sábado, novembro 15, 2014

O poeta e a revolução

Em “Terra avulsa”, Altair Martins suspende o tempo cronológico e estabelece um universo atemporal

Haron Gamal

Altair Martins, em Terra avulsa, constrói um personagem que se desdobra em vários outros. Este artifício, apesar de não ser novo na literatura, torna o livro muito interessante. Pedro Vicente é um tradutor que verte livros do espanhol para o português, e um desses livros é Arena viva, de Javier Lucerna. Aqui cabem duas observações. A primeira é sobre Lucerna. Trata-se de um poeta nicaraguense nascido em Somoto, que lutou pela revolução sandinista. A segunda é sobre Arena viva. Como o próprio autor explica em nota, é “um dos raros livros verdadeiramente de memória,Arena viva foi escrito pelo recordar dos outros”. Ao mesmo tempo, este narrador em primeira pessoa, escreve um livro de poemas em parceria com Eudora, uma espécie de funcionária executiva da editora para a qual ele trabalha. A parceria entre ambos consiste na elaboração de um livro onde convivam imagens e poemas. Ele escreve poemas sobre objetos fotografados por Eudora. Os poemas e os objetos também aparecem no romance provocando uma bem-sucedida subversão da narrativa tradicional e o estabelecimento de um gênero misto, que na história da literatura às vezes acaba por deixar a palavra em segundo plano. Mas, em Terra avulsa, isso não ocorre. As fotografias são propositalmente prosaicas; a poesia, no entanto, supera e transcende esse prosaísmo. Tentativas vanguardistas na literatura brasileira não são novidades. Um autor contemporâneo que se saiu bem ao estabelecer uma narrativa até certo ponto experimental é Luiz Ruffato. No final do século 20, ainda encontramos a pena furiosa de Ignácio de Loyola Brandão.
Pedro Vicente, o narrador, é uma pessoa reclusa, comportamento que se radicaliza, sobretudo, depois de sofrer um assalto praticado por uma dupla que vem em uma motocicleta. Roubam-lhe pouco dinheiro. O grande prejuízo, no entanto, é que lhe roubam não apenas os documentos, mas a própria identidade. O ladrão, apelidado de Rato pela vítima devido à semelhança ao Mickey Mouse, não apenas usará o documento do poeta, como também se utilizará de um poema encontrado junto aos objetos que estavam na mochila de Pedro, passando-se pelo autor. Munido de tal arma, conquistará Isabel, a balconista de uma farmácia. A partir desse episódio, narrador e ladrão farão uma viagem pelo universo da literatura.
Além de traduzir o livro de Lucerna, Pedro Vicente, de certa forma, assume a identidade do poeta, constituindo assim mais um duplo. Eis o início do livro: “de vez em quando me ocorre ser Javier Lucerna. Quase sempre, em verdade. Então nasço na Nicarágua, em Somoto, pelas mãos do Dr. Carlos Herrera, e me crio comendo o gallo pinto de minha mãe, Benite Solíz”. Saberemos, então, sobre o nascimento e a vida do poeta nicaraguense, seu despertar para a literatura, para a luta revolucionária e como Arena viva veio a público. Os poemas que Pedro escreve para o livro em parceria com Eudora também são fortemente inspirados em Lucerna. Ao mesmo tempo, a tradução de Arena viva sofre da impregnação da poesia deste tradutor-poeta. Tais fatos provocarão uma discussão entre os dois e o dono da editora.
A contribuição maior de Altair Martins à literatura, com o romance, é a suspensão do tempo cronológico e o estabelecimento de um universo atemporal, suas possibilidades reais e o desenvolvimento deste por intermédio da literatura. Desde o momento em que o narrador sofre o assalto, ele se retira do mundo, veda todas as janelas — até mesmo o sol ele evita — e elimina a possibilidade de contato com o mundo e com o tempo exterior.
Nunca acreditei na linearidade do tempo. No apartamento opaco em que estive, nada do mundo externo — aviões a derrubar torres, um vazamento de óleo na costa do México, o rebaixamento do time de maior torcida —, nada constou naquele meu tempo interno. Lá a história tomou outros rumos, ou a história não existiu.
A literatura acaba por ser o seu alimento, daí a forte presença da poesia, já que esta não exige linearidade cronológica. O tempo de certa forma é recuperado, mas através de uma narrativa paralela: a história, imaginada por Pedro, do homem que o assaltou. O ladrão torna-se demasiadamente humano e, para manter sua conquista amorosa, percebe que tem de enveredar pelo mundo da literatura.
Nesta reclusão de dias e noites, o contato de Pedro Vicente com o mundo exterior se dá apenas aos domingos, quando Eudora aparece para lhe trazer roupas limpas e alguma comida. O narrador transforma seu pequeno apartamento num país imaginário e diz sentir-se estranho a qualquer outra nacionalidade. Eudora, a partir deste momento, começa a se interessar por este ser excêntrico.
Outra referência à literatura é o elogio à hipálage, figura de retórica que se caracteriza pela transferência de sentido; atribui-se a x algo que deveria pertencer a y. O próprio narrador refere-se à hipálage algumas vezes e salienta que neste trânsito entre a metáfora e a metonímia está o estranhamento, por paradoxal que seja, o não lugar é que revela o literário. Portanto, a língua é capaz de nos tornar estrangeiros, mesmo que na aparência falemos o mesmo idioma. Outro fato importante é considerar a opção do autor em escrever um romance cujo principal personagem seja Javier Lucerna. Na verdade, Altair trafega na contramão da ideologia da cultura contemporânea, que é a de recusar utopias revolucionárias. A referência, entretanto, é auspiciosa, sobretudo num mundo sob o controle dos RGs e CPFs, um universo que expõe todos à exacerbação do consumo, tolhendo-nos qualquer esperança utópica e negando outros sentidos para a vida. A referência a movimentos revolucionários, ainda que malogrados, indica a necessidade da existência do sonho e da esperança, mesmo que, no fim, sobreviva apenas (se é lícita a palavra) a poesia.
No final do romance, um obrigatório encontro com o editor traz novamente Pedro Vicente à realidade, já que para se ganhar algum dinheiro fazem-se necessárias algumas formalidades, como a de ter documentos. Ele empreende, então, uma viagem de volta à cidade natal em busca da certidão de nascimento, necessária para obter as segundas vias dos papéis levados pelo ladrão. Lá, porém, mais uma surpresa o aguarda.
Altair Martins é professor de literatura. Portanto, não é de espantar tantas referências a autores clássicos e também a autores do segundo time, fato que não deixa de ser lucrativo para todo tipo de leitor. A busca de novas saídas para o romance atesta a constante angústia de quem não quer sucumbir aos modelos cristalizados pela tradição.

domingo, setembro 28, 2014

A grande enfermidade

Baseado na oralidade, "O doente", de André Viana, discute as tragédias particulares que permeiam a vida

