sábado, junho 27, 2009


Pornografia - Witold Gombrowicz


Literatura polonesa e tango argentino

Ao ler uma obra literária, sobretudo de ficção, podemos seguir dois caminhos. O primeiro nos levaria a depositar fé no que diz a narrativa, acreditar nos fatos, enfim, embarcar na fantasia. O segundo seria desnudar o artifício, procurando enxergar como o autor trabalhou seu texto, como construiu seus personagens, de que modo arquitetou a trama, como desenvolveu a questão que aparece em primeiro plano e descobrir, a seguir, os planos subsequentes, que muitas vezes estão ofuscados pelo que o texto apresenta como principal.

Pornografia, de Witold Gombrowicz, é um livro que possibilita algo mais do que apenas experimentar uma boa história. Para começo de conversa, o narrador se coloca como o próprio autor, tendo inclusive o mesmo nome. Em seguida, os acontecimentos se passam na Polônia de 1943, em plena ocupação nazista. Gombrowicz, no entanto, não estava lá. Ele, o autor, embarcara num cruzeiro às vésperas da Segunda Guerra Mundial, para a América do Sul. A Polônia foi invadida pelos alemães; o resto é história. O escritor não pôde retornar; acabou ficando 24 anos na Argentina, tendo trabalhado em diversas profissões e vivido em extrema pobreza. Ainda lá, escreveu boa parte de sua obra. Quando voltou à Europa, radicou-se na França, onde obteve reconhecimento crítico.

Pornografia nada tem de pornográfico no sentido como se entende a palavra nos dias de hoje. Mas caso o leitor se mostre atento para a exposição da beleza e da juventude que atravessam todo o romance, o livro se torna profundamente pornográfico.

Em meio ao círculo intelectual de uma Varsóvia oprimida pelo nazismo, emergem dois personagens que decidem fazer uma viagem ao campo. Um deles é aquele que narra, o outro é um homem que conheceu Witold havia pouco e demonstra admiração pelo escritor: chama-se Fryderyk. Embora seja época de guerra, a narrativa se desvia do conflito para a beleza juvenil, principalmente quando ambos descobrem, na casa de campo em que ficam hospedados, um casal de jovens: Henia, a moça; Karol, o rapaz. Os dois, na verdade, são amigos desde a infância. Fryderyk e Witold tramam para que o casal permaneça junto, apesar de Henia ter um noivo. Gombrowicz deixa a guerra em segundo plano ao fazer o narrador e seu amigo investigarem os dois jovens. Estes aceitam participar do jogo, que pouco a pouco se mostra perigoso, tornando-os cúmplices numa ação comprometedora. Na verdade, o escritor em vez de criar personagens que resistam ao invasor empunhando uma metralhadora, prefere apostar na juventude e na beleza como meio de perceber uma nova Polônia, capaz de ressurgir das cinzas. Ele denuncia, através do casal, a falência de um país e de um continente decrépitos e a crença num futuro melhor. Não que esperasse por uma paz eterna, mas por um mundo em que a arte e a vida fluiriam através de corpos e mentes jovens.

Na movimentação dos habitantes da fazenda, tanto no próprio local como nos arredores, surge o ambiente da ocupação alemã.

Numa viagem que o narrador e Karol fazem numa carroça com a intenção de comprar querosene na cidade vizinha, a tensão da guerra transparece: “...chegamos a Ostrowiec, fazendo um barulho infernal e saltitando sobre os paralelepípedos, a ponto de nossas bochechas tremerem. Passamos pelo posto de controle alemão diante da fábrica; a cidadezinha era a mesma de antes, exatamente a mesma, com os mesmos prédios fabris e as mesmas chaminés dos altos-fornos, seus muros e, mais ao longe, a ponte de Kamiena, os trilhos do trem e a rua principal que levava à praça central, com o café Malinowski na esquina. Apenas uma certa ausência podia ser sentida – não havia judeus.”

Toda uma trama para assassinar um líder da AK – organização de resistência ao invasor – porque desistira de lutar contra os alemães envolve os homens da fazenda, incluído Karol e Waclaw, o noivo de Henia.

