sexta-feira, dezembro 14, 2012

Ricardo Piglia discute em seu romance a natureza da literatura

Tardewsky, personagem de Ricardo Piglia no romance Respiração artificial, afirma: “a natureza não existe mais, só nos sonhos. Ela, a natureza, só se faz notar sob a forma de catástrofe ou então se manifesta na lírica. Tudo o que nos rodeia é artificial: tem as marcas do homem.” O livro, agora em edição de bolso, foi publicado recentemente pela Companhia das Letras.

O autor quando diz, através de seu personagem, que dos dois lugares possíveis para a manifestação da natureza um deles é a lírica, ou seja, a própria literatura, ele quer dizer que essa literatura passa a ter enorme responsabilidade. Então, é necessário aprofundar a questão.

A natureza, como algo absoluto, apresenta-se como total impossibilidade. No filme “Matrix”, dos irmãos Wachowski, no momento em que toda a parafernália tecnológica para de funcionar, alguém diz: “Bem vindo ao deserto do real”. Logo, retirada toda a ilusão criada pelo homem, mesmo as ilusões mais concretas, a natureza seria o deserto, o mar revolto, a densa floresta onde nenhum humano penetrou, ou algum tipo de desastre natural impossível de ser contido pelos seres humanos e por seus artifícios. Partindo-se do princípio de que nos dias de hoje tudo pode ser previsto e medido, estão aí os instrumentos cada vez mais precisos oriundos da avançada tecnologia, pelo menos se tornou possível orientar as pessoas a dirigirem-se a abrigos, ou mesmo aconselhá-las a abandonarem os locais de risco na iminência de catástrofes. Diminuída a surpresa de a natureza manifestar-se, resta a ela a literatura. Como isso, no entanto, poderia acontecer?

A meu ver, de dois modos distintos. O primeiro através da poesia, do teatro e da narrativa, mesmo representando toda a violência que a natureza humana é capaz de comportar; o segundo por meio da idealização daquilo que costumamos nomear de catástrofe, ou seja, do sublime kantiano.

A natureza habita com pleno direito de posse, desde a mais longínqua antiguidade, o espaço literário. Por outro lado, é certo que essa mesma natureza, quando crua, é devoradora. Basta dizer que morreríamos caso fôssemos abandonados a seus cuidados. Em um mundo onde tudo funciona a partir de um clique, obter fogo com dois pedaços de madeira ou mesmo nos defender de animais ferozes não seriam nossas especialidades.

Isso, no entanto, é uma questão apenas adjacente no livro de Piglia. O que a narrativa aborda e discute é a natureza da literatura.

Um jovem escritor extremamente culto, que acaba de publicar o seu primeiro livro, recebe carta de um tio que mal conheceu e que se encontra desterrado. Ele deseja contar-lhe novos fatos, já que o livro do sobrinho tem como tema a própria família. “Ninguém jamais fez boa literatura com histórias de família”, afirma. A partir deste fragmento, vamos descobrindo como se deve fazer literatura. Não apenas por causa do conselho desse tio chamado Marcelo Maggi, mas através das situações que Piglia nos apresenta.

Cartas vão sendo trocadas até que o personagem-escritor Emilio Renzi resolve viajar a Concordia, cidade da Argentina na Província de Entre Rios. Sua intenção é encontrar o tio. Mas quem vai recebê-lo na estação ferroviária é Tardewsky, um imigrante polonês que fugiu do nazismo e vive exilado no país desde o começo da Segunda Guerra Mundial. Alguém que joga bem o xadrez e que conheceu James Joyce. Ele, porém, é um homem deslocado, definitivamente fora de sua terra, despossuído de sua língua materna. Tardewsky ocupa o lugar sempre movediço e transitório do imigrante, espaço visceral de estranhamento, isto é, ocupa na verdade o não lugar, o mesmo lugar itinerante da própria literatura.

O eixo narrativo do romance situa-se na década de 1970, período em que vigorou uma ditadura militar das mais sanguinárias que chegaram ao poder na Argentina. Renzi, além de receber uma caixa com escritos de Enrique Ossorio, papéis que possibilitariam recuperar parte da história do país, discute não apenas política, mas, sobretudo, literatura nacional contemporânea e mundial.

Num trecho, somos surpreendidos pela seguinte afirmação: “a literatura argentina não existe mais”. “E Borges?”, retruca o interlocutor. “Borges, disse Renzi, é um escritor do século 19.” Aqui é introduzido Roberto Arlt (1900-1942), escritor argentino descendentes de imigrantes europeus pobres a quem se atribui o título de introdutor do Modernismo no país e que promoveu a renovação nas letras portenhas. Arlt abandona o beletrismo reinante até então, quando se cultivava uma espécie de purismo parnasiano, tentativa de manter a identidade da literatura nacional. Seus textos abordam a sordidez do homem comum, que vive em meio a dificuldades e num constante flerte com a vida fora da lei. Seu estilo narra as vilezas e as grandezas de personagens que poderiam ser chamados de indolentes. Hoje, ele é considerado o mentor de grandes autores latino-americanos, como Bolaño e o próprio Piglia.

Nas discussões sobre literatura, entre os personagens e nas próprias cartas trocadas entre Marcelo e o sobrinho, desfilam também Proust, Joyce, o filósofo Wittgenstein e principalmente Kafka, a quem é atribuído um diálogo com Hitler, no Café Arcos em Praga entre 1909 e 1910, quando o precursor do nazismo era um obscuro pintor e desertor do serviço militar. “Kafka faz em sua ficção, antes de Hitler, o que Hitler lhe disse que ia fazer”.

Assim como o xadrez de Tardewsky, jogo passível de inúmeras variações, onde as peças só estão em local fixo no início da partida, a literatura permite infinitas combinações, e aquelas que revolvem os sedimentos da nacionalidade acabam por potencializá-la.

Respiração artificial
Ricardo Piglia, tradução de Heloisa Jahn
Companhia das Letras, 197 páginas

sábado, dezembro 01, 2012

Raduan Nassar, um clássico da literatura

Escrever sobre escritores clássicos contemporâneos não é tarefa fácil, pois nada melhor do que o passar do tempo como método eficaz para avaliar as obras. O crítico deve comportar-se como um juiz experiente, não pode julgar sob o clamor das ruas, ou sob o reflexo desse clamor, que sempre transparece nas listas dos livros mais vendidos. Terry Eagleton, intelectual e escritor inglês, ex-professor da Universidade de Oxford, afirma que ao assumir a cátedra de literatura inglesa em 1992 na mesma universidade, a literatura estudada até então chegava apenas ao início de 1900. Os professores, que ocuparam a mesma cátedra antes dele, consideravam que a distância ideal para a aventura crítica seria em torno de um século.

Faço essas conjecturas no momento em que pretendo alinhavar um artigo sobre Raduan Nassar, autor brasileiro que se consagrou com a novela Um copo de cólera e, sobretudo, com o romance Lavoura Arcaica. Raduan nasceu em 1935, em Pindorama, São Paulo, publicou seus dois principais livros em meados da década de 1970 e, em 1984, abandonou a literatura para viver recluso num sítio, no interior do mesmo estado.

É consenso entre a crítica afirmar que o autor de origem libanesa, apesar de vivo e de obra pequena e recente, já se tornou clássico. Seus livros estão traduzidos em muitos idiomas. Nas faculdades de letras do Brasil e mesmo em muitas do exterior, já se tornou obrigatório estudá-los.

Não precisamos, portanto, ter a mesma precaução dos circunspectos professores de Oxford, que achavam suspeita a literatura recente. Sobre a obra de Nassar, esse argumento é frágil e fácil de ser refutado.

Mas, para isso, perguntamos: o que torna clássico um autor? Mais precisamente: o que tornou Raduan Nassar um clássico da literatura brasileira?

Em primeiro lugar, um clássico é avaliado como tal pela profundidade que sua obra alcança ao abordar temas que se relacionam com a vida, isto é, com o âmago do humano. Uma obra também torna-se clássica quando o autor consegue trabalhar a linguagem e elevá-la ao nível do “sublime”. Nesses dois pontos, o autor de Lavoura arcaica é mestre.

Na abordagem da família de características patriarcais, Raduan consegue dissecar o sistema nervoso de um grupo de imigrantes que procura sobreviver através do próprio ethos. Um pai tenta impor sua moral, sua fé, enfim, sua lei, à mulher, aos filhos e a todos que o cercam. Mas ele tem a visão turva, não conta com o dissenso. Talvez aqui se apresente uma das principais características do ser humano: o direito à liberdade. Quando ela não é respeitada, surge o conflito. Portanto, a princípio, teríamos um clássico porque o autor expõe com maestria a questão da liberdade. Isso, no entanto, não seria suficiente para elevá-lo ao panteão dos melhores escritores. Ainda faltariam o trabalho com a linguagem e a elaboração da estrutura narrativa. Mas Nassar sabe trabalhá-las com perfeição, conduzindo a língua portuguesa a meandros onde predomina o mais absoluto requinte. Poderíamos dizer que o seu poder narrativo invade a seara da poesia, e a sua prosa convive de modo harmonioso com o gênero lírico.

Há ainda um elemento a mais, e talvez fundamental em sua obra. Raduan Nassar explora o mito e o trabalha de modo bastante eficaz ao tocar em concepções conceituais formadoras da civilização.

Um parêntese. Todo autor que se tornou clássico navegou nessas águas, sobreviveu a tempestades e muitas vezes a naufrágios. Foi assim com Homero, Eurípedes, Dante, Shakespeare, Dostoievsky, Joyce e, para citar mais um brasileiro, com Nelson Rodrigues. Claro que há muitos outros, a nível nacional e universal, mas interrompo a lista nesse último para não me tornar enfadonho.

O autor de Um copo de cólera mergulha em alguns dos principais mitos de formação e manutenção da sociedade civilizada. Um deles é o da negação ao incesto. Numa sociedade que precisa voltar-se para fora, que necessita de relações extrafamiliares, o incesto isolaria os indivíduos não permitindo o intercâmbio, a negação e/ou a aceitação das diferenças. Outro ponto que os seus livros mostram é o predomínio da pulsão, melhor dizendo, da pulsação dos desejos, enfim, da violenta manifestação da emoção sobre a razão.

Um assunto que pode ser bastante explorado na obra de Raduan Nassar é o da tentativa de formação da razão e de sua superação através do transbordamento dos desejos, até mesmo dos mais recônditos. Na história da humanidade a razão sempre se mostrou frágil, sempre se apresentou como uma construção. Na verdade, a razão realiza-se para poucos, e acaba por sobreviver apenas como teoria. Talvez o racionalismo nunca tenha existido, e isso serviria de munição suficiente para dinamitar as teorias ditas pós-humanas, que pretendem atestar a morte do "Racionalismo Clássico".

