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quinta-feira, julho 18, 2013

A ilha do tesouro

“É um contradição aparente.”

“Aparente?”

“Sim.”

“Por quê?”

“Porque você vem à escola e logo quer deixá-la; você vem para aprender alguma coisa, mas parece que não o deseja. No final, feitas as contas, creio que, mesmo assim, ainda sobra alguma coisa a seu favor.”

Jhonatan olhava os livros que estavam amontoados sobre uma das mesas da biblioteca; depois voltou a face para o professor, como se quisesse perguntar alguma coisa, mas o exemplar da Ilha do Tesouro, de Stevenson, com a capa colorida e algumas figuras quase em alto relevo, despertou-lhe a atenção. O livro remeteu-o ao mar que havia em frente à cidade e à visão das duas ilhas existentes diante da costa. Eram dois animais disformes que sempre quisera identificar, perfilados lado a lado, mas nunca conseguira; em uma delas, a montanha, um tanto escarpada, se destacava.

Professor Júlio também voltou os olhos para a mesa; tomou, em seguida, o livro nas mãos, folheou-o de modo displicente e disse:

“É um bom livro.”

Foi o suficiente para que o rapaz se desinteressasse. Esquivou-se esticando o olhar por sobre o peitoril da janela, em direção a um ponto indefinido na paisagem exterior. Passado algum tempo, o professor deixou livro e aluno e pôs-se a percorrer outras estantes.


O corpo da adolescente lhe escapava das mãos, o céu ia sem estrelas, as areias da praia dificultavam seus passos, pois não fizera como ela que tirara o calçado. Perseguia-a; a moça, porém, conseguia escapar e se ocultar nas sombras. O vento sacudia a vegetação rasteira; ao longo da única via, postes ostentavam lâmpadas apagadas e alheias ao prenúncio de tempestade. Quando decidiu tirar os sapatos e procurar Soraia, ela desaparecera sem deixar qualquer vestígio. Olhou na direção de onde ambos vieram, mediu a distância que percorreram e tudo se misturou à escuridão persistente.

Quando a convidara para passear, levá-la na garupa de sua pequena motocicleta, imaginou cenas indescritíveis, coisas que nunca fizera com mulher alguma - histórias existentes apenas em narrativas de colegas que tinham a mente cheia de imaginação. Ao ouvi-la aceitar o convite, não pôde mais duvidar de coisa alguma; a moça mais bela e desejada da escola seria sua, ao menos naquela noite, ainda que apenas por algumas horas.


Quando o olhar do professor cruzou com o seu novamente, percebeu que Soraia conversava com ele. Sorria e mostrava o livro que estava lendo. Com a presença dela, a biblioteca clareara, tornara-se mais viva e a escola mais agradável, mesmo numa cinzenta manhã de segunda-feira. A moça o encarou, deixou-lhe ligeiro aceno; agia como se nada tivesse acontecido.


Jhonatan esperou encostado a uma falésia. Preferiu o frio da madrugada a voltar para casa. A preamar trazia-lhe respingos esporádicos. Em determinado momento teve a impressão de que uma mulher saía nua do mar; ah, imaginações, pensou. Continuou com os olhos voltados para o mar escuro, na direção das ilhas que não podia enxergar àquela hora.

Ao amanhecer, a maré vazava. Foi então que percebeu que não estava sozinho. Soraia sorria e trazia os cabelos molhados. Mas estava vestida e agasalhada.

Voltou-lhe a mulher nua saindo das águas.

terça-feira, janeiro 29, 2013

Doutor

O empregado do bar aproximou-se respeitoso da mesa onde se encontrava Arlindo.

– Doutor, tem uma moça aí querendo falar com o senhor.

– Que moça?

– Aquela – disse apontando para o fundo do bar –, que está perto do banheiro feminino.

O mercadão de Madureira começava o dia de terça-feira sem muito movimento. O local, que é visitado por todo tipo de gente e serve principalmente a quem procura mercadorias baratas, possui em seus pequenos boxes e lojas comércio bastante variado. Ali, vendem-se diversas bugigangas: material para festas, material de papelaria, artigos de armarinho, artigos religiosos, de cabeleireiro, flores, balas e doces (estes procurados por ambulantes que trabalham nas ruas e nos transportes coletivos), ferragens, pequenos animais, rações entre outras; ultimamente, já há até mesmo a presença de lan houses. Nas horas de movimento, lanchonetes e bares servem de refúgio àqueles que precisam de alguns minutos de descanso, desejam matar a fome ou saciar a sede através de um copo de refrigerante ou mesmo de uma cerveja.