Em O doente, André Viana (Cosac Naify, 128 páginas) narra a maior parte da história baseando-se na oralidade. Não que ele recorra ao conhecido artifício dos velhos contadores de histórias, como faz Guimarães Rosa por intermédio de Riobaldo, em Grande sertão: veredas. A narrativa de Viana começa com a palavra “transcrição”, numa página em branco; na seguinte, seguem-se travessões que se repetem por seis linhas, só então aparece a primeira palavra do romance, a preposição “de”. Após a incomum abertura, o leitor depara-se com o seguinte trecho: 
Começou a gravar? Então antes eu gostaria de ler uma frase pra você. Se um dia alguém escrever minha história, seria uma possível epígrafe.
Logo, trata-se de uma gravação, e os travessões significam aquele espaço de tempo durante o qual esperamos ouvir algum som após ligar o aparelho. A história, no entanto, ainda não começa. Lemos (sempre como se estivéssemos ouvindo) apenas comentários desse irônico protagonista. A narrativa, quase durante todo o livro, segue a estrutura de uma gravação sem a consequente edição, com espaços em branco repetindo-se ainda com mais travessões e algumas páginas em branco, ou com apenas duas ou três palavras. No final, são transcritas duas cartas, que completam o sentido da história.
O protagonista, cujo nome jamais sabemos, ao invés de buscar um psicanalista, como ele mesmo afirma (“No fundo, acho que não faço análise não porque não acredito, mas justamente porque tenho medo do que posso encontrar.”), procura alguém de sua profissão, um jornalista, e conta a ele sua vida. Este interlocutor, que está ali porque adora ouvir histórias, não se expressa em momento algum. Tudo o que sabemos a seu respeito é através dessa voz, que nem podemos afirmar ser de um narrador, mas simplesmente a voz de uma gravação. Assim, sempre na casa desse excêntrico personagem, o jornalista escuta e grava tudo, a varar madrugadas, regadas a muito uísque.
Mas não se trata de uma narrativa vã, ou mesmo festiva. No início, já se percebe o tom trágico. A voz da gravação diz: “Vamos lá. Se um dia eu escrevesse minha história, ela teria como ponto de partida a morte do meu pai. No dia do meu aniversário de onze anos”. Também não significa que a história desse personagem será piegas ou mesmo não terá valor diante de tantas histórias tão ou mais trágicas que existem por aí. Mas sim pela importância dada à singularidade e ao fato de que cada história de vida seja, talvez, se não a mais importante, pelo menos digna de ser contada.
Além de muitas referências à psicanálise, o narrador cita vários livros de literatura, de filosofia, e filmes famosos. Há também uma trilha sonora que acompanha o diálogo entre os dois personagens. A principal referência literária é o romance A montanha mágica, de Thomas Mann (1875-1955), incluindo a epígrafe do livro de Viana: “O homem é essencialmente um enfermo”, que aponta para o tema principal do romance.
O tema da doença também é recorrente no livro de Thomas Mann. Mas não porque se trata de um romance ambientado numa estação de cura de tuberculosos. Quem se destaca no livro do escritor alemão é Hans Castorp, chamado de filho enfermiço da modernidade por Setembrini, um intelectual de moldes clássico que sucumbe em consequência da mudança de valores provocada pelo alvorecer da modernidade. Voltando ao livro de André Viana, não mais estamos diante dessa mesma modernidade, mas num momento histórico em que todas as possibilidades discutidas no livro de Mann já se encontram esgotadas. O romancista nascido em Lübeck, ganhador do Nobel em 1929, ainda moldava uma sociedade em que os seres humanos tinham como suporte existencial os conceitos clássicos da filosofia e da literatura, mas que desaparecem ante a inclemente violência provocada pela Primeira Guerra Mundial.

Fim das utopias
Quanto ao livro de Viana, o ponto alto é a discussão da doença gerada pelo esgotamento de uma modernidade tardia e o fim de suas utopias. À medida que o autor introduz o cinema no romance, percebe-se a necessidade de criação de novas mitologias que gerariam sentidos outros à existência, sobretudo num momento de predomínio da cultura de massa, cujo único sentido é o elogio ao consumo.

O doente, no decorrer da voz narrativa, envolve outros personagens. Além do protagonista, um alcoólatra inveterado que também precisa fazer uso de ansiolíticos, há sua mãe, mulher profundamente depressiva (principalmente após a morte do marido), e seu irmão, que na adolescência recebe o diagnóstico de esquizofrênico.
Toda boa literatura é desagradável. No livro de Viana, isso acontece quando a narrativa toca o tema da loucura e suas consequências na família do narrador. Mas Viana propõe uma espécie de solução que ameniza as características pessimistas do romance. Tal perspectiva acontece quando sabemos, sempre pela voz desse estranho narrador, sobre Charles Fourier (1772-1837).

Tal menção estende-se por várias páginas e é introduzida como por acaso, durante o diálogo entre o protagonista e seu interlocutor. As páginas são reveladoras para quem não conhece o pensamento e a obra deste autor francês considerado por muitos um socialista utópico. Já que o assunto do livro de Viana é sobre uma espécie de doença provocada pela civilização, Fourier, muito antes de Freud e Reich, propõe uma revolução sexual, mas cujo princípio era a abolição da monogamia e a experiência de um prazer praticamente total. André discute a falsa permissividade da sociedade contemporânea, e até mesmo a falaciosa proposta de realização do desejo colocada pela psicanálise. Ainda citando Fourier, o protagonista afirma: “Se não é geral, a liberdade é ilusória”, ou “Não é de moderação que são feitas as grandes coisas”. Inclusive há uma referência a um livro de Leandro Konder: Fourier, o socialismo do prazer. Mas o protagonista não defende nenhum tipo de socialismo, refere-se apenas à realização do desejo sexual e à formação de vários outros tipos de família, todos fora dos padrões vigentes.
A morte do pai, como tema da psicanálise, também é aprofundada no livro. O personagem refere-se ao assunto diversas vezes e fala do peso que precisa carregar por herdar os problemas que passam a lhe afligir a partir do momento em que sua mãe já não dá conta de manter o pequeno negócio da família nem de cuidar do filho doente. Na verdade, ao contrário do que esta morte significaria em termos simbólicos (pois a morte do pai proporcionaria o desenvolvimento e independência do filho), aqui ela aparece só como dor e obstáculo ao prazer.
O romance acaba por discutir o adoecimento de toda a sociedade, que muitas vezes é mascarado pelos excessos, sejam eles a partir do álcool, das drogas e até mesmo dos medicamentos antidepressivos, considerados por muitos como solução à dor existencial. A negação da liberdade e a não realização plena do amor, ainda segundo o narrador, seriam as causas de uma vida arruinada, condenada às amarras da doença e do enlouquecimento.

