas). Quando entra na história o amor monogâmico, entra Eneida, uma mulher, mas também uma obra. É a tragédia que se avizinha. Eneida, de Virgílio, tem uma viagem e uma guerra, a destruição de Troia e a fundação de Roma. Seriam lendas? Mas é do mito, da lenda, enfim, da narrativa, que se funda a ideologia. Mas quem virá a público denunciar suas pernas de barro?

Então, em cena o poeta de Claudio Assis. O cineasta conta que o descobriu nas ruas do mesmo Recife. Um poeta que canta sua poesia à viva voz na urbe, que a distribui num jornaleco montado a mão e copiado, um poeta que comemora a poesia no abraço entre amigos, em meio a copos de cerveja e copitos de cachaça. Tudo tão destrutivo... Que exemplo nefasto para a juventude! Frases de uma senhora que saía do cinema.

O que faz a ideologia? Perpetua a especulação na bolsa de valores? Perpetua a especulação imobiliária observável ao fundo, enquanto homens caranguejos explicam numa das margens do Capibaribe como fazem para tirar seu sustento da lama ribeirinha?

A febre do rato, de Claudio Assis, aponta o poder dionisíaco das palavras. A febre do rato não é cinema.