Embora o inimigo alemão mostre-se apenas através de um soldado bêbado, a ocupação joga os poloneses uns contra os outros, fazendo que desprezem a amizade, não poupando aqueles que se mostram suspeitos. Na intenção de virar o jogo, vale tudo para manter a esperança de libertar o país. O problema é que o inimigo acaba por se tornar o próprio compatriota, e o espelho da opressão está principalmente nas relações que se instauram a partir do universo familiar.

Outra questão em Pornografia, ao mapear a juventude e mostrar o interesse de dois homens maduros pelo período da existência em que predomina a beleza, a vitalidade e o ardor, seria trazer à tona a pulsão de vida que existe num período de profunda opressão.

Na Europa, em todos os países ocupados pelo nazismo, havia a Resistência. Para o autor, a verdadeira ação não estaria apenas nas mãos desses heróis, mas também nas de outros, como os dois jovens, que, apesar de crescerem num mundo quase sem perspectivas, demonstravam o desejo de viver, de desafiar a morte com o que lhe é oposto: a força, a intemperança e a beleza.

O romance é perfeito, a narrativa prende o leitor e as questões que vão surgindo como contraponto nos afligem a todo momento.

É de se admirar que um homem como Gombrowicz, que perdeu de modo inesperado sua pátria, exilou-se num continente distante, alguém que não freqüentou o circulo intelectual argentino enquanto esteve no exílio e precisou manter-se ocupado com tarefas menores para poder sobreviver, tenha se tornado um dos grandes autores do século XX.

Pornografia
Witold Gombrowicz
Tradução do polonês de Tomasz Barcinski
Companhia das Letras, 204 páginas

quarta-feira, junho 03, 2009



"Cadê Ana Prudenciana, Vitalina?"

Narradora goiana beira o épico em romance contagiante

Maria Eloá de Souza Lima é escritora goiana, mora em Jataí, cidade de 85.000 habitantes no sudoeste do estado de Goiás, a 327 quilômetros de Goiânia. Autora de três livros: Serra do cafezal (retratos e lembranças), Serra do cafezal 2, (outros retratos, outras lembranças), dois volumes que traçam a história da ocupação do sudoeste goiano empreendida por desbravadores que vieram de Minas Gerais (como se pode observar pelo título, trata-se de livros sobre as origens e memórias de uma região no centro-oeste brasileiro); seu terceiro livro chama-se Ana Prudenciana, é sua primeira e única investida na ficção. Recebi-o da própria autora há mais ou menos três anos, ocasião em que passei por Jataí. Como naquele momento tinha muitos compromissos com a universidade, deixei o livro de lado; aguardava o momento oportuno para apreciá-lo. Qual não foi minha surpresa quando o li recentemente.

Dona Eloá, como é conhecida na cidade, é exímia contadora de histórias. Lembrei-me, ao ler seu livro, do texto “O narrador, considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, de Walter Benjamin, onde o filósofo discorre sobre a arte de narrar e compara o trabalho do narrador ao de um artífice. Citemos um trecho do ensaio: “a experiência que passa de pessoa em pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos.” No texto, Benjamin aponta a narrativa como uma experiência coletiva, chega a dizer: “quem escuta uma história está em companhia do narrador; mesmo quem a lê partilha dessa companhia. Mas o leitor de um romance é solitário”. O filósofo distingue a narrativa próxima à oralidade da narrativa de romance, classificando a primeira como experiência coletiva, enquanto a segunda já teria perdido a mística do narrador oral e refletiria a solidão do ser humano fragmentado, presente num gênero que já não daria conta do todo. Não deixa de comparecer, em parte, na formulação de Benjamin, ecos da Teoria do romance, do “jovem” Lukács; mas isso é outra história.