quarta-feira, agosto 27, 2014

O mar do planalto central

“Terra de casas vazias”, de André de Leones, traz Brasília como uma das personagens centrais
“Brasília tem umas ruas bem largas — diz Aureliano. Tudo é muito quadrado e muito igual [...] Você se acostuma. Meu pai nunca se perdeu lá. Nem minha mãe. Nem eu.”
Terra de casas vazias, de André de Leone (Editora Rocco), é um romance em sua maior parte ambientado em Brasília. Seus personagens, ao contrário do que afirma Aureliano quando garoto ao seu primo Arthur, vivem perdidos e, mesmo que se desloquem continuamente, não conseguem encontrar-se. O fato de a história se desenrolar em Brasília durante boa parte da narrativa é bastante auspicioso, porque a cidade, quase sempre renegada por intelectuais, escritores e mesmo por políticos, torna-se também uma excelente personagem. E por mais que o narrador se refira a ela como “um apocalipse higiênico”, não é isso que ele próprio representa. Retomando a tradição do romance urbano brasileiro, a capital, com todas as contradições que os grandes centros apresentam, mostra-se humana, e há Aureliano a amá-la na sua fala de menino, a dizer à mãe, quando os pais estão prestes a separar-se, que não quer mudar-se para Goiânia.
André de Leones ambienta a narrativa também em outras cidades, todas se identificando com o momento retratado. Passeamos por Silvânia, onde nasceu o próprio autor, São Paulo, Goiânia e até Jerusalém, local em que o romance termina. Mas é Brasília que fica como âncora. Tanto é verdade que, numa das cenas finais do livro, enquanto Arthur fotografa o Mar Morto, em Israel, a sombra de Brasília ainda lhe turva a visão; sua mulher é quem diz: “O mar da Galileia não me interessa, [...] Arthur fotografava o nada diante de si”.
A narrativa é dividida em cinco partes, todas elas correspondendo às cidades percorridas. Brasília ocupa duas partes e mais um trecho da parte final, numa espécie de narrativa intercalada. Estes cenários têm como protagonistas pelo menos quatro casais, cujas vidas entrecruzam-se. A trama envolve perdas, solidão, traições, corrupção, doença, loucura e um amor homossexual entre duas mulheres.
Além de todo esse itinerário narrativo e mesmo poético, o que deixa o leitor intrigado são as marcas da violência que também fazem parte deste livro de ficção. E a ficção acaba por espelhar a realidade. A periferia de nossas grandes cidades é um bom exemplo disso. Toda essa violência despertará em Aureliano, quando menino, o desejo de ser policial. E ele cumpre a sua palavra. Mais tarde, como uma espécie de inspetor de polícia, ele nos proporcionará histórias curtas que, mesmo sem fazer parte diretamente do romance, mostrar-se-ão bem urdidas, muito contribuindo para o enriquecimento da narrativa e para a construção do personagem.

O ponto alto do livro é a memória, e talvez seja o que autor melhor saiba trabalhar em todo o romance. A obra de André de Leones poderá vir a se firmar caso o autor aproveite este filão. Um bom exemplo disso está na terceira parte. O narrador volta ao tempo em que Arthur é apenas um menino e está naquela fase turbulenta entre o final da infância e o começo da adolescência. O garoto vive com os pais em Silvânia, e se esconde dentro de um armário. O local funciona como uma espécie de refúgio do resto do mundo. Ali, mergulhado em pensamentos, ele reflete sobre a mãe, sobre o pai, sobre o casamento desastrado entre ambos. Considera a possibilidade de um futuro melhor para si próprio. Num determinado dia, o primo chega para passar uns dias com a família, o menino desembarca sozinho para uma espécie de férias, enquanto seus pais resolvem a respeito da separação. Este é o momento mais pungente da narrativa. O flashback apresenta ao leitor as dúvidas dos dois garotos, Arthur e Aureliano, suas esperanças e tentativas de entender o mundo dos adultos. Na sequência de chegada, o narrador introduz um passado ainda mais remoto, apresentando uma foto da mãe de Arthur na praça que existia ali antes da construção da pequena rodoviária: “sorriso aberto não para a máquina, mas para aquele que segura a máquina, talvez já estivessem de casamento marcado”, mais adiante: “Arthur gosta de fuçar nos armários da casa, pegar as caixas onde guardam as fotografias antigas e observá-las uma por uma, os cabelos, as roupas, as calças boca de sino, a ideia assombrosa de um tempo em que ele ainda não existia”. Aureliano, enfim, desembarca e, segundo o pai de Arthur, não parece estar em lugar algum, pois transmite uma estranheza e acanhamento que revelam a dificuldade do seu estar no mundo. Durante a convivência entre os dois meninos, esta discussão será aprofundada.

O que se pode criticar no livro é certa dispersão em relação aos personagens. O romance, apesar de sempre estar ancorado no casal Arthur e Tereza, traz à tona vários personagens que, com seus dramas, tornam-se tão importantes quanto os protagonistas. As explicações que antecedem cada uma das partes do livro também se mostram desnecessárias e um tanto didáticas, não permitindo ao leitor fazer suas próprias descobertas.
Outro ponto que se dilui na narrativa é um conto atribuído à personagem Marcela A., escritora brasileira que, assim como o casal Arthur e Teresa, também passa uma temporada em Israel. A pequena narrativa ambientada parte na Rússia, terra de origem de Dúnia, a protagonista, parte em Israel, não se encaixa dentro do romance, e a única questão que apresenta é o papel secundário da mulher nas sociedades russa e israelense. A autoria pretensamente feminina pode envolver André de Leones numa desnecessária polêmica sobre o papel das escritoras brasileiras e o lugar delas na nossa literatura.
Conflitos humanos e a psicologia de cada personagem são questões sempre discutidas pelos romancistas brasileiros da atualidade. Sabe-se que a grande literatura passou a ser chamada assim porque seus autores souberam apresentar e especular com maestria os conflitos da alma humana. Vemos isso desde Dante, passando por Shakespeare, desaguando num Dostoievski, num Machado de Assis, num Tolstói e mesmo em James Joyce, entre outros. Portanto, desenvolver este tema na literatura brasileira de hoje requer maturidade, aprofundamento e vagar, para que a obra não empalideça diante dos grandes clássicos, requintados especuladores da natureza humana.

domingo, julho 06, 2014

Pavlov e o poeta romeno

Em “Esquilos de Pavlov”, Laura Erber cria fronteiras inusitadas para o debate sobre arte e liberdade