Num desses bares, a presença de Arlindo, ou Doutor, como é mais conhecido, é diária. Sua mesa é forrada com uma toalha especial, toda quadriculada, e vez ou outra ele seca o suor da testa por meio de um guardanapo de pano, que, no local, é também exclusividade dele. Este senhor, um tanto gordo e vestido de terno de linho branco, controla o jogo no local. Dizem que a toalha quadriculada é para debochar dos policiais, já que estivera preso inúmeras vezes mas sempre se saíra bem, tornando-se cada vez mais próspero.

– Diga a ela que é pra vir aqui.

O empregado fez um leve movimento com a cabeça e se retirou. Instantes depois, a moça se aproximou.

– Bom dia – disse entre tímida e enigmática.

– Bom dia, sente-se, tenha a bondade.

– Obrigada.

– Está servida? – perguntou enquanto enchia meio copo, com água mineral.

– Não, não, obrigada – agradeceu mais uma vez.

– Em que posso lhe ser útil?

– Gostaria de pedir um favor ao senhor.

Arlindo assentiu num gesto largo e bonachão; repousou o copo sobre o mesmo lugar onde estivera e a mirou por cima dos óculos de leitura, que ele raramente retirava.

– Qual a sua graça?

– Lindimar.

– Lindimar, bonito nome. Lembra-me das vezes em que trabalhei em Niterói.

– Uma amiga indicou-me o senhor.

– A mim? – pareceu surpreso.

– Sim. Diz que o senhor é muito afetuoso e, cá entre nós, não resiste às mulheres bonitas.

Arlindo desfez a posse e se pôs a rir, alisou de modo automático um pequeno trecho do forro da mesa e a olhou de novo, voltando à seriedade anterior.

– Está calor, peça alguma coisa – dirigiu-se a ela como que para quebrar o constrangimento.

– Não, não desejo nada, obrigada.

– Então me fale, vai, qual é o favor que desejas de mim?

– Uma pulseira de ouro.

Doutor, que já passara por quase tudo na vida, não achou surpreendente o pedido. Ainda repetiu as duas últimas palavras da moça, só que em forma de pergunta:

– De ouro?

Ela meneou a cabeça afirmativamente e se fez de encabulada.

– Já que seu pedido é irrecusável, fechamos o negócio.
Sinalizou ao garçom e pediu mais uma garrafa de água.

***

A Estrada do Portela é avenida de tráfego intenso a qualquer hora do dia. O viaduto, que atravessa a linha férrea, tem como cenário quase permanente ônibus e automóveis, o que intensifica a paisagem urbana de modo irremediável. Imagine-se o local às duas horas da tarde, num dia de verão.

O dia era o seguinte ao encontro no bar do mercadão. Arlindo e Lindimar atravessaram pela passarela. De cima, puderam observar o fluxo de pessoas nas ruas principais e na própria estação de trens. Ao desceram no lado oposto, caminharam durante alguns minutos pela calçada estreita. Fazia muito calor. Doutor não abandonava o lenço branco, que trazia em uma das mãos; vez ou outro o usava para secar o suor. Seguiram por uma rua secundária, acompanharam o casario antigo e depois entraram num velho sobrado. No segundo andar, havia uma tabuleta: Jóias – ouro e prata – Irmãos Xavier.

O homem de terno de linho branco cumprimentou um rapaz, o único funcionário do local. Ao reparar o ilustre visitante, pediu que aguardasse e desabou numa assustada correria em busca de um dos sócios da loja. Alguns minutos depois, entrava Seu Moysés, um senhor de mais ou menos sessenta anos, corpo magro, cabelos brancos, óculos estreitos. Procurava sempre demonstrar muito interesse sobre tudo que vendia; agia como se cada objeto fosse verdadeira relíquia.

– Doutor, que grande prazer tê-lo aqui, quanto tempo! O senhor não vai ficar de pé, aí, entre, sente-se, aqui atrás do biombo há uma poltrona confortável, tenha a bondade.

– Não, obrigado. Agradeço a gentileza. Estou com pressa. Peço que atenda a moça. É gente minha. Ela quer uma pulseira. De ouro, seu Moysés, de ouro.

– Oh, claro, pode deixar, será um grande prazer tê-la como cliente.

Arlindo cumprimentou-o apenas com um breve gesto, depois sorriu para Lindimar e disse:

– Procure-me guando tiver tempo.