Na Oréstia, de Ésquilo, em determinando momento, um dos personagens grita: “queira a ira de todos os homens contra si, mas não a ira de um dos deuses”. Se até mesmo os deuses gregos se mostraram irados, desequilibrados e tomados pela emoção, como poderia o humano viver a razão pacificamente?

Logo, quando desejamos verificar se um autor tem a dignidade de um clássico, precisamos observar se suas obras trabalham o fracasso da razão; se soube mostrar que a razão é apenas uma construção sustentada por alicerces extremamente frágeis. Assim é a vida humana, assim é a humanidade. E Raduan Nassar, através da ira do patriarca, mostra que o ser humano sempre esteve mais próximo de colocar tudo a perder do que de erigir um mundo sólido. Ou melhor, nos dias conturbados de hoje, é lícito afirmar que a solidez do mundo, ou seja, o predomínio da razão, é apenas uma questão de crença. Isso não quer dizer que devemos abandoná-la (a razão). Essa é a tensão que sustenta o humano, a mesma tensão que mostra a necessidade de cada obra de arte.

sexta-feira, novembro 09, 2012

"Matéria de memória"


Livro lançado pela primeira vez em 1962 mantém força visceral

Às vezes, no afã de procurar novidades em matéria de literatura, perdemos a oportunidade de ler o que se convencionou chamar de clássico. É o que pode acontecer caso deixemos de lado o romance de um ótimo autor que, apesar da idade avançada (86 anos), ainda se mantém ativo tanto escrevendo crônicas para a Folha de São Paulo, como fazendo comentários para a rádio CBN. Falo de Carlos Heitor Cony. Trato aqui de Matéria de Memória, sucesso editorial desde os anos 1960, que hoje se encontra na sexta edição.

Podemos perguntar: por que um livro torna-se clássico? Talvez a resposta não seja apenas porque conta uma boa história, mas por estabelecer e tentar responder questões que muitos outros não conseguiram.

Lançado pela primeira vez em 1962, a obra imediatamente alcançou sucesso de público e de crítica, fazendo Gilberto Amado comentar: “trata-se de um momento especial na nossa literatura”, levando-o a comparar o romance com A náusea, de Sartre. Só que com vantagem para o livro de Cony.

O enredo em especial resume-se à vida de três personagens. O pintor de quadros Tino, alcoólico inveterado; Selma, mulher independente que, durante o voo de volta da Europa para o Brasil, faz o balanço de sua vida; e João, membro disciplinado do Partido Comunista, a quem a esposa desprezou por considerá-lo homossexual.

Os três mantêm laços entre si, mas é bom que o próprio leitor descubra que ligações são essas. Apesar de o romance ser ambientado no Rio de Janeiro, durante a maior parte do tempo na zona sul carioca, a história poderia ter acontecido em qualquer grande cidade do Ocidente.

Num momento em que a literatura acomodou-se à forma consagrada do best-seller e que muitos autores já não tentam inovação alguma, Cony estabelece uma narrativa dividida em três partes, onde cada um dos personagens assume a narração fazendo transparecer seus desejos, suas frustrações e também suas idiossincrasias.

Começando por Tino, passando à Selma, a João, e por fim voltando ao primeiro personagem, a narração desenvolve-se com os personagens falando, sobretudo, da solidão e do abandono em que vivem. Apesar dos subterfúgios que a sociedade sempre pôde oferecer para que os problemas sejam esquecidos, os personagens, mesmo quando abastados, batem-se contra certa náusea de viver. Podemos aproveitar o famoso axioma do psicanalista Jaques Lacan: “a relação sexual não existe”. Isto é, as pessoas são incomunicáveis, não sendo possível nenhum tipo de relação.

Tino é considerado pela crítica especializada um pintor em decadência. Sheila foge de seus fantasmas viajando para o exterior, permanecendo três anos longe de todos. João esconde-se, de modo medíocre, em meio às fileiras de um partido político que, na verdade, já não apresenta nada de novo, pois ambos, o partido e ele, tornaram-se verdadeiros burocratas.

Quem se salva, talvez, conseguindo uma ponta de felicidade, é a empregada doméstica Enedina. Contratada por Tino para trabalhar apenas no período da manhã, acaba aceitando, a princípio em troca de dinheiro e depois por afeto, tornar-se sua amante.

Apesar de o romance dissecar o lado psicológico de cada personagem, eles transitam pelas ruas de um Rio de Janeiro de meados do século 20. Paira no ar certa expectativa do que a vida na cidade é capaz de oferecer como solução existencial e material para cada um. No fundo, o que sobressai, no entanto, é um profundo mal-estar. Nem mesmo dinheiro, bebidas, automóveis, sexo, viagens – ou qualquer outro artefato que a sociedade dos bem sucedidos oferece – podem lhes tirar o travo amargo da existência e do abandono.

É interessante ler esse romance no atual momento em que a intensa tecnologia se propõe como solução para muitos dos problemas dos seres humanos, mas esbarra na mesma náusea em que os personagens de Cony vivem submersos.

Deve-se prestar muita atenção às primeiras frases do livro, principalmente quando Tino afirma: “Não tenho mais nada. A rigor, talvez nunca tenha tido realmente coisa alguma”. Frases emblemáticas que apontam a trajetória fugaz não só do pintor, mas de cada um dos personagens retratados no romance. Por mais que se pense nos bens materiais, ou mesmo na possibilidade de alguém ser suprido pelo afeto, a narrativa de Cony desmente.

Para essa trajetória travada, há a ligeira insinuação de que pode haver uma saída. Ela estaria entre os humildes empregados e empregadas, que ainda acreditam na amizade, no afeto, enfim, no amor. A matéria de memória estaria, assim, não apenas na lembrança do que se poderia ter vivido, mas também nesse sentimento sutil e ao mesmo tempo visceral, que é capaz de manter no ser humano o gosto pela vida.

Matéria de Memória
Carlos Heitor Cony
Ed. Alfaguara, 195 páginas

sábado, outubro 20, 2012

As "bibliotecas" das escolas públicas

Afirmar que as bibliotecas escolares são de fundamental importância para o desenvolvimento do gosto pela leitura e pelo consequente aprendizado das crianças e dos adolescentes é um lugar comum. Mas não parece que entendem assim alguns governos estaduais e tantos outros municipais. Basta rápida visita a algumas escolas públicas para constatarmos o descaso com que o assunto é tratado.

Na maioria das vezes as bibliotecas, quando existem, transformaram-se apenas em depósitos de livros didáticos, tornando os livros de leitura inacessíveis a muitos jovens. Em alguns lugares, instalam-se no local até mesmo monitores de TV, revelando a vitória da cultura de massa sobre aqueles que deveriam ser seus críticos, os profissionais de educação. Outro ponto que deixa a desejar é a falta de pessoas qualificadas para assumir tanto a função de bibliotecário como, em escala menor, a de auxiliar de biblioteca.

Enquanto em quase todo o mundo as bibliotecas tornaram-se locais de extremo dinamismo, com a realização de rodas de leitura, palestras de escritores convidados, festas literárias etc., é comum, em nossas escolas, encontrarmos nesse setor a mais absoluta inércia, ficando muitas delas fechadas durante grande parte do horário diurno ou noturno por falta de funcionários ou pela impropriedade do local de funcionamento. Quando, de alguma forma, funcionam, é graças a professores que, apesar de afastados de sala de aula por motivos de saúde, dedicam-se voluntariamente a favor da leitura.

No momento em que muitos veem a solução para o aprendizado na presença maciça da informática nos meios educacionais, a guarda, a exposição de livros e o estímulo pela leitura não recebem o mesmo tratamento. Muitas escolas do município de Macaé tem pequeno espaço, insuficiente para o funcionamento de uma biblioteca. Tanto isso é verdade, que é comum nomear o local como “sala de leitura”. Outro problema premente é a falta de condições a muitos professores em estimular a leitura entre seus alunos, o que muitas vezes acontece devido à fraca estrutura física e cultural da escola.

Profissionais de educação tentam refletir, no mundo inteiro, sobre a melhor maneira de transformar a escola em local prazeroso, o que facilitaria muito a aprendizagem. Programas de mestrado e doutorado das mais diversas universidades têm disponibilizado recursos para a pesquisa no sentido de tornar a educação transformadora, mas ainda esbarramos em atitudes primárias, que revelam o amadorismo de gestões políticas. Tais administradores quando demonstram alguma preocupação querem saber apenas sobre números, não investindo na melhoria da qualidade do ensino.

Os gestores escolares, aproveitando o período de renovação nos municípios proporcionado pelas últimas eleições, deveriam dedicar-se à solução dessas questões. Não podemos nos orgulhar de uma educação de qualidade se não temos bibliotecas nas escolas, nada podemos fazer de bom para os alunos se amontoamos os livros em locais inadequados que chamamos de sala de leitura, muitas vezes com funcionamento precário e com pessoal despreparado.

Governadores, prefeitos, secretários de educação e cultura, diretores de escola e também professores precisam demonstrar que também são leitores, exigindo a implantação de bibliotecas equipadas em todas as escolas e zelando pelo seu bom funcionamento. Caso isso não aconteça, estarão demonstrando falta de cultura e revelando que ocupam suas funções apenas por interesses particulares, e não pelo bem da educação, da cultura, enfim, da construção de uma sociedade mais justa.

Um dado além: o descaso a que são relegadas as bibliotecas das escolas públicas está se alastrando também para as chamadas salas de informática, onde ao invés de as recentes conquistas tecnológicas proporcionarem proveitoso avanço cultural e social acabam por revelar que os investimentos estão sendo jogados na lata de lixo.

sexta-feira, outubro 05, 2012

A perpétua busca da literatura


Novo livro de Magalhães estabelece diálogos entre poetas, musas e períodos literários

Por Haron Gamal

Publicar resenhas sobre livros de literatura brasileira está se tornando um grande problema. É vasto o número de autores que se arriscam nessa seara, mas pouco o espaço para discutir suas obras. Uma das questões que angustiam muitos ficcionistas e poetas é a pouca divulgação dos seus trabalhos, o que faz muitos buscarem apadrinhamento no vasto aparato da cultura de massa, como nos jornais de grande circulação ou mesmo na TV. Em contrapartida ao grande número de publicações, observa-se que a nossa literatura, embora de nível elevado, carece na atualidade de escritores geniais.