Laura Erber, no seu primeiro romance, apresenta a questão inerente a toda boa literatura: o estranhamento. O personagem principal de Esquilos de Pavlov, Ciprian, é romeno, e toda a narrativa, ambientada na Europa, passa ao largo de referências ao Brasil. Este aspecto poderá levar o leitor brasileiro a uma pergunta difícil de ser respondida: o que caracterizaria, nos dias de hoje, uma literatura nacional? Talvez o que se possa dizer é que, quando se trata de boa literatura, ela escapa a definições generalizantes. Outra resposta poderia ser que tal estranhamento ocorre não necessariamente pelo fato de a narrativa ambientar-se em outros países, mas pela margem de novos sentidos que tanto a ficção como a poesia é capaz de oferecer. Além disso, a arte, quando tem o poder de fazer refletir sobre o nosso (não) lugar no mundo, torna todos — autores e leitores — estrangeiros.
O romance começa com uma reflexão que o narrador em primeira pessoa atribui à própria mãe, embora ela se mostre incapaz de colocá-la em palavras. Trata-se da necessidade da continuação da espécie; apresentada naquele momento, no entanto, sob a retórica do regime comunista ainda vigente na Romênia, e que justificaria a vinda ao mundo deste mesmo narrador. Ciprian acrescenta, falando do seu nascimento: “É o início de uma nova década e dizem que a pintura vai acabar. Dizem que a nova beleza está na forma das cidades e no rosto das pessoas. E dos carros”. O livro, já então, revela ao que vem. Tratará da arte contemporânea. O narrador continua, “não pensava em ser artista embora cursasse belas artes. [...] Por sorte ou por miopia do partido comunista a biblioteca pública me empregou como secretário e larguei a faculdade”. O personagem passa a fazer nas bibliotecas o que chama de intervenções, atitudes que lhe vão permitir diálogo com os artistas de “vanguarda”. Estes sempre estarão à sua volta. Ele prossegue: “na biblioteca era mais fácil encontrar personagens que eu gostaria de ter sido ou encontrado. Pensamentos que gostaria de ter pensado ou escrito. E todo o nosso desenredo. O jovem que só era feliz na biblioteca foi uma espécie de cinéfilo dos livros”.
Mas Ciprian tem a trajetória alterada devido a uma bolsa de residência que obtém para se fixar temporariamente em alguns países da Europa. Ele deixa a Romênia e transita pela Alemanha, Dinamarca, França e Suécia. É na Dinamarca, porém, onde ocorre grande parte das peripécias do romance. O personagem, sempre que necessita, inclusive em se tratando de assuntos policiais, recebe misteriosa ajuda da maçonaria, fato para o qual nem mesmo ele sabe o motivo. Será por que seu pai fora um dia maçom?, ele se pergunta.
Seu pai merece um parágrafo à parte. No final dos anos trinta, travou contato com o surrealismo. Mas o mau encontro que teve com o movimento artístico perturbou-o até o fim da vida. Spiru é o seu nome, assinando vez ou outra alguns textos como Pulga, fato que o filho só descobre anos mais tarde. Spiru chegou a trabalhar com homens que viriam a se tornar famosos, como Paul Paun, Gellu Naum e Ghérasim Luca. Recolheu sucata para este último, que elaborava uma nova teoria da “circulação do desejo, incluída no livro O vampiro passivo, publicado pelas Edições do Esquecimento em 1945”. Spiru torna-se conhecido por publicar regularmente episódios de As aventuras do ursinho metalúrgico, obra que escreve por questões de sobrevivência. Não era através de narrativas edificantes, protagonizadas por um personagem que glorifica a ideologia sob a qual a Romênia ainda estava imersa, que Spiru buscava a fama. Mas um dia, ao fazer intervenções nas fichas do acervo de uma biblioteca particular na França, Ciprian descobre a verdade sobre o pai.
A questão principal do livro, no entanto, é a seguinte: o que é arte nos dias de hoje? Quais são as instituições que ajudam o artista contemporâneo e por que motivo elas atuam nesse sentido? O que é uma bolsa de residência num país estrangeiro? Percebe-se, ao mesmo tempo, o caráter mercantilista da arte contemporânea, e mesmo o descarte de alguns artistas por outros mais jovens. Muitos acabam produzindo fachadas de azulejos para milionários, e assim ganham dinheiro. Há também aqueles que contratam candidatos a escultores como assistentes e os exploram sistematicamente.
 Condicionamento e liberdadeA referência a Pavlov, num primeiro momento, aparece em Ulrikka Pavlov, uma mulher que discursa aos artistas conclamando-os a abandonar a vida artística: “[...] abandonem as obrigações desse sistema que não faz mais do que impedir o artista de se desenvolver plenamente”. No final, a personagem acaba por agradecer Ole Ordrup, uma espécie de mecenas da arte de vanguarda na Dinamarca. Mas ela não lhe agradece pelo suporte, e sim pela invenção de um delicioso drinque que ela mesma teve a “honra” de batizar Esquilos de Pavlov.
Por outro lado, o narrador refere-se ao Experimento Pitesti, um programa de reeducação empreendido pelos comunistas romenos nos anos 1940 e 1950 contra os dissidentes do regime. O experimento era uma espécie de condicionamento comportamental em que a subjetividade era violentamente aniquilada. Tal programa empregava torturas difíceis de acreditar, mas o romance as descreve minuciosamente. As vítimas teriam sido, sobretudo, estudantes nacionalistas. Tudor de Gherla, um excêntrico poeta romeno que também participa de uma bolsa de residência na Dinamarca, teria sido uma delas. Em determinado momento do livro, a autora faz Ciprian dizer: “Tudor não era chamado de Tudor de Gherla pela poesia que escreveu na sua cidade natal ou sobre ela, e sim pela poesia que nunca conseguiria escrever”. A partir deste momento, a referência a Pavlov alcança outros patamares. E, portanto, a aspiração à liberdade não deixa de permear todo o romance, aparecendo sempre como necessária.
Estando em seu próprio país, a Romênia, antes da queda do comunismo nos países do leste, Spiru, o pai do narrador, defronta-se com uma rede de espiões e com a temida Securitate (uma espécie de braço da KGB soviética na Romênia). Já na Dinamarca, Ciprian se vê sob olhar desconfiado da polícia e dos habitantes locais, o eterno problema dos imigrantes e dos artistas de vanguarda. Neste país escandinavo, pintores, escultores e o que mais se pode chamar de artista reúnem-se em torno de uma bolsa concedida por um milionário que, na verdade, tem objetivos estranhos à arte. Na França, onde enfim Ciprian se estabelece e escreve suas memórias, ele já entrou pelos quarenta anos de idade e se considera um artista que sempre esteve patinando, sem conseguir decolar; nesse momento, já não é aceito como candidato a qualquer tipo de bolsa.
Laura Erber entremeia seu livro com fotos e gravuras, proporcionando-nos além da narrativa romanesca uma espécie de passeio por uma exposição. Tal fato não apenas dá um bom resultado, como também mostra o poder da autora em fazer um contraponto entre literatura e imagem, dois tipos de arte muito diversos e nem sempre amistosos.

segunda-feira, junho 02, 2014

Malhas que o império tece


A literatura portuguesa contemporânea sempre nos brinda com boas obras, e Peregrinação de Enmanuel Jhesus (Editora Tinta da China), de Pedro Rosa Mendes, segue a mesma trilha. Trata-se de um livro que descreve todo o percurso que resultou na independência do Timor-Leste do domínio da República da Indonésia, em 1999. Mas para os amantes da literatura a vantagem é que a História é narrada em forma de ficção.