Ela agradeceu com ligeiro sorriso.

Depois, Arlindo desceu a escada, seus passos eram firmes e compassados;
esfregava o rosto com o pequeno lenço.

***

Alguns dias depois, recebeu de novo a visita de Lindimar.

– E, então, gostou da pulseira? – perguntou como que surpreso.

– É linda! Adorei. Vim pra mostrar a você.

– Oh, que beleza! – exclamou enquanto tomava nas mãos o braço da moça –, é realmente maravilhosa.

– Também vim até aqui para agradecer.

– Não há de quê. Sempre que desejar alguma coisa e isto estiver a meu alcance, pode contar comigo.

Lindimar parecia querer dizer algo mais, mas não se sentia à vontade. Depois ensaiou algumas palavras.

– Sabe o que é? Vim lhe fazer outro pedido.

– Outro? Tenha a bondade...

– Quero que compareça a uma festa que vou dar lá em casa.

– Oh, queira me desculpar, mas não sou homem de festas.

– Será algo bastante simples e reservado.

– Olha, sabe o que acontece?, as pessoas me aborrecem, todos me conhecem, sempre querem algum favor.

– Ninguém lhe pedirá coisa alguma, garanto. E a festa será bastante íntima.

– Íntima?

– Isso, íntima!

– Então, é de se pensar, é de se pensar...

terça-feira, novembro 01, 2011

Vim apenas para lhe dar um beijo

Luísa segurou a xícara de café e a levou à boca. Enquanto saboreava o primeiro gole, olhou o vasto salão do segundo andar do aeroporto Santos Dumont. A funcionária que verificava os bilhetes junto à entrada da sala de embarque mantinha-se concentrada no trabalho. Olhando o lado esquerdo era possível ver a revistaria, uma loja de material esportivo, uma de souvenires e a Kopenhagen. Do lado direito havia uma charutaria e uma loja que exibia artesanato brasileiro. Luísa repousou a xícara sobre o pires e pegou uma das torradas. A manhã de terça-feira ainda estava tranquila no aeroporto, ao menos no salão próximo ao embarque, sobravam algumas mesas no café, até mesmo uma garçonete vinha perguntar aos clientes se desejavam mais alguma coisa, fato incomum em dias de grande tumulto. Através dos grandes vidros à direita, era possível observar a parte externa do aeroporto. As pistas do aterro tinham movimento intenso, mas o tráfego fluía com rapidez; mais adiante, via-se o Museu de Arte Moderna; ao fundo, o Pão de Açúcar; do lado oposto à baía, os prédios altos compunham a paisagem daquele pedaço do Centro que surpreende quem chega ao Rio pelo Santos Dumont.

Um homem alto e de porte atlético, que deveria estar na casa dos trinta anos, acenou ainda de longe quando percebeu Luísa em uma das mesas. Ela terminava o café, mas levantou a mão esquerda e correspondeu ao aceno. Ele aproximou-se, beijou-a no rosto e sentou ao seu lado.

“Querida, você sabia que eu não ia deixar que embarcasse sem uma despedida.”

“Não queria incomodar, viajo toda semana, vamos estar juntos de novo na sexta-feira.”

“Não é incômodo algum, e para mim nunca é demais estar com você.”

“Amor,  você precisa se acostumar, depois que nos casarmos minha vida não vai mudar em nada, preciso trabalhar, e, além disso, você tem o escritório, não deve se atrasar, vir aqui para se despedir de mim custa tempo e dinheiro.”

“Querida, você sabe que quanto a isso não há problema algum, sou um dos sócios da empresa, logo estarei de volta, vim apenas para dar um beijo em você”, sorriu.

A garçonete se aproximou.

“Ainda temos tempo ou você já precisa ir?”, ele perguntou à Luísa.

“Tenho dez minutos.”

“Então há tempo para eu tomar um expresso”, olhou para a garçonete, que anotou o pedido.

“Mais alguma coisa, senhor?”

“Não, apenas o café.”

Voltou-se para a mulher:

“Você me ama, não? Me deseja sempre ao seu lado?”

“Amo, quero estar sempre ao seu lado, mas não posso deixar o meu trabalho, não devo jamais renunciar à minha vida profissional.”

“Querida, não estou pedindo isso a você, trabalhe, atue cada vez mais, vou ficar feliz por vê-la bem sucedida.”

“O sucesso será nosso.”

“Isso mesmo, nosso; não se preocupe, vim aqui apenas para lhe beijar”, aproximou o rosto ao da mulher e a beijou mais uma vez.