Um autor que engrossa a média, podendo tornar-se genial daqui a alguns anos é Jorge Eduardo Magalhães. Além de escrever também para teatro, ele já está no seu quarto livro de ficção, tendo até agora como o de maior sucesso o cult: Vagando na noite perdida.

Seu último livro, O retrato de Perpétua, apresenta trama muito interessante. Um poeta solitário, que vende seus livros boca a boca, sobretudo à noite, encontra num sebo a obra de Ribeiro Gomes. Segundo o narrador, trata-se de um poeta da literatura portuguesa da primeira metade do século 19, autor que escrevia poemas a uma mulher idealizada, cujo nome é Perpétua. Ao mesmo tempo, o poeta de hoje descobre nas imagens de TV uma repórter muito semelhante a tal Perpétua do romantismo português. Assim como o poeta esquecido, o atual escreverá poemas para a sua musa da pós-modernidade. O que o livro apresenta de mais instigante é que o autor criou não só dois poetas, mas também dois tipos de literatura: uma nos moldes românticos, outra sob o ceticismo da contemporaneidade. O personagem chega a procurar sua musa na emissora de TV com o objetivo de presenteá-la com os poemas dedicados a ela, mas o encontro nunca se realiza.

O que se pode dizer é que a tensão interna deste pequeno romance é o diálogo entre a literatura do poeta esquecido, que viveu a maior parte do tempo em Portugal, e a do poeta dos dias atuais, homem que se relaciona com uma portuguesa pela internet, que frequenta centros de lazer masculino para namorar as prostitutas e que, mesmo assim, amarga uma tremenda solidão, vagando dias e noites pelas ruas do centro do Rio, tendo como companhia apenas a febre, que reaparece a cada anoitecer.

O que se pode sugerir para que Jorge Eduardo torne-se um autor de destaque na literatura brasileira contemporânea? Aconselho maior cuidado com a linguagem, sobretudo com a revisão, já que sua editora, a Multifoco, não é uma casa voltada para o fino acabamento de nenhum tipo de livro. Quem se aventura nesse mercado, não pode enviar para as lojas livros com erros grosseiros, como o que aparece logo no início e que está corrigido com corretor manual. Um autor, além de criador, não tem como dar conta de todas as etapas de sua publicação, por isso a necessidade de um bom revisor e de uma boa casa editorial. Isso evitaria erros como “imacular”, ao invés de “macular” (p. 68), “esquecia”, no lugar de “esquecida” (p. 69) etc.

Um problema estrutural, que poderia também ter sido sanado com olhar mais atento, ocorre na página 5. O narrador diz “Fazia quase dois anos que não via Priscila”; três parágrafos abaixo, está escrito: “Naquele mesmo ano, um pouco antes de conhecer Priscila...”. O que se deduz é que, no momento da primeira referência à mulher, o narrador encontra-se no presente, e que, na segunda, faz um flashback para contar como conheceu Priscila. Um bom revisor tiraria o segmento “naquele mesmo ano”  e tudo estaria resolvido.

A ideia de Jorge Eduardo é boa. Eu mesmo, como leitor experiente, fui averiguar sobre a suposta existência do poeta citado no livro. Como nada encontrei, escrevi ao autor, que me confessou ter sido tudo criação sua.

Uma vez que Magalhães tem verve para criar e citar autores fictícios, enganando até mesmo o resenhista, acredito que seu talento seja maior para olhar a própria obra com mais cuidado. Assim, daqui a algum tempo, não tardará a lermos um autor genuinamente carioca, que saberá retratar com esmero e minúcia as paixões e os sofrimentos dos habitantes desta cidade.

É digna de nota a passagem do livro em que o poeta está prestes a encontrar sua musa, a repórter de TV. Ela apresenta uma matéria ao vivo numa igreja ameaçada de desabamento, no centro da cidade. Na verdade, ele quer entregar-lhe, em mãos, o livro de sonetos que escreveu inspirando-se nela. Mas, num último momento, hesita:

“Não, uma musa não deve ser tocada. O poeta nunca deve se aproximar de sua amada. A musa deve ser sublimada, inatingível. Aquela era uma mulher bonita e qualquer contato, por menor que fosse, poderia desmistificá-la. Sentou no meio fio, escreveu uma breve dedicatória na contracapa do livro e pediu ao motorista da emissora para entregar a P.H. Agradeceu e foi andando sem olhar para trás. Tinha certeza de que Ribeiro Gomes nunca se aproximou de sua Perpétua.”

O retrato de Perpétua
Jorge Eduardo Magalhães
Anthology – Editora Multifoco, 89 páginas

sábado, setembro 22, 2012

Repetição e recepção

Os protestos que têm sacudido os países árabes nos últimos dias não são resultantes apenas da provocação partida de uma pessoa desqualificada, ou mesmo fruto do preconceito religioso contra o Islã. A questão é outra e mais profunda. Trata-se de consequência da opção desenfreada do mundo ocidental pelo fetiche proporcionado pela tecnologia e pela possibilidade do lucro cada vez mais multiplicador oriundo de tal escolha.

Inaugurado o mundo industrial, com a repetição avassaladora que as máquinas passaram a oferecer, não se pensou como essa opção coexistiria em sociedades que não privilegiam a ciência, mas os valores morais e/ou religiosos. Sabe-se que, em milênios de existência, parte da humanidade não enveredou por vias que diretamente compactuassem com a hegemônica, que é a da técnica.

As conquistas ocidentais, sobretudo as da área tecnológica, são frutos da liberdade. Intelectuais, técnicos e até mesmo burocratas não poderiam chegar ao nível de produtividade atingido caso não lhes fossem permitida a liberdade de pensamento, de pesquisa e de expressão. Acrescente-se também a concepção de que, pelo menos a princípio, privilegiar-se-ia a vida material, isto é, a concepção de existência cuja ética não mais levaria em consideração os valores metafísicos.

É certo que em muitos lugares, mesmo nos mais distantes e de cultura muitas vezes diversa, assimila-se o que foi produzido pelo Ocidente e, através de toda essa produção, consegue-se o sucesso almejado.

A partir dessa premissa, podemos pensar por dois flancos. O primeiro deles é que o mundo ocidental, capitaneado pelos Estados Unidos, sempre desejou estar à frente na ciência, não deixando de expandir por todo o globo os seus inventos, objetivando de imediato os consequentes lucros advindos deles. Não há país que não queria ganhar dinheiro, cobrar royalties por suas patentes, mas são poucas as vezes em que há o cuidado de se pensar se esses produtos farão bem ou mal a outros povos. Portanto, a partir do momento em que se possibilitou a disseminação do computador pessoal e, pouco tempo depois, da internet, não houve a preocupação com nenhum tipo de estudo sobre o impacto dessas tecnologias mundo afora, sobretudo em locais onde os valores não são semelhantes aos do Ocidente. Por outro lado, os países islâmicos, que assimilam a técnica produzida fora de sua órbita e a adotam para o seu progresso, precisariam refletir a respeito da origem dessa nova ciência. Ao adotarem o computador pessoal e os sistemas operacionais oferecidos por americanos e europeus, estão compactuando, ainda que tacitamente, com as crenças dos vendedores. É muito fácil utilizar a tecnologia estrangeira que, até certo ponto, serve de resposta às necessidade locais, mas, ao mesmo tempo, esquecer que essa mesma tecnologia não existiria em condições adversas à liberdade de pensamento, de pesquisa e de expressão.

Daí é que se há de refletir sobre a responsabilidade de tantas mortes ocorridas depois da exibição no Youtube de parte do filme dirigido por esse “suspeito” senhor americano. Apesar de seus antecedentes, não se pode nem se deve jogar sobre seus ombros toda a culpa de tantas atrocidades cometidas nos protestos em defesa de uma determinada concepção religiosa. A responsabilidade deve recair também sobre aqueles que pensaram a economia em termos mundiais e não imaginaram que vender significasse não apenas lucros, mas também perdas, muitas vezes contabilizadas através de vidas humanas,

Parte da responsabilidade deve ser atribuída ao outro lado. Caso não desejem compartilhar os mesmos valores do mundo ocidental, como os de liberdade de expressão (e mesmo o da não existência de Deus), deveriam manter-se alheios às tecnologias.

É muito fácil ao Ocidente impor seus produtos à roda do mundo como fetiche e como uma das possibilidades de hegemonia. Ao mesmo tempo, também é fácil ao mundo islâmico usufruir dessa mesma tecnologia e até certo ponto lucrar com ela mas não querer pagar o preço. Portanto, dividam-se as responsabilidades. O Ocidente com seu desenvolvimentismo desenfreado, e o Islã, caso queira privilegiar suas concepções religiosas e existenciais, que não se aproxime nem faça uso dos instrumentos que divulgam aquilo que chamam de blasfêmia.

Quem se utiliza dos dispositivos advindos de uma sociedade altamente tecnológica, que atropelou Deus e a metafísica, não pode exigir em contrapartida posições justificadoras.

sábado, setembro 15, 2012

Em todos os lugares, a todo momento


A potencialização da audiência e a celebração da imagem

Ao observarmos as celebridades do momento chegamos à conclusão de que elas só existem, na maioria das vezes, por causa daquilo que costumamos chamar de instrumentos de reprodução da cultura de massa.

É importante uma breve viagem pela História para entendermos como sempre ocorreu, ao longo do tempo, a divulgação e a manutenção das ideias que regeram e ainda regem o comportamento dos seres humanos.

Da Antiguidade até a Idade Média foram as religiões que fizeram esse trabalho. Os oráculos, ou os sacerdotes, tinham a função de divulgar a existência, a moral e a vontade dos deuses. Quando ainda não havia nenhum tipo de meios de comunicação, a voz daqueles que se incumbiam dos templos era o instrumento que formava a base de pensamento de cada povo. Na Grécia, escapando um pouco a esse costume, a discussão em academias e mesmo nas praças públicas fez determinadas ideias avançarem devido à ação de homens não religiosos. Assim surgiram os primeiros filósofos. O saber que transmitiam era de outra ordem e muitas vezes contrariava o que diziam os sacerdotes. A escrita foi o primeiro meio de comunicação para todo esse pessoal, uma espécie de modo de perpetuação do que tentavam transmitir. Mesmo com a maioria da população pouco letrada, a escrita fez as ideias desses pensadores sobreviverem.

O Império Romano, tendo a religião como estofo, expandiu duas ciências distintas, a militar e o direito; por muitas vezes paradoxais em suas atuações. Ambas tiveram força de persuasão e de convencimento, muitas vezes fazendo crer que o Império era justo. É bom lembrar que o direito tem certo sabor de religião, porque as primeiras leis foram baseadas em códigos consuetudinários, na verdade oriundos das crenças.