Já no capítulo de abertura, Matarufa, veterano da resistência timorense, relata o dia em que a ONU anunciou o resultado oficial do plebiscito que reconheceu a pequena ilha como país independente: “Às 9 horas da manhã de sábado, 4 de setembro de 1999, no Hotel Ma’hkota, em Díli, Ian Martin, chefe da missão internacional, anunciou os resultados da consulta popular em Timor-Leste: 21,5 por cento tinham votado a favor da autonomia, 78,5 por cento votaram contra.” É preciso esclarecer que “a favor da autonomia” significava permanecer como região “autônoma” da Indonésia, o que não foi a vontade dos habitantes de Timor-Leste, pois a maioria optou pela independência.

O romance possui um eficaz artifício literário. Começa como um auto de missão levado avante pelo bispo Per Kristian Kartevold, da Igreja da Noruega (outubro/novembro de 1999). Isto quer dizer o seguinte: trata-se de uma investigação sobre o suposto paradeiro de um nativo, afilhado deste bispo, que teria desaparecido no Matebian (montanha sagrada conforme a tradição local), exatamente no dia do plebiscito na ilha.

Em forma de inquérito, são enumerados vários personagens que teriam concordado em falar sobre o desaparecido, sobre o país e, enfim, sobre tudo que estava relacionado à luta pela libertação. Não escapam narrativas sobre as tradições dos vários povos que formam a etnia timorense, mesmo aqueles que antecederam a chegada dos portugueses. É sempre bom lembrar que a chegada de Portugal à região data do segundo decênio do século 16. Entre os personagens que depõem neste inquérito literário, encontram-se pessoas que estiveram ao lado da resistência timorense e outras que atuaram junto à administração da ilha sob o domínio da Indonésia ou fizeram parte do seu serviço secreto. Como se sabe, a Indonésia invadiu o Timor logo após a saída dos portugueses, em 1975.

Ao apresentar testemunhos de personagens que estiveram em ambos os lados da luta pelo domínio do Timor, a narrativa acaba por tornar-se polifônica. São oito pessoas (sete homens e uma mulher, entre os homens há um padre) que contam a história do país, cada um sob a sua perspectiva. O romance de Pedro Rosa Mendes, com isso, filia-se à narrativa de António Lobo Antunes, ficcionista que melhor soube ousar nas letras lusitanas. A influência de Antunes pode ser observada não apenas na forma (organização dos parágrafos, diálogos e pontuação), mas também na repetição dos mesmos acontecimentos sob pontos de vista diferentes.

Além desses aspectos estruturais, é possível perceber no romance o mal que toda espécie de colonialismo foi capaz de causar mundo afora. Até mesmo a presença portuguesa, que acabou por predominar porque permaneceu durante muito tempo no local e deixou como herança a língua, é discutida pelo autor. Portugal colocou uma centelha a mais na já conturbada rivalidade existente na região à época das grandes navegações. Povos de Java e de Sumatra havia muito pretendiam o domínio da região.

No final do romance, o autor empreende uma viagem à Noruega, aonde vai ao encontro do tal bispo que seria o autor do relato que nos apresenta. Após boas observações sobre o país nórdico, os contrastes com Portugal e com o Timor, o suposto “editor” (este seria o papel de Pedro Rosa Mendes na organização do livro) estende sua viagem ao Polo Norte, exatamente à cidade onde o bispo reside, localizada em território russo. Ali encontra o religioso com a saúde já bastante debilitada, mas ainda capaz de lhe fazer revelações que proporcionam novo alento às suas investigações.

Talvez, o maior êxito do romance seja a bem sucedida exposição do caráter mágico relativo à resistência das hostes timorenses contra os opressores, sejam eles de onde quer que tenham vindo. Tais segmentos lembram o realismo mágico das literaturas da América Latina. Na luta pela liberdade, até mesmo os ancestrais estão sempre de prontidão, habitando um passado que de certa forma revela-se sempre presente, ou um presente que não se atemoriza diante de um duvidoso futuro.

Outro ponto digno de nota é a descrição das atrocidades perpetradas pelas forças de ocupação da Indonésia, que, segundo a narrativa, não pouparam velhos, mulheres e crianças, condenando todos à fome, à miséria, à morte.

A estada de Pedro Rosa Mendes no Timor-Leste, a título de fazer uma série de reportagens sobre a perspectiva da região após a independência, acaba por revelar não apenas a escolha do povo local pela independência e pela língua proibida pela Indonésia enquanto esteve no poder, o português, mas ainda esclarece que, no mundo atual, cultura alguma é capaz de ser autossuficiente.

Trecho do romance:
Tenho uma memória pequenina de meu pai. Ir aos ombros dele quando, ao descermos do Matebian, um soldado indonésio nos fez parar e ordenou
Dá a criança à tua mulher porque tu ficas aqui,
é essa recordação que tenho, um soldado de boina vermelha, arrancando-me aos braços de meu pai, falando em indonésio, e dando ordens através de um intérprete timorense,
Larga o rapaz, tu és preciso aqui para ajudar as milícias.
Eu nasci em 1974, tinha três ou quatro anos na altura, não entendia nada do que estava a acontecer. O meu pai não queria dar-me. O soldado indonésio arrancou-me e deu-me a minha mãe. Vieram separá-la de meu pai também. Lembro-me dos gritos nossos e deles misturados. Uma bulha. Depois, mais nada. A minha mãe, os meus irmãos e eu continuámos descendo a encosta. Meu pai ficou para trás. Parámos mais abaixo para dormir e esperar se viria ter conosco. Pelas doze da noite ouvimos uns disparos e a minha mãe disse
O vosso pai já morreu. Vamos embora.

O autor:
Pedro Rosa Mendes nasceu em 1968. É autor de uma obra heterogênea que engloba ficção, ensaio e reportagem, com incursões no teatro e na poesia. É autor de quatro romances – Baía dos tigres (1999, prêmio Pen de narrativa), Atlântico (2003), Lenin oil (2006) e Peregrinação de Enmanuel Jhesus (prêmio Pen de narrativa 2011). Atualmente Pedro Rosa Mendes vive em Genebra, na Suíça.

quarta-feira, abril 16, 2014

A literatura e o logro

Primeiro romance de Alberto A. Reis apresenta um narrador suspeito

O leitor de romances não gosta de ser enganado. Essa verdade é mais fácil de ser observada na literatura policial. Entre os cultores do gênero, sobretudo entre os escritores, é regra que o narrador não poder ser o personagem que praticou o crime. Ainda outro ponto: o bom narrador desse gênero, junto com o seu detetive, segue pistas que levarão ao criminoso. Quando este é descoberto, parecerá ao leitor que o próprio narrador vem a reboque do seu herói-detetive. O autor de literatura policial não deve, no final da narrativa, apresentar uma solução em que nas páginas anteriores tenha enganado o leitor. Apesar de alguma controvérsia, em toda a literatura tal concepção de certo modo vigora. Ninguém quer ouvir história de uma voz que, no final do relato, o terá passado para trás. Na literatura brasileira, temos a questão do narrador suspeito. Mas ela geralmente vigora em narrativas em primeira pessoa. Caso este narrador participe da trama e ele seja o protagonista, muitas vezes há de se perdoar o logro. O personagem quer salvar os seus interesses. Neste caso, no entanto, mesmo assim, o logro não será total. O bom leitor olhará com suspeição este tipo de narrador desde o início.

