quinta-feira, junho 22, 2006

Singular ocorrência[i]

Padre, agradeço-lhe a presença. Agora que agonizo, não poderia deixar este mundo sem contar-lhe que, certa vez, tive fortuna rara, ou antes única, uma coisa que nunca esperara achar, nem merecia mesmo, porque nunca passei de um pobre diabo. Mas, enfim, os pobres também são filhos de Deus. Foi o caso que, perto das dez horas de uma noite de 1860, encontrei no Rocio uma dama vestida com simplicidade, vistosa de corpo. E muito embrulhada num xale grande. A dama vinha-me por detrás, e mais depressa; ao passar rentezinha comigo, fitou-me muitos os olhos, e foi andando devagar, como quem espera. Eu, o pobre diabo, imaginei que era engano de pessoa. Apesar da roupa simples, vi logo que não era coisa para meus beiços. Fui andando; a mulher, parada, fitou-me outra vez, mas com tal instância, que cheguei a atrever-me um pouco; ela atreveu-se o resto... Ah! Um anjo! E que casa, que sala rica! Coisa papa-fina. E depois o desinteresse...
Como todos sabem, eu sempre fora um sujeito reles e vadio. Vivia a explorar os amigos de meu ex-patrão, e, no dia seguinte fui procurar o Andrade, aquele meio advogado, meio político, nascido nas Alagoas. Pedi-lhe, como de costume, dois ou três mil-réis. Ele deu-me o dinheiro, e, como me visse excepcionalmente risonho, perguntou-me se tinha visto passarinho verde. Pisquei os olhos e lambi os beiços; o Andrade, que dava o cavaco por anedotas eróticas, perguntou-me se eram amores. Mastiguei um pouco e confessei que sim. “Olhe, acrescentei, para V.S. é que era um bom arranjo!” Andrade abanou a cabeça; não lhe cheirava o comborço. Mas teimei; era na Rua do Sacramento, número tantos... “Não me diga isso!” Imagine como não ficou o Andrade. Ele mesmo não soube o que fez nem o que disse durante os primeiros minutos, nem o que pensou nem o que sentiu. Afinal teve forças para perguntar se era verdade o que eu estava contando; mas adverti que não tinha necessidade de inventar semelhante coisa; vendo, porém, o alvoroço do Andrade, pedi-lhe segredo, dizendo que eu, pela minha parte era discreto. Fiz que ia sair; Andrade deteve-me, e propôs-me um negócio: propôs-me ganhar vinte mil-réis. -“Pronto!” – “Dou-lhe vinte mil-réis, se você for comigo à casa dessa moça e disser em presença dela que é ela mesma.” Hesitei um pouco, por medo, não por dignidade; mas vinte mil-réis... Pus uma condição: não meter-me em barulhos... Marocas – era o nome dela – estava na sala, quando o Andrade entrou. Caminhou para a porta na intenção de o abraçar; mas o Andrade advertiu-a, com o gesto, que trazia alguém. Depois, fitando-a muito, fez entrar-me; Marocas empalideceu. –“É esta senhora?” perguntou ele. –“Sim, senhor”, murmurei com voz sumida, porque há ações ainda mais ignóbeis do que o próprio homem que as comete. Andrade abriu a carteira com grande afetação, tirou uma nota de vinte mil-réis e deu-ma; e, com a mesma afetação, ordenou-me que saísse.
Mais tarde soube que a mulher era sua amante, apesar de casado e com filha de dois anos. E que desaparecera a seguir. O Andrade pôs-se a toda procura; ao encontrá-la, caíram nos braços um do outro. O senhor, padre, pensa que tudo se explicou? Coisa nenhuma. Nenhum deles tornou ao assunto; livres de um naufrágio, não quiseram saber nada da tempestade que os meteu a pique. A reconciliação fez-se depressa. O Andrade comprou-lhe, meses depois, uma casinha em Catumbi; a Marocas deu-lhe um filho, que morreu de dois anos. Quando ele seguiu para o Norte, em comissão de governo, a afeição ainda era a mesma. O Andrade contava tornar ao fim de pouco tempo, mas morreu na província. A Marocas sentiu profundamente a morte, pôs luto, e considerou-se viúva; sei que, nos três primeiros anos, ouvia sempre missa no dia do aniversário. Há dez anos perdi-a de vista.
Sempre me perguntei por que Marocas descera até a mim, os Leandros; nostalgia da lama? Parece que não; jamais o fizera. Mas o acaso, que é um deus e um diabo ao mesmo tempo... Enfim coisas!
[i] Este conto, como bem sabem as pessoas de cultura ao menos mediana, é de autoria de Machado de Assis. Tive, no entanto, a terrível idéia de reescrevê-lo sob a perspectiva do vilão, Leandro. Enquanto preparava pena, tinta e papel, outra idéia ainda mais temerária abateu-me: usar as próprias palavras de Machado.

quinta-feira, junho 08, 2006

Tempos de guerra

E é fatal dizer que o desconforto só aumenta quando, enfim, chega a sua vez. Eu tinha de guiar aquele veículo através de cinco quadras. Conhecia o caminho, passara por aquelas ruas um sem número de vezes; nunca, porém, pensei que as percorreria pela última vez. Minha missão: guiar o automóvel até o número 153 da J. Depois, apenas esperar; talvez dois minutos, talvez dois segundos. O percurso devia ser feito a 40km, não poderia ultrapassar carro algum e a parada preestabelecida precisava ocorrer dentro das marcas amarelas que sinalizavam a entrada de uma garagem. A parada provocaria suspeita e a aproximação dos sentinelas, mas o vidro escuro do carro e a impossibilidade de se comunicarem comigo provocariam neles hesitação. A reação viria logo, no entanto tarde demais. Guiava conforme as instruções. Vi uma menina que caminhava agarrada à mãe; ambas envolvidas pela meia luz do final da tarde refletiam um último raio de poesia; percebi, em frações de segundo, como tudo poderia ter sido diferente; as duas indicavam um mundo possível. No final da K, um caminhão se interpôs a meu trajeto. Tudo está acabado, pensei; o alvo não seria atingido, desperdiçávamos equipamento e material humano. Mas o veículo se moveu deixando a rua livre. Pela última vez, olhei o céu. Ainda havia luz. Na última esquina, uma jovem de casaco marrom trouxe-me um filme à memória; tempos em que se suspendiam operações para não se matarem inocentes. Mas, agora, quem era inocente? Cheguei ao local indicado. Parei. Um soldado de óculos escuros e telefone em uma das mãos caminha em minha direção. Pára à distância de uns cinco metros. Grita-me algo que não escuto ou não entendo. Mais dois se aproximam; possuem armas pesadas, mas não tempo para dispará-las. Todos estamos mortos.