Na Idade Média a Igreja Católica tornou-se a grande mídia, e teve forte poder de convencimento. Além de se arvorar como representante de Deus na Terra, tinha o poder de vida e de morte, principalmente sobre aqueles que a contestavam. Mas, em dias de paz, o púlpito das igrejas era o que formava a ideologia. Os padres, sempre bons oradores, deram embasamento teórico às ações dos homens, mesmo que muitas delas escapassem ao que pregou Cristo: o perdão.

Com a invenção da imprensa e a perspectiva de reprodutibilidade das ideias, começou-se, ainda que de modo suave, a se anunciar o que estava por vir. As publicações, ao colocar em evidência seus autores, passaram a lhes proporcionar fama e respeito. Com a invenção da máquina a vapor, equipando as gráficas com velocidade antes impensada, os homens de letras viveram sua época de ouro.

A fotografia, ao ser criada, já possuía todo o aparato para lhe servir de suporte e catapultar o que anunciava de mais precioso: a reprodução da imagem, enfim, a publicidade. A perspectiva dessa reprodução em escala industrial constituiria, pouco a pouco, toda uma mitologia que superaria até mesmo as da Antiguidade, incluindo aí os deuses do Olimpo.

Quando Walter Benjamin discutiu as perspectiva de reprodutibilidade da arte a partir da fotografia, os integrantes do Nacional Socialismo, na Alemanha, já sabiam o que fazer com isso, só que não foi bem a arte que eles reproduziram. O filósofo, que morreu em terra estrangeira, viu na fotografia o meio de as obras de artes tornarem-se acessíveis a todas as pessoas. Claro que essas obras perderiam algo de essencial – que ele nomeou de aura –, mas estariam próximas aos trabalhadores, às pessoas do povo. Assim, todos poderiam usufruir dos bens culturais da humanidade.

Theodor Adorno já vai por outra via. A partir da análise do cinema americano de meados do século 20, observa que a indústria cultural não serviria para lhes alavancar a vida numa perspectiva de libertação do poder do capital, mas causaria o deslumbre em seus espíritos. As pessoas que manipulariam esses equipamentos de transmissão da cultura passariam a ter intenso poder sobre as massas, poder esse até mesmo capaz de manipular os desejos das pessoas.

Com o advento primeiro do rádio e depois da TV, a ideologia dominante teve a sua atuação potencializada. E é bom ressaltar, passou a funcionar com uma espécie de força inercial incapaz de encontrar quem lhe opusesse resistência.

Essa reflexão me veio à mente em meio às observações de como surgem as “celebridades” na vida contemporânea. O futebol é um bom exemplo. No começo era um esporte amador (jogava-se por amor), depois se tornou extremamente lucrativo, propiciando a muitos atletas mais fama do que a cientistas e homens de estado. O mesmo aconteceu em relação a outros esportes. A razão disso é a seguinte: com a entrada em cena das mídias eletrônicas, os atletas transformaram-se em potenciais vendedores, estando presentes em todos os lugares, a todo momento. Quando não vendem diretamente produtos, vendem audiência.

Não escapam a esse círculo o mundo artístico nem as celebridades de ocasião, como as reveladas até mesmo em incidentes inesperados, como uma eventual perseguição social ou racial, ou sobreviventes de desastres, como aconteceu recentemente numa mina no Chile.

Quando teremos um mundo justo, com as pessoas (e/ou os conceitos) em seus devidos lugares, um mundo em que os mais esforçados e criativos (“para o bem da humanidade”) sejam os mais valorizados e até os melhores remunerados?

Para o futuro próximo, não existe essa chance. A reprodutibilidade da imagem levada às últimas consequências é de uma força quase fascista. Só que o Fascismo foi, até certo ponto, contido. Aqui, ao contrário, a perspectiva mostra-se avassaladora.

sexta-feira, setembro 07, 2012

Jogafora, o azarão de Leopold Bloom


Ulysses, de James Joyce, traz uma passagem em que um dos personagens, lá pelo entardecer, numa conversa de bar, comenta com alguns amigos a aposta certeira de Bloom no azarão Jogafora, na Copa de Ouro, uma espécie de grande prêmio do turfe local. Eis o diálogo:

      – O Bloom, ele falou, o negócio do tribunal é fachada. Ele botou umas moedas no Jogafora, e foi recolher os shekels.
      – Aquele cafre de olho branco? O cidadão falou, que nunca apostou num cavalo só de raiva.
      – É pra lá que ele foi, o Lenehan falou. Eu encontrei o Garnizé Lyons indo apostar naquele cavalo só que fiz ele desistir e ele me disse que o Bloom que deu a dica. Eu aposto o que vocês quiserem que ele levou cem xelins pra cinco com essa. Ele é o único sujeito de Dublin que se deu bem. Um azarão.

O episódio também é pertinente quando pretendemos falar sobre o livro, essa epopeia moderna, que, em algumas edições, ultrapassa as mil páginas. Ulysses é um livro sobre o qual muitos falam, mas poucos o têm lido. Às vezes, é possível observar que faz parte da biblioteca de muitos intelectuais, mas quando perguntamos sobre sua leitura, recebemos como resposta alguma hesitação. O que se depreende é que foram lidas algumas partes, e que o livro, como um todo, ainda aguarda debruçar mais dedicado e atento.

No Brasil, já se chegou à terceira tradução. A primeira é de Antônio Houaiss, editada pela Civilização Brasileira; a segunda, da editora Alfaguara, é de Bernardina Pinheiro; a terceira, de Caetano Galindo, foi publicada pela Penguin Companhia das Letras. Por que todas essas traduções quando se trata de um livro de difícil leitura, obra que aparentemente dá mais notoriedade às editoras do que compensação financeira? Um fato curioso: a edição da Penguin Companhia é uma espécie de edição de bolso, com o preço abaixo dos cinquenta reais.

Na verdade, quem consegue ler Ulysses até o final sente um certo gostinho de vitória, porque são muitos os desafios. Só assim se percebe a beleza que há nos desvãos daquele 16 junho de 1904 (dia retratado no livro), e nos percursos de Leopold Bloom e de Stephen Dedalus. Fica a impressão de que os conhecemos minuciosamente (de corpo e alma); também não deixam a desejar os que os cercam, principalmente Molly Bloom.

Durante a leitura, porém, a sensação é outra. Muitas vezes, ao mergulhar no universo psicológico de cada personagem, perdemo-nos. Sentimos então a necessidade de voltar para retomar o fio da meada, mas, quando não encontramos esse fio, temos vontade de abandonar o livro. Caso nos aventuremos a ir em frente custe o que custar, o novelo parece mais embaraçado. Há todo tipo de percalço: diálogos que parecem intermináveis, referências difíceis de serem decifradas sem a ajuda de especialistas e fatos que só compreendemos como possíveis quando os atribuímos às fantasias criadas pela mente dos personagens. Na tradução da professora Bernardina, há grande número de notas finais e inúmeras explicações sobre cada momento da narrativa. Mas elas acabam provocando efeito contrário, porque se nos apegamos a todos os esclarecimentos, já não faz sentido ler a obra como ficção. Inclusive poderá haver aquele que, munido das tais notas, discuta o livro como se o tivesse lido.

Para que se possa perceber a grandeza do romance, é preciso entender o momento em que Joyce o escreveu e quais as questões que geraram a necessidade da obra no universo da literatura.

O autor irlandês aproveitou todo tipo de narrativa existente até então para criar o seu Ulysses. Ele parte da narrativa realista, navega nas águas da oralidade, passa pela estrutura do texto teatral, por poemas, abusa na formação de neologismos, até desemborcar naquilo em que mais inova: o livre mergulho na interioridade de alguns personagens, sobretudo na de Leopold Bloom. Em determinado parágrafo, um narrador em terceira pessoa descreve a cena, mas logo a seguir o próprio personagem retratado assume a direção da narração tornando-a de primeira pessoa. Deixa de existir o que a teoria da literatura convencionou chamar de foco narrativo. Em contrapartida, há uma grande vantagem nisso, o leitor pode acompanhar o romance a partir de múltiplos pontos de vista.

Será, no entanto, agradável esse modo de contar histórias? Para respondermos, precisamos saber primeiro como o leitor entende o ato da leitura. Caso deseje uma narrativa linear, arrumada, com todo o percurso facilitado, é lógico que não vai gostar. Mas caso seja um leitor calejado, velho de guerra e de bibliotecas, perceberá que Ulysses instaura algo novo no horizonte da literatura. É certo que o livro não é para neófitos. Também não se trata de leitura direcionada a intelectuais, como alguns críticos gostam de ressaltar.

Ao escrevê-lo, Joyce traz a seguinte questão: a impossibilidade de o real ser representado pela literatura ou por qualquer outro tipo de arte. Somente frações do real são passíveis de representação, por isso as “apenas” vinte e quatro horas na vida dos personagens, por isso personagens como pessoas comuns, com todas as fragilidades e vícios inerentes à natureza humana, por isso a fragmentação. Uma história jamais poderá ser contada em toda a sua plenitude.

E onde ocorre a ação? Na cidade de Dublin e em quase todos os lugares possíveis, interiores e exteriores, físicos ou imaginários. Parte-se de casa, passa-se pela igreja, cemitério, jornal, rua, biblioteca, bares, praia, hospital, e até mesmo por um bordel.

Lendo Ulysses, podemos nos perguntar: o que a literatura é capaz de retratar, até onde pode ir, como pode apresentar seus personagens, qual o limite deles, como suas histórias podem ser contadas?

Retomando o início dessa matéria, percebemos que a aposta e o acerto de Bloom no seu azarão acabam por se tornar uma metáfora da aposta e do acerto do autor no seu Ulysses, na aposta de que a literatura, ainda que fraturada, é possível.

Não se deve ler Joyce com a intenção de se encontrar uma boa história, mas para saber, talvez, a razão de todas as histórias.

Ulysses, James Joyce
Tradução: Caetano W. Galindo
Penguin – Companhia das Letras, 1106 páginas


sábado, setembro 01, 2012

Estrangeiros

Reluto em colocar o título nesta crônica. Tal palavra sempre me soou forte. Além de me fazer lembrar dois livros, o de Camus, que traz a palavra no singular e antecedida do artigo, e Emigrantes, de Sebald, recordo meus antepassados que pisaram pela primeira vez nesta terra.

Quando criança, a síndrome do estrangeiro sempre rondou a minha casa. Meus pais, filhos de emigrantes, falavam entre si um idioma que eu e meus irmãos não entendíamos, principalmente quando não nos queriam na conversa. Nas visitas a tios e tias, acontecia sempre a mesma coisa. Todos falavam outra língua.