No romance histórico Em breve tudo será mistério e cinza, de Alberto A. Reis, o leitor experimentado não sairá da narrativa logrado, mas perceberá o pecadilho que cometeu o autor. Ao optar por um narrador em terceira pessoa, narrador onisciente, que paira acima da trama, o autor tenta ludibriar o leitor no começo da história.

O livro tem início na Paris da segunda década do século XIX. Um casal de franceses embarca para o Brasil. A mulher é filha de um joalheiro que dirige uma casa famosa à época, a Gerbe D’0r. François Dumont é convencido pelo sogro a se aventurar no interior do Brasil, precisamente nas Minas Gerais, em busca de diamantes.

A aventura é suspeita. Pois não é praxe ser oferecida tal missão a um homem até certo ponto medíocre, não acostumado a aventuras, tanto mais quando se trata de um bom frequentador do fastio parisiense. Mas François aceita a missão e, depois de uma tempestuosa viagem, desembarca com a mulher no Rio de Janeiro.

Após ser informado da morte trágica do sogro ocorrida em Paris, por intermédio da Missão Diplomática Francesa no Rio de Janeiro, Dumont cavalga como o amigo Fernando Murat, de volta à chácara onde este último o hospeda. Em meio a uma conversa entremeada por longos momentos de silêncio, o narrador interpõe um flashback remontando a Paris no momento anterior ao embarque de François. Neste trecho, somos informados de um grande roubo na Gerbe D’Or. Trata-se do desaparecimento de quatro graúdos diamantes pertencentes a uma condessa. Na página 79, o narrador em terceira pessoa (é bom sempre reafirmar esse ponto) engana o leitor: “François, no entanto, estava triste. Sentia-se só no mundo. Havia perdido, em poucos segundos, o sentido de sua viagem e a herança do sogro.” Mas próximo ao final, principalmente a partir da página 489 (capítulo chamado Pedras Mortas), na conversa que tem com Dona Beja (ela mesma, a tal deusa da beleza de Araxá), François Dumont fará uma contundente revelação. O leitor, então, perceberá que não foi exatamente isso que o narrador proferiu no começo do livro.

Outro ponto negativo refere-se aos diálogos. Com exceção de uma palavra ou outra, mesmo quando trata da fala de escravos, eles seguem um padrão único. Em determinadas passagens é difícil de acreditar no discurso indireto livre de personagens como Maquim, Rosa Xangana e Duzinda. Algumas dessas reflexões beiram problemas filosóficos, difíceis de serem atribuídos a personagens que estiveram ainda recentemente ligados à vida tribal.

Mas a narrativa não deixa de ter virtudes, principalmente por se tratar de uma obra com 564 páginas onde a trama principal e histórias paralelas se desenvolvem e se resolvem satisfatoriamente. O romance é dividido em cinco livros (ou partes), cada um deles possui título: “Por terras e por mares”, “Tempo de guerras”, “Batalhas cívicas”, “Rebeliões” e “Passim”. O primeiro aborda, em sua maior parte, a viagem de François Dumont e a esposa. Também se situa neste trecho parte da história da joalheria Gerbe D’Or e de seu proprietário, o sogro de Dumont; a chegada do francês ao Recife e ao Rio de Janeiro depois de muita intempérie; e a rede de influentes contrabandistas, que inclui pessoas de renome. Elas facilitam o envio de pedras preciosas para a Europa, conseguindo a inserção de ouro e diamante no mercado, uma espécie de lavagem de dinheiro da época. O segundo livro já enfoca a questão da escravatura e como os brasileiros brancos lidavam com ela; depois introduz política e aventura na busca desenfreada pelos minérios mais valiosos. “Batalhas cívicas” e “Rebeliões” descrevem a tentativa de um mundo ainda rústico ter como fiel da balança o Direito, mas tudo de modo combinado e fingido. Quando as coisas fogem do controle, desemboca-se nas rebeliões. Na última parte, há o suplício do escravo Maquim, e a já citada revelação (objeto de controvérsia na escritura do romance) que o narrador põe na voz de Dumont.

Como romance histórico, o livro nada acrescenta, proporcionando a personagens reais apenas traços caricatos. A narrativa prima em apresentar a sensualidade das escravas negras, do cortejo de Dona Beja, em Minas, e a voluptuosidade de padres homossexuais e pedófilos, sendo alguns entre eles ricos.

Como todo livro tem um quê de romance policial, Em Breve tudo será mistério e cinza também vai por esse filão, mas o narrador em terceira pessoa, ao se colocar sob a perspectiva ideológica do protagonista, elimina qualquer sutileza de surpreender o leitor em relação ao problema principal que motiva a viagem do casal Dumont ao Brasil.

Trecho do livro:
François, no entanto, estava triste. Sentia-se só no mundo. Havia perdido, em poucos segundos, o sentido de sua viagem e a herança do sogro. Mas de que lhe valeria? Ele nunca teria uma parte significativa daquilo. Mesmo que a tragédia não tivesse ocorrido, tudo iria bem para Louis e Hubert. No melhor dos casos, ele e Honorée recolheriam apenas algumas migalhas da riqueza do sogro. Talvez ainda pudesse escrever ao tio da esposa. Tentar salvar ainda alguma coisa. Ficaria no Brasil. Acharia enquanto isso seus diamantes e, em breve voltaria para Paris rico, muito rico, cheio de histórias parecidas com aquelas que até pouco antes absorvia no clube de leitura de Mme. Baudot.

Sobre o autor:
Alberto A. Reis nasceu em Belo Horizonte em 1947. Mudou-se para Paris em 1968, onde se graduou em Psicologia Clínica. Lecionou na Argélia e foi professor da Faculdade de Medicina da PUC –  SP. Atuou como psicanalista e hoje é livre-docente da USP, universidade em que coordena o Laboratório de Saúde Mental Coletiva. É autor de numerosos artigos e livros sobre psicanálise, saúde mental e saúde pública. Em breve tudo será mistério e cinza é seu primeiro livro de ficção. 

terça-feira, março 04, 2014

“Talvez a gente só escreva sobre o que nunca existiu”


Livro de Verônica Stigger discute o caráter sempre em trânsito da cultura brasileira

Opisanie Swiata, que em polonês quer dizer descrição do mundo, é quase um livro de viagens. Mas depois se percebe que a volta ao Brasil empreendida pelo protagonista para uma breve visita ao filho, que ele não conhecia, é quase que definitiva. Se há possibilidade de retorno à Polônia, ela é bastante remota. Começara a Segunda Guerra Mundial.

O romance se inicia com uma carta de Natanael ao pai. Dentro do envelope vai também a passagem. O filho vive na Amazônia. Na carta, Natanael insiste para que o pai venha, pois deseja conhecê-lo. Revela que está doente, que não demore, não sabe se viverá até o dia de seu regresso. A medicina ainda não encontrou os meios de detectar a sua doença. Ainda dita ao pai algumas recomendações que deve observar durante a viagem, e diz que o espera ansiosamente. Daí em diante, podemos perceber as questões que o romance apresenta.