O livro de Maria Eloá possui esse narrador em vias da oralidade, que, na verdade, como acentuou o filósofo, encontra-se em extinção. Ana Prudenciana recupera essa tradição que faz parte da literatura desde a mais distante poesia épica.
O livro, em primeiro plano, apresenta uma narradora ouvinte, de quem não sabemos o nome, uma mulher em viagem pelo interior, pelas fazendas, alguém que se movimenta país adentro a recolher histórias. Hospeda-se numa fazenda e, em duas noites, escuta da voz da velha Vitalina a história do passado da fazenda, de Maria Imaculada e suas filhas, de Zé Pedro e sua filha bastarda Ana Prudenciana, e tantas outras narrativas. Vitalina não se cansa de narrar durante a noite inteira, sempre escoltada pelas duas irmãs, semelhantes a ela e também idosas: mulheres de outros tempos, que viveram praticamente em regime de escravidão. As duas já ouviram o périplo muitas vezes, mas não deixam de demonstrar prazer em ouvir uma vez mais.

Num pernoite, já quase ao amanhecer, quando todos se recolhem, inclusive a narradora, sabemos de outra história contada por ela mesma, colhida numa viagem a cavalo. É a vez de ouvirmos um velho peão que mergulha nas reminiscências de um amor proibido vivido por Amaro, a emboscada para matar o amante, sua reação e a consequente morte. A história é contagiante.

O terceiro livro de Maria Eloá filia-se à tradição roseana. Na literatura brasileira contemporânea praticamente não existem autores que tenham tentado seguir a trilha desbravada por Guimarães Rosa. A escritora de Jataí não teme percorrer esse caminho. Ela trabalha artisticamente a linguagem falada e atinge alto nível.

Eis dois trechos:

“Faz muitos anos, eu era ainda nova, passou por aqui um tal de Pedro Matos, vendedor de tropa. Esse homem era dono da Fazenda da Barca, lá no sertão do Uruquara. A tropa dele era famanã de boa, cavalos e burros. Dessa Vez, o sô Eraque até comprou um alazãozão, cavalo bonito toda vida, e um burrão rapé chamado Rompedor. O alazão ele deu de presente para a dona Elísia, que o cavalo era manso de silhão e tinha uma marcha macia que dava gosto. De noite, lá na sala, com aquele homem de fora contando causos, a conversa estava animada.”

Amaro reagindo à emboscada:

“De repente, o Amaro apontou lá na janela de revólver apontado. E foi só pêêêêi!... pêêêêi!... O Ribamar caiu de costas para dentro do curral sem ter tido tempo de dizer um ai. O Aristides caiu de bruço dentro do pátio, com um jabro na cabeça, e ficou lá, estrebuchando no meio de u’a moita de maravilha vermelha. O Adão Cabaça, O Amaro ficou com dó de atirar. Conhecia a besta, sabia que ele tinha um manadão de filhos pequenos e de filhas-moças. Pobre que só vendo, mal dava conta de dar o que comer pr’aquela turma.”

Nos dias de hoje, alguns estudiosos de literatura e até mesmo alguns escritores acham impossível escrever romances como nos “velhos tempos”; dizem que é preciso experimentar novos formatos, opinam que a narrativa “tradicional” está esgotada. Na verdade, Dona Eloá vem provar que a boa literatura está mais viva do que nunca e que, em suas mãos, atinge ainda maior vulto.

O livro é de edição da autora, com participação de um incentivo cultural da Prefeitura de Jataí. No entanto, ainda assim, Dona Eloá conseguiu editar Ana Prudenciana fazendo muito sacrifício.

Seria bom que algum editor de São Paulo ou do Rio olhasse com mais cuidado a literatura feita fora dos grandes centros. Será um grande prejuízo para a cultura brasileira caso livros como o de Dona Eloá caiam no esquecimento.

Ainda é tempo de dar valor a quem merece. Maria Eloá de Souza Lima é uma escritora de 86 anos.

Contatos com a autora: Av. Benjamin Constant 1041 – CEP. 75800-000 Jataí – GO. Tel. (64) 36312681

Ana Prudenciana
Maria Eloá de Souza Lima
Editora do autor, 262 páginas
Incentivo cultural: Prefeitura de Jataí