Meu avô conversava comigo em português, mas sua pronúncia era carregada. Apesar de ter falecido quando eu mal completara nove anos, ainda me lembro de algumas histórias que me contava, experiências vividas por ele em sua terra de origem. Às vezes penso que assim como ele falava mal o português, talvez não falasse sua língua como um nativo, pois a perdera cedo, junto com sua pátria. Viajou para o Brasil ainda muito jovem, acompanhado da mãe, de dois irmãos e de uma irmã.

Entre os garotos da mesma idade, os estrangeiros éramos eu e meu irmão. Destoávamos de tantos Josés e Joãos que compunham a turminha daquele pedaço de rua. Nossos nomes soavam estranhos, e nossas festas não eram as mesmas das deles.

Meus avós deixaram seus países em troca de um novo mundo. Queriam a paz e a perspectiva de uma vida melhor. Não sei se o conseguiram, não sei se no final da vida se sentiram recompensados. Por melhor que tenha sido o país adotado, por mais que se tenha progredido, sempre se é um estrangeiro.

Ao pisar no Brasil, tentaram dar continuidade aos costumes da terra de onde vieram. Reconheciam-se um nos outros, em meio a tantas levas de homens e mulheres que desembarcavam. Confraternizavam-se e comemoravam as festas religiosas. Foram morar no mesmo bairro, quando não nas mesmas vilas ou casas, plenas de quartos e de crianças correndo pelos quintais.

Hoje, quando todos já se foram, nos perdemos no individualismo bem sucedido dos descendentes, que não lembram, ou fazem questão de esquecer, o tanto que sofreram seus avós, tios e tias. Os emigrantes já ficaram distantes no tempo, assim como a odisseia a que se submeteram para atravessar o oceano e se adaptar à terra que os recém recebia.

Perdida a língua, perdidas as nacionalidades, a possibilidade de retorno já não existe. Ainda que algum descendente queira fazer o caminho de volta.

Vozes desses antepassados, vez ou outra, ecoam na minha lembrança. Mas, hoje, mesmo sem compreender sequer uma palavra, consigo sentir o drama do emigrante, seu lugar movediço e sempre transitório.

Sempre houve aqueles que herdaram a terra, mas é a memória a herança mais concreta.

sábado, agosto 25, 2012

Eurípedes e os deuses

No Centro Cultural da Justiça Federal, no centro do Rio, está em cartaz uma peça chamada Medeia en Promenade. Não se trata de montagem da famosa peça de Eurípedes, mas um texto de Clara de Góes, cuja encenação apresenta uma Medeia que dá continuidade ao texto do dramaturgo grego. Uma mulher no exílio, que anda continuamente a esmo, seguida de uma criada que se nega a abandoná-la e do fantasma da mulher que se tornou a causa de toda a tragédia, a filha do rei, jovem por quem seu marido a trocou.

É praxe na literatura quando nos deparamos com textos de períodos que não o nosso, tentar-nos colocar no lugar do leitor/ouvinte contemporâneo ao autor que os produziu. Dando um salto no tempo até o barroco brasileiro, dou um exemplo. Como devemos ler e/ou ouvir a poesia de Gregório de Matos num mundo como o de hoje, pleno de ruídos, impregnado pela presença ostensiva da imagem, obstáculos que às vezes nos sonegam a audição atenta à sonoridade dos seus versos?

Em relação ao teatro, podemos dizer o mesmo. Como observar a Medeia, de Eurípedes, aproximando-nos dos olhos e do pensamento de um grego daquele tempo?  É essa questão que me aflige quando vou ao teatro assistir a espetáculos que fazem algum tipo de releitura de textos clássicos. Algumas delas acabam por colocar na voz dos personagens problemas que eles não tinham e não viveram.

Não me atrevo a avaliar o mérito ou demérito da encenação de Medeia en Promenade, apenas discuto algumas das questões colocadas pelo texto. Medeia, que parte para o exílio permanente após o assassinato dos próprios filhos, está, num primeiro momento, mergulhada no esquecimento. A ama que a segue, inclusive, faz de tudo para não lhe reavivar a memória e, numa espécie de monólogo inicial, se refere ao habitat perdido como um universo extremamente masculino e opressor. A personagem principal é alguém que vaga por entre tempestades, em meio ao frio intenso e à contínua procura por abrigo. O fantasma da filha do rei Creonte aflige a protagonista, pois para mostrar o apodrecimento dos seres vivos arrasta um cachorro morto, e acaba por revelar o próprio corpo também apodrecido, queimado por Medeia no ato de vingança. O esquecimento de Medeia sobre o crime terrível que cometeu, no entanto, é apenas aparente, na verdade ela está consciente de seu ato. Além disso, não o justifica como vingança contra o marido, mas como um modo de fazer perdurar seu nome ante às gerações vindouras.

Não só o teatro grego, mas todo teatro tem algum tipo de moral a transmitir, mesmo independente da vontade do autor. Quando escreveu Medeia, querendo ou não, Eurípides conseguiu nos dizer que o destino não estava tão seguro nas mãos dos deuses. Os homens, e também as mulheres, segurariam com mais firmeza o leme de suas naus, assim poderiam melhor aportar onde bem o quisessem. A tragédia da mulher que mata os próprios filhos por ciúme ao marido talvez fosse algo até menor diante desse fato.

Na atual montagem, quando acossada pela pergunta do fantasma da princesa (ela quer saber o que restou do crime que a mulher de Jasão praticou), Medeia grita-lhe em resposta seu próprio nome; a seguir, aponta para fundo da cena, onde da escuridão acendem em luz forte as letras que compõem o nome "Medeia". Percebemos, então, ainda que de modo precário, um dos pontos fundamentais da moral da antiguidade clássica, moral essa mais presente no teatro de Eurípedes do que em qualquer outro do período: a insurgência do humano contra a supremacia dos deuses.

Como sempre estamos presos a uma boa história, apressamo-nos em condenar alguém que tenha praticado crimes classificados como hediondos, alguém, sobretudo, que pratica o imperdoável ato de sacrificar os próprios filhos. Mas esquecemos de perguntar: e para os deuses, quantos foram os sacrifícios?

Medeia em Promenade talvez traga a premência não da crítica ao mundo masculino, ou da crítica ao racismo (no texto de Clara, Medeia é negra), ou mesmo à condição do estrangeiro (nas cidades da Grécia antiga, a quarenta quilômetros de onde se morava já era terra estrangeira), temas tão comuns hoje, mas quase impensáveis para o homem grego; mas a necessidade de se compreender o ser humano como senhor do seu destino.

O crime de Medeia é apenas o leitmotiv de toda essa questão. Depois de Eurípedes, o Olimpo já não seria o mesmo.

sábado, agosto 18, 2012

Ler por prazer

Na semana passada, escrevi sobre o ofício de leitor, mas para isso tive de falar também do ofício de escritor. Não disse, no entanto, o que me levou ao assunto.

Não faz muito tempo, li uma entrevista concedida à Folha de São Paulo por Carlos Heitor Cony. Em determinado momento da conversa, entre uma pergunta sobre sua vida de jornalista e outra sobre sua vida de escritor, a repórter soltou: “o que lhe agrada mais, ler ou escrever?” O acadêmico, com humildade, respondeu: “gosto mais de ler, escrever é o meu ofício”.

Interessante a resposta, porque mostra que o escritor coloca-se como qualquer ser humano normal, não escondendo certo tédio ou fastio por seu trabalho, mesmo sendo este um ofício que dá destaque ao ser humano. Caso fosse alguém muito vaidoso, diria que gosta mais de escrever, e que tal prática é tão necessária quanto é a respiração para a sua sobrevivência. Mas Cony sempre foi humilde, a notoriedade procurou-o, ao invés de ele procurar por ela.

O ofício de leitor sempre é mais prazeroso. Nada melhor do que pegar de modo despreocupado um livro, lê-lo com avidez ou mesmo abandoná-lo caso não agrade. Nada de dar satisfações a alguém sobre a leitura, nada de ter a obrigação de fazer comentários sobre a história, ou ainda o pior, ter de escrever uma resenha sobre o livro. O leitor de jornal lê um ensaio em dez minutos, mas não sabe quantas horas, ou mesmo dias, o autor precisou para articulá-lo.

Faz pouco tempo, como comentei aqui na coluna, adquiri a mais recente tradução do Ulysses, de James Joyce. Como quem não quer nada, comecei a ler o livro mais uma vez. Minha esposa falou: “esse livro não precisa ser lido por inteiro, há várias pessoas que o leem em partes, tiram dele só o que interessa”. Ela é psicanalista lacaniana, sendo assim, a falta, para ela, é muito pertinente. Mas fui avançando, página após página e, com o passar dos dias, não peguei em outro livro (às vezes leio dois ou três ao mesmo tempo). Só parei quando cheguei à página 1106, a última do romance. Pensei, então: está bom, um livro lido apenas por interesse e prazer, nada de escrever sobre ele.

Mas se passaram dois ou três dias e chegou o prazo de mandar a resenha para o número de setembro da Folha Carioca. Eu tinha uma matéria já escrita, sobre um livro da Martins Fontes, mas achei que não era o momento de publicar aquele texto. O que escrevo, afinal? Então, a leitura despreocupada foi por água abaixo. Comecei a escrever o texto sobre o Ulysses da Penguin Companhia das Letras.

Lembrei-me do Cony e do sua preferência pela leitura, lembrei-me também da minha tentativa de ler por prazer. Não demorou muito e o meu texto ficou pronto. Esperei o dia seguinte. Sempre espero o dia seguinte para melhorar um texto, durante a madrugada às vezes me surgem algumas ideias.

Ao amanhecer, fui de novo ao computador. Revisei a matéria e acrescentei aquilo que achei necessário. Mandei, enfim, a resenha para a revista. Depois, lembrei-me: dois os meus fiascos nestes últimos dias. O primeiro foi não ter conseguido ler um livro na paz dos leitores; o segundo, não ter escrito a crônica semanal. A matéria sobre o livro de Joyce foi escrita na quinta e na sexta, dias em que escrevo a crônica para o blog. O que fazer, portanto?

Uma semana sem crônica não faz mal a ninguém. Então, esta semana não temos crônica. Ou temos? 

sábado, agosto 11, 2012

Ofício de leitor

Falo do ofício de leitor, mas começo pelo ofício de escritor.