A primeira delas é a saudade. Pois Opalka, o polonês, deixa sua cidade para trás, e o leitor começa a desconfiar de que ele dificilmente a verá de novo. Em segundo: por causa da guerra – e sem saber dela –, ele está prestes a se tornar um imigrante, um dos elementos fundadores da cultura brasileira. Em terceiro, ainda há outros sentimentos, como o amor e uma espécie de nostalgia, mas agora pelo filho que ele não conhece e pela precariedade da saúde dele.

Para completar, num dos primeiros momentos da viagem, enquanto aguarda o trem que o levará ao porto, Opalka se depara com um personagem inusitado, homem divertido e atrapalhado, cheio de malas e bugigangas, alguém que vive viajando pelo mundo. Trata-se de Bopp, um brasileiro. Quando descobre que Opalka fala português e toma conhecimento do motivo de sua viagem, abre-se em sorrisos, faz mais um amigo e deseja acompanhá-lo no seu retorno ao Brasil, mais propriamente à Amazônia, onde Bopp diz já ter vivido.

A narrativa, ao abordar esses dois personagens, apresenta tipos que a princípio seriam antagônicos, mas depois se percebe que um é quase o complemento do outro. Enquanto Opaka viaja a partir da Polônia, o brasileiro apresenta-se como alguém em constante trânsito, conhece ambas as Américas, a Ásia, e acaba de chegar de Vladivostok, na Rússia. O polonês deseja sossego para ler o jornal. Bopp fala constantemente e o atrapalha na leitura. Opalka já estivera na região norte do Brasil nos primeiros anos do século XX. Bopp nessa época mal havia nascido. No final, o leitor perceberá que a influência de Bopp perdurará sobre o seu taciturno e recente amigo polonês.

Tanto na viagem de trem, como na de navio, ocorrem fatos que flertam com o fantástico. Isto talvez revele o objetivo da autora em reiterar que tudo é literatura. Tais momentos se concretizam com a chegada da italiana Priscila e o desaparecimento de sua aranha Maria Antonieta; depois, no navio, com o sádico batismo executado pelo comandante àqueles que ainda não haviam cruzado à linha do Equador; e no momento em que todos a bordo acenam a outro transatlântico, El Durazno, que navega continuamente proporcionando a seus passageiros uma vida fora do mundo, liberada de todos os preceitos e preconceitos morais (é a época da guerra, há de se convir), é para ele que fogem as irmãs andaluzas Olivinhas.

A narrativa não possui apenas uma voz. Ela se dá ora em primeira ora em terceira pessoa, e também há várias cartas que contribuem para o avançar da trama. Um poema próximo ao fim do romance contribui para mesclar os vários gêneros que compõem a narrativa, fazendo o livro beirar o experimental. Gravuras anunciando produtos ou serviços, todos eles da primeira metade do século XX, ilustram a narrativa e propiciam ao leitor conhecimentos da publicidade à época, além de ainda servirem como suporte para a narrativa. Há também recomendações para o desconfiado viajante europeu que se aventura pela América Latina de então.

O microcosmo étnico, formado por pessoas de várias nacionalidades, representa bem a humanidade do período do entreguerras, sublinhando os aspectos mais marcantes de cada personalidade, confere a jovem italiana, o russo, os alemães, os ingleses e, por fim, o próprio brasileiro.

Na chegada à Amazônia, Opalka se vê diante de uma situação pungente. E sempre incentivado pelo amigo, resolve escrever “opisanie swiata”, isto é, a sua descrição do mundo. Na verdade é o brasileiro que revela a ele: “– Tome – disse Bopp, estendendo-lhe um caderninho preto. – É um presente. Serve para fazer anotações. Para que o senhor escreva o que passou. Ajuda a superar. E a não esquecer. A gente escreve para não esquecer. Ou para fingir que não esqueceu. Bopp se calou e, depois de um tempo, acrescentou: – Ou para inventar o que esqueceu. Talvez a gente só escreva sobre o que nunca existiu.”

Procurar uma filiação literária para Verônica Stigger é algo problemático. Opsanie Swiata, ao transitar na direção oposta, isto é, do exterior para o Brasil, trazendo no enredo o retorno de dois personagens (um à sua terra natal; outro à terra onde deixara um filho) nos soa como algo antropofágico. Pois não se trata apenas de a cultura brasileira absorver o que vem de fora, mas também uma cultura brasileira que já transitou por outros países e agora retorna mais robusta e feliz ao seu país de origem, pois também se tornara alimento a completar e deixar marcas em outras culturas. Portanto, filiar este livro à ideologia modernista seria torná-lo menor. O que há aqui é um trânsito entre culturas, deixando no mesmo patamar de tantas outras a cultura brasileira, algo talvez impensável à época dos dois Andrades.


Verôncia Stigger nasceu em !973, é gaúcha radicada em São Paulo desde 2001. Doutora em história da arte, crítica de arte e professora universitária, defendeu tese sobre a relação entre arte, mito e modernidade, enfatizando as obras de Kurt Schwitters, Marcel Duchamp, Piet Mondrian e Kasimir Malevitch. Em seu pós-doutorado estudou, entre outros, os artistas brasileiros Maria Martins e Flávio de Carvalho. Seu primeiro livro, O trágico e outras comédias, foi publicado pela editora portuguesa Angelus Novus, em 2003 e, no Brasil, pela 7Letras, em 2004. Pela Cosac Naify, publicou Gran cabaret demenzial (2007) e Os anões (2010). Alguns de seus contos foram traduzidos para o catalão, o espanhol, o francês e o italiano.

segunda-feira, janeiro 27, 2014

A viagem maior

Júlio Ricardo da Rosa aprofunda o duplo na literatura através de disfarce permitido pela internet

A existência do duplo sempre foi presente em toda a história da literatura. Na poesia, por exemplo, através da tensão entre linguagem figurada e linguagem referencial; na narrativa, sobretudo, através da dialética entre autor e narrador. Tais artifícios não só expandem a possibilidade de leitura de cada texto, como também ampliam suas perspectivas de representação e de criação de realidades.

Sabe-se que autor e narrador são entidades que ocupam instâncias diferentes. Portanto, ao criar um narrador marginal, não se supõe que o autor também viva à margem da sociedade. Quando o autor expande esse duplo ao estabelecer um narrador-autor que cria ainda outro narrador, podemos dizer que foi instituída a narração em abismo. Trata-se, então, de três histórias: a do autor em relação a todo o romance, a história que o narrador nos conta, e a do autor “fictício”, criação do narrador, que também está a nos propor mais uma história. É o que acontece em O viajante imóvel, de Júlio Ricardo da Rosa.