Nos dias de hoje, apesar da precariedade do público leitor, observa-se o aumento do número de candidatos a escritor. Nos grandes centros, sobretudo, muitos jovens procuram editoras, que, sempre em déficit no orçamento, apressam-se em recusar seus textos. Em consequência, vemos o crescimento de editoras fundadas pelos próprios autores, ou o surgimento daquelas que cobram para publicar. Tal fato não é novo nem peculiar ao nosso país, já tendo passado pela experiência diversos escritores, o mais famoso deles foi Marcel Proust.

Outro fato que reflete a febre pela publicação é o aumento das oficinas de literatura. Em qualquer caderno cultural dos jornais, pode-se ler sobre a existência delas e sobre os expoentes que as ministram. Para o escritor, nada mal completar seu temerário orçamento ministrando aulas nessas oficinas.

Há também revistas que publicam contos depois de zelosa seleção, e há muita discussão quando os nomes dos selecionados são anunciados.

Portanto, poderíamos achar que vivemos numa sociedade em que se disputa o livro a tapa nas portas e nos balcões das livrarias. No entanto, não é isso que acontece. Quando observamos nossos índices de educação, logo constatamos que a leitura, uma espécie de produto de luxo, vem sendo praticada por pouca gente.

Existem vários motivos que afastam as pessoas dos livros. Há aqueles que veem importância na leitura mas dizem não praticá-la por falta de tempo. Na verdade, para se tornar leitor é preciso ter disciplina, e não tempo. Devido à grande oferta de afazeres que a vida atual oferece, parar para ler é fato extremamente complicado, exige meticulosa organização. Há pessoas que percebem a importância da leitura, mas sucumbem após avançar algumas páginas, pois não estão acostumadas à concentração que o livro exige. E também há os que vivem tranquilamente sem ler, não vendo necessidade alguma em tal ato.

Mas, por incrível que pareça, sobrevive o batalhão de pretendentes a escritor. Caso as editoras não tomem providências, a porta de cada uma delas encontrar-se-á sempre abarrotada desses seres que insistem em se apresentar com seus manuscritos sob o braço.

Diante desse quadro, como deve ser o ofício de leitor? Aquele que gosta do livro, que entra nas livrarias e silenciosamente olha cada exemplar, observa seus autores, a nacionalidade, se o livro é de poesia, se de contos ou romance, se ficção ou ensaio; aquele que mergulha na solidão das bibliotecas e permanece horas a fio seguindo os passos das personagens, percebendo a sonoridade dos versos, as ideias de um filósofo. Quem se aventura a exercer este ofício anônimo e meticuloso?

Outro dia, um editor afirmou: “caso cada candidato à publicação que recebo em meu escritório comprasse um livro da minha editora, a situação seria bem melhor, estaríamos em condição de, até mesmo, lançar jovens autores”.

Será que cada candidato a escritor compra livros e lê o tanto que deveria? Será que cada um consegue transmitir a paixão pela leitura àqueles a sua volta?

Nos dias de hoje, quase todos desejam ver-se catapultados pela cultura de massa. Há quem acredite que uma boa matéria num jornal de grande circulação, ou mesmo uma reportagem na TV, poderá alavancar a leitura e promover a venda de livros. Isso pode até acontecer, mas o resultado não será duradouro. O que promoverá a leitura é uma forte política de distribuição do livro e de facilitação da leitura, principalmente nas escolas.

Escritores (ou a candidatos a) precisam saber mostrar a graça que o livro possui, a magia que o envolve, e quem sabe o consigam com mais facilidade caso frequentem escolas e bibliotecas públicas, para lerem junto com jovens e estimulá-los a perceber o prazer que a leitura oferece. Assim, estarão exercendo também o ofício de leitor.

sábado, agosto 04, 2012

Peregrinação à montanha mágica

Quando estudante da escola secundária, Susan Sontag era uma garota quase como outra qualquer, não fosse a altura (era sempre a mais alta entre as alunas da classe), não fosse o afã pela leitura. Ela mesma diz: “eu sempre fora uma leitora infernal desde a mais tenra infância”. Após morar em várias cidades do sul dos Estados Unidos, sua família – composta pela mãe, padrasto, irmã mais nova e ela – deixa Tucson, Arizona, e muda-se para o sul da Califórnia. Ali, a jovem Susan começa a ter consciência de seu futuro. Ela viria a se tornar uma das mais importantes ensaístas e intelectuais americanas da segunda metade do século 20.

Em Peregrinação, texto publicado pela The New Yorker em dezembro de 1987 e só agora traduzido para o português (Revista Serrote, nª 11, Instituto Moreira Sales), Sontag narra sua infância e parte da adolescência, até fixar-se num acontecimento marcante na sua vida: o encontro com Thomas Mann, no final de 1947.

Aos quatorze anos de idade, a então adolescente já levantava algumas questões, como o desinteresse dos jovens pela leitura, a “baboseira de colegas de escola e de professores” e o estrago que a incipiente cultura de massa da época, tendo como ponta de lança o rádio, já começava a insinuar: “os programas semanais de humor, ornados com risadas enlatadas, a pegajosa parada de sucessos, a histérica narrativa dos jogos de beisebol e das lutas – o rádio, cujo móvel enchia a sala de estar nas noites de semana e em boa parte dos sábados e domingos, era um tormento sem fim.” Mas é a visita a Thomas Mann no seu exílio nos Estados Unidos, que antecipa, como uma premonição, o futuro da intelectual e pensadora americana.

Em Los Angeles, a alguns metros do cruzamento da Hollywood Boulevard com a Highland Avenue, ela encontra sua primeira livraria. Passa a frequentá-la, onde lê em pé os livros que mais lhe interessam. Em algumas ocasiões, com sua parca mesada, compra um ou outro. Mas sabia que seu dia chegaria, e que em algum lugar havia pessoas que pensavam de modo semelhante a ela.

Aprecia a música de Stravinsky, que podia ser ouvida em alguns concertos que frequenta gratuitamente com um ou dois amigos de escola. Ouve também “os guinchos e as pancadas” de John Cage, porque sabia que os jovens de sua geração deviam gostar de “música feia”.

O que Stravinsky era para ela na música, Thomas Mann tornou-se na literatura. Em novembro de 1947, compra A montanha mágica. Começa a ler naquela mesma noite, e durante algumas das noites seguintes diz que sentiu falta de ar enquanto lia. “Pois aquele não era simplesmente mais um livro que eu adoraria, era um livro transformador, uma fonte de descobertas e reconhecimentos.”

Merril, um dos colegas de escola com quem ela sempre passeia, sugere que procurem na lista telefônica o nome de Mann, que mora na mesma cidade dos dois. Na Califórnia daquele tempo, mais precisamente em Hollywood, quem tinha muitos fãs eram os artistas de cinema, portanto, Thomas Mann, embora fosse uma figura pública, não seria difícil de ser contatado. Ele atende ao pedido e marca a visita para o domingo seguinte.

Susan mostra-se constrangida durante toda a entrevista, teme cometer qualquer tolice. Repara que Mann fala devagar. A jovem pergunta-se se não teria sido um erro visitá-lo, pois já o conhecia bem de seus livros. Talvez a vagarosidade de sua fala tivesse como causa o fato de o inglês não ser sua língua natal ou, quem sabe, ele desejasse que os estudantes o compreendessem bem.

A conversa a princípio gira em torno de literatura. Depois, sua mulher, Kátia, serve o chá. Mas a conversa continua. A jovem Sontag observa a mesa de trabalho do autor, os objetos de adorno, como estatuetas, fotografias, os quadros nas paredes, os livros; então, surpreende-se ante a primeira biblioteca particular que vê na vida.

Mais adiante, o escritor quer saber sobre eles. A jovem se constrange ainda mais. O que vai dizer? Tem vergonha da escola onde estuda. Já não ensinam Latim nem Shakespeare, há aula de autoescola e datilografia, há até um aluno que tem uma arma e assalta frentistas vez ou outra. Mas Mann precisaria saber dessas coisas? Ele já tinha problemas demais: o exílio, a destruição que o nazismo causara em toda a Europa; sua cidade natal, seu país, a Alemanha, ficavam muito longe. O romancista era um deus no exílio. Bom quando ele falou sobre o seu último livro, que estava sendo traduzido para o inglês naquele momento (Doutor Fausto), melhor quando citou A montanha mágica como sua principal obra até ali. Susan e o amigo se decepcionam quando ele diz que Hemingway seria o escritor americano mais representativo. Verdade? Será que o famoso Thomas Mann gostava de Hemingway?  Os dois não o tinham lido, não o apreciavam. Seu amigo diz gostar de Romain Rolland, pensando em Jean-Cristophe; de Joyce, do Retrato. Ela diz apreciar Kafka, de A metamorfose; Tólstoi, dos últimos escritos religiosos e dos Romances; cita Jack London para não faltar um escritor americano. Mann acha-os jovens muito sérios, talvez destoantes do espírito americano (“dizia que sempre gostara de conhecer jovens americanos, que mostravam o vigor e a saúde e o temperamento fundamentalmente otimista desse grande país”). Em certo momento, o autor de Os Buddenbrooks fala sobre o valor da literatura e a necessidade de proteger a civilização contra as forças da barbárie.

No final da tarde, a ainda quase menina Susan e seu jovem amigo partem, com um sol poente que parece bastante luminoso. Ou seria a impressão deixada pelo escritor?

Anos mais tarde, ao escrever Peregrinação, Sontag relembra o episódio como o fim de um ciclo. Sua entrada para a Universidade da Califórnia, em Berkeley, depois a transferência para a Universidade de Chicago, a opção pela filosofia e pela carreira de escritora, escolhas ainda impensadas quando estivera lado a lado com Thomas Mann. A era Roosevelt se encerrara, e a Guerra Fria estava começando. O escritor e a família definitivamente deixam os Estados Unidos depois de uma estadia de quinze anos, tinham até se tornado cidadãos americanos. Mann vivera na Califórnia mas, na verdade, seu pensamento jamais estivera ali.

Susan Sontag faleceu em 2004 e, assim como Mann, sempre acreditou na literatura e na filosofia, fez dessas matérias sua vida e usou a escrita para lutar contra as ortodoxias e preservar a liberdade, uma forma também de proteger a civilização contra as forças da barbárie. Ainda que isso não seja possível neste período de capitalismo tardio, que ao menos aconteça como na sua primeira leitura de A montanha mágica: que a literatura e a filosofia possam ser transformadoras, fontes de descobertas e de reconhecimentos.

sábado, julho 21, 2012

Personagens surpreendidos pela modernidade

Resenha de Tévye, o leiteiro, de Scholem Aleikhem, ed. Perspectiva 

Haron Gamal - especial para O Globo (Caderno Prosa e Verso), publicado em 21/04/2012

A obra literária – no caso, aqui, a narrativa – não apresenta sua potencialidade apenas no relato, por mais surpreendente que ele possa parecer. O modo utilizado para transmiti-lo é que o potencializa e surpreende. Assim se pode observar desde as narrativas homéricas, passando pela Bíblia, caso a encaremos como literatura, até desaguar nos autores que se tornaram clássicos. Dante, Shakespeare, Flaubert, Machado de Assis, Proust, James Joyce, entre outros, não surpreenderam apenas pelo conteúdo de suas obras. O que mais chama a atenção no que escreveram e que serve de fator determinante para torná-los imprescindíveis é, sobretudo, o artificio que utilizaram para contar suas histórias. A carpintaria narrativa, portanto, acaba por se tornar o fiel da balança quando se deseja emitir juízo de valor e apontar se uma obra pertence ou não ao universo da alta literatura.

Apesar de outras as circunstâncias e do caráter peculiar da cultura que representa, Scholem Aleikhem bem que poderia pertencer a esse restrito clube dos clássicos.

A edição em português de sua obra principal, Tévye, o leiteiro, é constituída de uma carta introdutória e nove capítulos. As narrativas apresentam-se em forma de falso diálogo. Durante as histórias que relata, o personagem-narrador se dirige a ninguém menos do que ao autor do livro, o próprio Scholem. Mas o autor-ouvinte, assim como o interlocutor de Riobaldo em Grande Sertão: Veredas, nada replica. Tal artifício proporciona à narrativa a característica de pertencer à oralidade. Então nos vem à mente o texto “O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, do filósofo Walter Benjamim.  Como bem observa a professora da USP, Berta Waldman, na introdução: “Na novela de Scholem Aleikhem, o pretenso autor parece delegar ao narrador a autoria da obra, porque este, além de ser o depositário da experiência, estava, em algum momento, no mesmo nível de seus interlocutores”.

Para Benjamim, a ação de contar uma história fazia parte de uma experiência de sentido pleno, sentido que se tornava cada vez mais raro à medida que o capitalismo avança e se consolida.

Outro fator importante desse modo de narrar, com Tévye sempre a encontrar ou a fazer uma visita ao autor, é que essas cenas nos remetem a uma prática conhecida, surgida inclusive no meio judaico, a psicanálise. Há de se conferir que o jovem Freud é contemporâneo a Scholem, embora nada indique que se tenham conhecido nem que o criador de Tévye tivesse alguma informação sobre as primeiras experiências do médico vienense.

As narrativas do leiteiro são as de quem pertence ao universo do schtetl, uma organização comunitária pré-moderna e pré-burguesa, de economia fechada, situada no universo de uma Rússia ainda czarista. Percebem-se o riso, muitas vezes de si próprio, e a constante melancolia em que os personagens se veem mergulhados. A modernidade avança e surpreende o leiteiro através do comportamento de suas sete filhas – elas passam a querer ser donas do próprio destino. Ao mesmo tempo, o meio judaico sempre se sente ameaçado por pogroms e cercado pela miséria. Desta, o personagem quase sempre se safa com o auxílio de seu cavalinho. O animal não apenas lhe serve para puxar a carroça e levar os potes de leite, mas também de interlocutor. Scholem, num processo de animização da natureza, proporciona ao texto profunda reflexão sobre a solidão.

Tévye a todo o momento está a citar as leis sagradas, o Talmud e seus comentaristas. Mesmo sendo de pouca cultura, como a maioria dos judeus do schtetl, ele vê no estudo e na sabedoria um meio de superar seus oponentes.

As narrativas, publicadas inicialmente em forma de folhetim na imprensa ídiche da Europa oriental e depois na dos Estados Unidos, representam uma cultura que se desagrega devido ao aumento do antissemitismo e da imigração forçada. Essa cultura, pouco a pouco, passa a habitar apenas as prateleiras das bibliotecas, principalmente depois do avanço do nazi-fascismo.

Embora o périplo de Tévye tenha sido adaptado já em 1915 pelo próprio Scholem para a peça teatral que ficou conhecida como “O violonista no telhado”, a qualidade e o alcance dos textos narrativos originais publicados agora se situam num outro patamar. Na adaptação para o teatro, não foi possível o diálogo de Tévye com o próprio autor nem são bem resolvidas as situações em que a própria língua apresenta-se como uma das principais personagens.

Capítulo à parte teria de ser escrito a respeito da tradução de J. Guinsburg. O conhecido professor, autor e tradutor consegue recriar em português o ritmo e a sintaxe do ídiche, fazendo o leitor perceber, através de um texto em que o significante é ressaltado, o lugar sempre precário a que esteve submetido o povo judeu, sobretudo o do leste europeu.

sábado, julho 14, 2012

Silêncio e plenitude na narrativa de Per Johns

“As palavras nos atam ao já vivido. Só quando amadurecem em silêncio restituem-nos a plenitude prometida”, diz o narrador ainda nas primeiras páginas de Hotéis à beira da noite (Tessitura Editora – Belo Horizonte, 2010), o mais recente livro de Per Johns. A afirmação, grosso modo, não deixa de reiterar a literatura do autor brasileiro, que se desenrola também quase em silêncio, distante do burburinho, ou mesmo do ruído, espetáculo a que foi transformado todo tipo de arte. A obra de Johns, certeira, sem outros objetivos que não o próprio fazer artístico e a discussão da condição humana, temáticas sempre presentes nos grandes escritores, marcha sólida, sem precisar dos amparos da cultura de massa, incluído aí o cinema, modelo intelectual que alguns “pensadores” introduziram como imprescindível para discutir o mundo a partir do século 20. Grande parte deles chegou a se interrogar se a literatura ainda valia a pena, se, solitária, ainda teria capacidade de estabelecer e discutir questões. Vão espalhafato. A arte das palavras só perdeu terreno na mente incauta daqueles que se afiguravam positivistas e tecnocêntricos. Hoje, submersos na assepsia dos chipes e na velocidade dos circuitos, eles se perguntam: a serviço de que está a razão? Da reflexão ou do incremento cada vez mais inclemente de uma sociedade de massa voraz e lucrativa, em que o humano tornou-se apenas um detalhe?  Ri-se, enquanto isso, a literatura, na sua sólida e ao mesmo tempo movediça morada, no seu silêncio reverberador. Mesmo que não passem os ruídos, mesmo que perdure o festeiro e sedutor carnaval das imagens, cada vez mais presente e possível de ser manipulado pelo simples deslizar de dedos sobre o teclado, sempre pesará mais o lado daqueles que resistiram contra o irrefletido abandono da primazia das palavras.


Lembrando seus livros anteriores, sobretudo Aves de Cassandra e Cemitérios marinhos às vezes são festivos, não nos surpreende o personagem principal de Hotéis à beira da noite, alguém que se move continuamente, alguém sempre a mudar de hotel, hospedando-se primeiro no antigo Glória para, logo a seguir, embarcar para Zurique, e remar na canoa de Joyce – que ali viveu e deixou marcas –, chegando até mesmo a estabelecer diálogo com o autor de Ulisses. O mais famoso de todos os irlandeses lhe segreda: “Não diga nada. Fale comigo sem falar, essa gente gosta de mim, mas não gosta de minha verdade. Gosta de quem não sou.” E toda a narrativa de Hotéis vai jogar com esse duplo em relação ao personagem principal, alguém que é e não é, alguém que tem uma verdade que não é a verdade dos outros. Um homem que foge da pele de quem foi, tendo decretado a própria morte, e que tem no seu encalço personagens verdadeiros, digamos assim, gente de carne e osso, mas, ao mesmo tempo, seus fantasmas também estão a persegui-lo.

A viagem pode ser vista como uma experiência metafórica. O trajeto a ser percorrido apresenta, ao mesmo tempo, a inviabilidade. Tudo acontece como se o personagem constatasse ser impossível a existência. Então, é preciso fazer o caminho inverso: procurar referências no mundo afetivo e, sobretudo, no universo da literatura, estabelecendo diálogos com as grandes obras e autores. A arte se apresenta como único lugar em que a viagem é possível, “navegar é preciso, viver não é preciso” e navega-se nessas águas, às vezes turvas, como um meio de tentar encontrar o seu próprio eu. A literatura torna-se a trilha não só da busca a si mesmo, mas também sua razão de vida.
Coriolano Warming, o narrador protagonista, vai de hotel em hotel, até chegar à terra de seus antepassados, na antiga Dinamarca. Viaja já no limiar da existência, e está o tempo todo em busca de um sentido, embora tenha consciência de que, para a vida, não há sentido algum. A moradia sempre provisória revela a precariedade da condição humana, a solidão, enfim. Vez ou outra, procurado até mesmo por policiais, vive uma espécie de paranóia. O passaporte falso jamais é descoberto, mas as autoridades insistem em estar nos seus calcanhares constantemente à procura de uma pessoa que, na verdade, não é ele. Na lista de nomes, é confundido até mesmo com um suicida, e, numa tirada kafkiana, retruca: “O senhor diz que tenho que provar que estou vivo.”

O não lugar, problemática de seus outros livros, surge de novo de forma ainda mais contundente. Onde quer que Coriolano esteja, é estrangeiro. Os funcionários dos hotéis onde se hospeda olham-no com suspeição a ponto de confessar-lhe: “seu olhar é o de quem procura um pouso e não o encontra neste mundo de Deus, que nunca olha de frente, só de esguelha, um tanto temeroso, assustadiço.”

Se em Aves de Cassandra o autor nos oferece um romance de formação, e em Cemitérios uma narrativa da maturidade, neste Hotéis ele nos apresenta a inviabilidade, o beco sem saída. Não só em relação a Coriolano Warming, mas a todo ser humano que se põe a pensar com seriedade a questão existencial. O autor encontra apenas na arte o único lugar possível para questionar e esquadrinhar essa condição, em toda plenitude. Talvez Per Johns, na literatura brasileira, seja o único autor que levou mais a fundo a discussão de O mundo como vontade e como representação, de Schopenhauer.

De intensa densidade poética é a última parte do livro, denominada: “Pequenas prosas de um breviário”. A pretexto de procurar a paz, longe da civilização, o personagem se atira à sua ultima aventura: compra uma palhoça num recanto rústico do litoral paulista e vai viver entre os caiçaras locais. Na pequena casa, recebe de um morador, “uma espécie de pai de santo”, um breviário de um artista que morou na mesma casa e que desapareceu, deixando como vestígio apenas o caderno de notas. Já que a literatura permite vários artifícios, neste, Johns vai discorrer, com liberdade maior, sua veia poética e filosófica: “Desmobilize-se a casa herdada [...]. Mas deixem de fora as ruínas para que possam rebrotar como ervas de ninguém, levadas pelo oceano largo da vida...”