Não é difícil perceber o ardil, na verdade já a partir do segundo capítulo. No primeiro, o romance começa com uma aventura no deserto. Félix Kölderlin presencia uma batalha entre os tuaregues, povo nômade de etnia árabe, que transita pelo norte da África. Já no segundo capítulo, apresenta-se outro narrador, cujo nome é Vitor Assis. Este sim, o viajante imóvel. Daí em diante, quase em capítulos alternados, acompanharemos a trajetória desses dois personagens. O primeiro a aparecer é escritor de livros de viagens radicais, mas (ao menos no início) trata-se de um personagem sobre quem é impossível se fazer publicidade pessoal. Ele nem sequer conhece o seu editor, envia-lhe os textos por correio eletrônico, em meio às suas aventuras em torno do mundo. O segundo, Vitor de Assis, é uma pessoa infeliz, alguém que permanece trancado num apartamento fazendo traduções do alemão para um homem chamado Turco, um tradutor juramentado. Assis vive vigiado e até certo ponto aprisionado pela ex-mulher, como já se pode perceber desde o início do livro. Tal fato o incentiva a tramar um plano espetacular de vingança e de libertação. Ele cria então o escritor-viajante, que lhe permite faturar com o sucesso de suas aventuras transformadas em livros. Se essa situação vai perdurar ou se a ficção será desmascarada, compete ao leitor descobrir.

Uma vez que no mundo das ideias tudo poder ser viável, analisemos a obra partindo do seu criador, Júlio Ricardo da Rosa. O autor soube aproveitar muito bem o recurso imprescindível da atualidade, a internet. A rede possibilita, mais do que em qualquer outra época, que em poucos minutos se possa tomar conhecimento sobre qualquer assunto (ainda que de modo superficial). Permite também a qualquer mortal chamar alguma atenção sobre si. Outra possibilidade da internet é incentivar certo namoro com a fraude, principalmente quando há a criação de pessoas fictícias. Até que ponto se pode forjar uma nova identidade e conseguir documentos “oficiais” através de sites pertencentes ao submundo da rede? Quanto se precisa pagar por isso? Qual o risco que se corre? Rosa nos mostra um caminho divertido e perigoso, que pode ser até mesmo verdadeiro. Ao mesmo tempo que consegue dar a Vitor Assis bastante verossimilhança, o autor cria um Félix Kölderlin titubeante, uma espécie de falsário amador, que acaba bem sucedido devido à ganância do mercado editorial.

No universo de Kölderlin, o autor das histórias radicais, quase tudo é possível. O perigo e o risco de morte sempre rondam os personagens. No de Assis, a aparência é de imobilidade, mas no final há um exagero surpreendente, maior do que o do autor das aventuras à beira de vulcões, batalhas, escarpas e ondas gigantes. Como a literatura, no entanto, é feita muitas vezes de situações que extrapolam a realidade, situações estas em que o exagero é necessário, entra-se na fantasia e é possível acreditar no desfecho, que beira o inverossímil.

Há dois momentos no livro que creditam ao autor a qualidade de saber aproveitar narrativas paralelas. Apesar de não fazerem parte da história principal, acabam por apresentar boas questões. A primeira é narrada por Vitor Assis, em meio ao seu trabalho de tradutor. Trata-se do episódio da vida de um ex-agente do serviço secreto da Alemanha no período em que o país estava dividido. O homem, após ter vivido no lado oriental, foge para o Ocidente, e no final vem dar no Brasil. Não devido à profissão que exercera, mas sim por estar fugindo de duas mulheres. Morara e dormira com ambas simultaneamente, numa espécie de casamento a três. Um dia descobre que elas tentaram envenená-lo. O motivo: a herança. O trabalho de Assis é traduzir a peça jurídica que deverá ser assinada pelo tal homem. Uma das mulheres, a verdadeira esposa, reclama uma pensão, pois alega ter sido abandonada pelo marido, que, a seguir, teria fugido para o Brasil. Outro episódio interessante é relatado pelo narrador-aventureiro. Chama-se: “Na rota da Guerrilha”. Aqui, Júlio Ricardo da Rosa discute a resistência aos regimes autoritários na América Latina, incluindo um ex-agente do exército nazista que teria fugido no final da guerra para a América do Sul. Ele passa a ajudar os guerrilheiros que combatem as ditaduras locais. Talvez o lado negativo de tantas narrativas seja dar ao livro um ar de romance total, mas revela a habilidade do autor em inserir histórias paralelas e demandas diversas a uma narrativa maior.

O título do livro, O viajante imóvel, permite especulações e diálogos com uma longa fila de autores, começando por Xavier de Maistre em Viagem à roda do meu quarto, passando por Machado de Assis, que cita Maistre várias vezes, até desembocar em Joyce que, com o seu Ulisses, cria o duplo Leopold Bloom / Stephan Dedalus.

Além da alternância entre os dois narradores, com trechos quase sempre intercalados, há um longo flashback – necessário para conhecermos a vida pregressa de Vitor –, onde a história se desenvolve por um narrador em terceira pessoa. No capítulo 8, denominado “Identidade Kölderlin”, voltamos ao narrador Vitor Assis, permanecendo assim até o final, o que também acontece nos capítulos intercalados onde há a narração empreendida pelo escritor aventureiro.

Como epígrafe do romance, Rosa cita Ernesto Sabato: “A arte é quase sempre um ato antagônico, e um homem parado pode ter muito mais imaginação do que outro que percorre o planeta.” A citação antecipa o desenrolar da história, que aponta a literatura como a viagem maior, tanto mais quando lembramos que muitos dos escritores viajantes não lograram fisicamente ir muito longe, mas suas obras, além de atingirem estâncias inauditas, nos perseguem e nos mantêm presos a essa eterna peregrinação.

Trecho do livro:
O Lascar estava adormecido por mais de dez anos e, em sua última manifestação, as cinzas haviam atravessado a Argentina e chegado até o sul do Brasil. O calor aumentava, e um leve tremor sacudiu o chão. Luc e Sabine verificaram os aparelhos. Trocavam frases curtas, os olhares fascinados. O vulcão cuspiu as primeiras chamas, e o tremor foi maior, quase roubando meu equilíbrio. Enterrei o chapéu na cabeça enquanto me firmava para retomar a caminhada. Não queria parecer medroso, mas a situação ultrapassava o razoável. Deveríamos nos afastar e não prosseguir em direção ao topo. Novo tremor, e uma golfada de lava jorrou do alto da montanha, alcançando as raras árvores da paisagem e queimando o solo enquanto as cinzas desciam sobre nós. Gritei, chamando meus companheiros de volta, e Sabine replicou sem me olhar, enquanto continuava avançando:

– É apenas uma explosão, não corremos perigo, vai passar logo. (Trecho de Terra em chamas, o mais recente livro de Félix Kölderlin). (O viajante imóvel, Júlio Ricardo da Rosa)

Sobre o autor (Júlio Ricardo da Rosa):
Nasceu em Porto Alegre. Durante os anos 80, escreveu sobre cinema para os jornais Zero Hora, Correio do Povo e Jornal do Comércio. É o responsável pela seleção de Filmes Bourbon, que se realiza todos os anos em novembro. Publicou os livros Beijo no escuro e Veludo.

O viajante imóvel
Júlio Ricardo da Rosa
Editora Dublinense, 253 páginas