E, para terminar, fazendo um contraponto com o que afirmei no começo deste texto, quando situei a literatura de Per Johns como irmã do silêncio, demarcadora do duplo e, por paradoxal que possa parecer, mapeadora do não lugar, poderíamos ainda perguntar: mas, onde a literatura, em meio ao ruidoso mundo de hoje? Responderíamos com as palavras do próprio autor, no pequeno capítulo denominado “Terra Prometida”: “Ela está onde sempre esteve. Em todos os lugares e em lugar nenhum.”

sábado, julho 07, 2012

A febre da poesia

A ideologia avança sutil, desliza como o surfista hábil no cimo da onda maior, torna-se o que há de mais natural no mundo. Quando damos por nós, percebemos que não nos ocorreu perguntar: como a indústria, como o comércio das pranchas?

No universo das palavras, nada acontece de muito diferente. Elas se vão multiplicando como não houvessem os fatos, como se o que expressam não pesasse na sentença que proferem.

Alguém escreve um conto, um ensaio, um poema, ou mesmo um romance. No momento em que se dá o toque suave da ponta dos dedos sobre o teclado, não lhe vem à mente que suas ideias e palavras já foram por demais utilizadas, algumas vão até desbotadas, precisando de nova cor. Todos os textos que o pretenso escritor leu durante a vida, que ouviu, e mesmo os pedaços de frases que lhe passaram pelos olhos aqui e ali acabam de certa forma metabolizados naquilo que ele chama de sua obra original. Portanto, lutar com palavras é a luta mais vã. O que há de novidade? O quê, de repetição?

Para destronar a ideologia, somente a poesia, se mal que me exceda a rima. E veio um cineasta nos alertar sobre isso, sobre a ideologia. Logo alguém que lida com imagens. Já pensaram na primeira aula do curso de cinema? Cinema é feito de imagens. Truísmo? Mas é necessário dizer. Caso contrário, alguém filma um romance stricto sensu, inclusive mostrando as páginas do livro, e há de pensar que fez um filme. Mas, voltando ao cineasta. Veio ele para mostrar o que só cabe à poesia dizer. E as imagens? Não importam, o que vale é a poesia.

Assim me pareceu A febre do rato, de Cláudio Assis. Fui ao cinema meio temeroso. Qualquer tentativa de mexer em time que está ganhando, trata-se de pura loucura (exemplo da ideologia!). O mundo dos negócios, esse nosso. No entanto, a poesia surge na voz de um deserdado que desfila ora pelas ruas do Recife, num automóvel velho com alto-falante na capota; ora num barco rústico pelo rio, pelos canais, pelo Capibaribe. E a poesia é forte, ela tem a febre do rato.

O que seria essa febre, afinal? Vendo o filme, concluímos que é a potência das palavras, a celebração do não celebrável, o encontro com a alegria. Esta, como a poesia, só existe se fora do lugar.

Haverá quem diga que o filme privilegia cenas chulas, que banaliza o sexo, a figura da mulher e, sobretudo, que há uma escarrada de maconha e de cachaça. Portanto, como pode haver poesia nisso? Eu responderia: perguntem a Baudelaire.

Mas as cenas do longa de Assis, são apenas suportes para a poesia, assim como o corpo é suporte para o prazer e para a alegria. As cenas, na verdade, mostram a insignificância do cinema ante a poesia. E a voz do poeta, em constante vibração, quando soa social lembra João Cabral; quando musical, o santo Chico que está no céu. Não o de Assis, mas o Science.

E a ideologia? Está no subtexto, nas interseções de vários textos. Não sou partidário da semiologia, de releituras nem de transdisciplinaridades. Nomes tão em moda, porém mais velhos que Homero. Homero, o homem; não Homero, a obra. O único modo de denunciar a ideologia é mostrar a sua contraparte, a poesia. Mas não existe poesia ideológica? Respondamos não. Poesia ideológica, por mais escolhidas as palavras, por mais sonoras, não é poesia, ainda que a avalize alguma academia.


Daí, o que poderia ser mais contra-ideológico do que o corpo, utilizado para uma espécie de prazer total, o prazer não convencional? Alguns chegam a nomear as cenas do filme de orgiásticas. O prazer não é apenas a dois, mas a três, a quatro, a cinco. Entre jovens e velhos (ou velhas). Quando entra na história o amor monogâmico, entra Eneida, uma mulher, mas também uma obra. É a tragédia que se avizinha. Eneida, de Virgílio, tem uma viagem e uma guerra, a destruição de Troia e a fundação de Roma. Seriam lendas? Mas é do mito, da lenda, enfim, da narrativa, que se funda a ideologia. Mas quem virá a público denunciar suas pernas de barro?

Então, em cena o poeta de Claudio Assis. O cineasta conta que o descobriu nas ruas do mesmo Recife. Um poeta que canta sua poesia à viva voz na urbe, que a distribui num jornaleco montado a mão e copiado, um poeta que comemora a poesia no abraço entre amigos, em meio a copos de cerveja e copitos de cachaça. Tudo tão destrutivo... Que exemplo nefasto para a juventude! Frases de uma senhora que saía do cinema.

O que faz a ideologia? Perpetua a especulação na bolsa de valores? Perpetua a especulação imobiliária observável ao fundo, enquanto homens caranguejos explicam numa das margens do Capibaribe como fazem para tirar seu sustento da lama ribeirinha?

A febre do rato, de Claudio Assis, aponta o poder dionisíaco das palavras. A febre do rato não é cinema.

sábado, junho 30, 2012

Espetacularização e tecnologização da cultura

Segunda feira (25/06) no Roda Viva, na TV Cultura, Muniz Sodré afirmou: “na sociedade atual há espetáculo demais”. O ex-diretor da Biblioteca Nacional e professor emérito da UFRJ queria dizer, naturalmente, que a educação se vê prejudicada pelos excessos da indústria cultural e de sua divulgação cada vez maior através dos instrumentos da cultura de massa. Os entrevistadores lhe foram impiedosos nas perguntas, queriam a todo custo que ele respondesse qual a fórmula para o país vir a ter educação de excelência. Mas, como todos os intelectuais, o professor também não tinha a resposta. Ele chegou a citar como exemplo os colégios de aplicação das universidades federais. Mas não foi sobre eles que os jornalistas esperavam ouvir, queriam saber como faria caso dirigisse uma escola pública municipal ou estadual nas atuais circunstâncias; qual seria sua estratégia para que os alunos avançassem no estudo e na leitura, alcançando um patamar pelo menos satisfatório.

Um problema contra o qual toda a intelectualidade se depara atualmente e não vê saída é a tal espetacularização da cultura. Somos bombardeados dia e noite por chamados à audiência, sejam eles oriundos das mídias impressas, audiovisuais convencionais (se é que ainda se pode usar essa palavra) ou mídias digitais. Os apelos são tão intensos e colocados através de estratégias de tamanha sedução que acabam por convencer que o espetáculo é imprescindível. Chega-se a pensar que ele é totalmente natural e que não se pode pensar em outra forma de sociedade.

Outro problema que expande a questão acima é o crescimento do aparato tecnológico, como smartphones, notebooks, tablets e tudo mais que tem surgido através do desenvolvimento da microtecnologia. Está claro que não devemos nos opor ao progresso, mas nos dias de hoje quase não há reflexão sobre se a atualização constante e o consumo de todo esse aparato é mesmo imprescindível.

Quando observamos a utilização que a maioria das pessoas faz da tecnologia, ficamos assustados. São poucas que a utilizam com o real sentido de galgar conhecimentos que realmente lhes serão úteis, como os advindo do mundo acadêmico, o universo onde há método e fundamento para pesquisa e estudo. Querendo ou não, a escola é uma ramificação da cultura erudita, pois para se lecionar é necessário ter cursado a universidade. Mas eis que a tecnologização acaba levando as pessoas a utilizarem esses aparelhos não com fins de pesquisa, mas como distração e mesmo como meio de autoafirmação. Veja-se o narcisismo presente nas redes sociais; quase todos se tornam (pseudo) atores e atrizes da espetacularização de suas próprias vidas,  buscando também a audiência.

Quem há de se enfronhar numa biblioteca, sobretudo nos anos de formação, para ler um livro por puro prazer ante a avalanche de apelos ao consumo de instrumentos que proporcionam imagens em movimento, som, comunicação em tempo real, jogos, efeitos especiais e interatividade? Quem ainda desejará tatear o mundo da alta cultura como um meio de obter conhecimentos para a sua profissão ou mesmo para a reflexão sobre a vida? Melhor talvez fazer parte do oba-oba que as mídias alardeiam tentando envolver a todos, fazendo acreditar que, assim, cada cidadão é participante ativo da nova sociedade.

Ao invés do incentivo à leitura e ao estudo, o que vemos, no entanto, quando analisamos a questão, é a formação de um forte mercado consumidor de tecnologia muitas vezes desnecessária, o que acaba afastando ainda mais o ser humano do que ele realmente precisa.

Quem há de se colocar contra o apelo da tecnologização excessiva da cultura e sua consequente espetacularização? Quem há de mostrar que os argumentos utilizados por essa indústria apontam mais a pseudoverdades? A problemática em que estamos inseridos ainda é a mesma da discutida por Theodor Adorno e pela Escola de Frankfurt em meados do século passado, quando utilizaram como objeto de análise o cinema americano do período.

O pensador contemporâneo tem o dever de denunciar o exagero de tal empreitada consumista e mostrar que está imbuído do espírito de pesquisa e de crítica. Caso não o faça, sonegará à intelectualidade o papel de colocar as coisas nos seus devidos lugares.

Em qualquer sala de aula dos colégios de hoje, mesmo no ensino público, a maioria dos alunos possui grande parte desse aparato tecnológico, além de muitos também terem acesso à internet. Até aí tudo bem. Muitos professores, porém, já não conseguem convencer que internet não significa apenas jogos e redes sociais, traduzindo: divertimento.

É preciso sempre desenvolver o pensamento crítico e mostrar que o apelo da indústria tecnológica e cultural não é levar as pessoas ao mundo da alta cultura, um patamar em que a reflexão possa ser mais intensa e daí surgirem soluções para os problemas do mundo atual, inclusive soluções conceituais e de valores. Mas a intenção da ideologia é aproveitar o silêncio dos inocentes e impingir a produção e o consumo avassaladores.

Por isso as palavras do professor Muniz Sodré, no programa Roda Viva.