A garçonete apareceu com o café. Ele procurou o açúcar, rompeu o lacre e colocou o pozinho granulado dentro da xícara.

“Quando não havia o café expresso, colocava-se o açúcar primeiro”, ela falou e sorriu.

“Você viveu nesse tempo?”, ele mexia o café com a pequena colher.

“Que tempo?”

“O tempo em que o café expresso ainda não existia.”

“Não”, ela falou e olhou o relógio, “minha mãe é que diz isso, quando faz café fala para colocarmos antes o açúcar; caso não seja assim, o café não terá o mesmo gosto nem a mesma temperatura.”

“Isso são coisas de antigamente.”

“Minha mãe não é velha, você sabe, tem apenas cinqüenta e três anos.”

“Sei, a mãe é jovem como a filha, e a filha é bonita como a mãe, mas só que não tem as mesmas ideias.”

“Que idéias, amor?”

“Sua mãe é caseira”, afirmou titubeante.

“Você com essa história de novo, sei que não está nada satisfeito com a minha profissão,  me quer ao seu lado todos os dias, precisamos conversar melhor quando eu voltar.”

“Desculpe, querida, não foi isso o que quis dizer.”

“Foi sim, você sempre se trai, na verdade não aceita a minha profissão, não quer que eu viaje toda semana, preferia que eu ficasse em casa, como fica a minha mãe.”

“Não, por favor, não é isso, não vamos discutir, vim ao aeroporto apenas para dar um beijo em você.”

“Sei, agradeço o seu beijo, mas quando eu voltar precisamos conversar melhor sobre o seu pedido de casamento, tenho sérias dúvidas...”

“Não, querida, por favor, você sabe que eu te amo.”

Ela se levantou, segurou a bagagem de mão que estava sobre a outra cadeira.

“Tenho que ir, depois conversamos.”

“Querida, espere, vou com você até a entrada do embarque.”

“Não precisa, acabe o seu café, você ainda tem que pedir a conta, até logo.”

“Querida, telefono à noite.”

“Não, não telefone, vou trabalhar até muito tarde.”

“Querida, quero lhe dar mais um beijo...”

Luísa já ia longe. Apenas após passar pela funcionária da entrada da sala de embarque foi que se virou para dar um aceno, mas ele se embaralhou com o dinheiro que tirara da carteira para pagar à garçonete. Luísa deu as costas, a porta automática se fechou e ela desapareceu.

sexta-feira, abril 29, 2011

Lúcia e o céu de diamantes

Esses jovens executivos sabem tudo, ou pelo menos sabem fingir. É possível surpreendê-los, mas precisa-se de tirocínio. A palavra é tão antiga, que o processador aponta erro na grafia. Mas existe, e é assim a escrita. Eles, jovens de terno impecável, conhecem todos os indicadores financeiros, as estatísticas, os índices das bolsas de valores, o que está por vir e o que não está. Em nada lembram a antiga cartomante. Que também adivinhava mas tinha romantismo. Eles nos levam a bares de balcões prateados, mesas siderais, copos em forma de torpedo. Nos oferecem bebidas e cogumelos. Não os produzidos pela natureza, mas os das explosões. Fortes esses jovens, destruidoras suas bebidas. Um paradoxo, mas são elas que os mantêm vivos. Quanto ao amor? Talvez não seja essa a palavra, mas existe alguma coisa parecida. Não lhes bastam o corte do terno italiano nem os carros japoneses. Chegam, miram-nos, e lançam o dardo. Geralmente certeiros. Sabem sorrir, embora assépticos os sorrisos. Nenhum vírus. Mergulha-se em seu mundo, que não tem céu nem diamantes que saudade da Lucy, ela está morta. Ficamos apenas os dois, eu e meu jovem, mente brilhante do mercado de dados, homem arrasador, frações de segundo e milhões acariciam-lhes as mãos. Em que moeda? Basta escolher. Há de tudo, farta a cesta. Leva-me em seu carro. De fora, mesmo em movimento, parece que não vai com viva alma. Ele o dirige com arrojo, em pleno centro de São Paulo, mas tem o coração de um principiante. Sim, ao menos no amor, são garotos inexperientes. Trepam com as cifras do mercado, com o risco que sempre dobram, já com uma mulher... Bem, com uma mulher precisam de mais um reforço. Saltamos na garagem de um prédio de trinta andares, nos Jardins. Já bebemos todos os metais, metais azuis, verdes e vermelhos. Falta-nos o que caracteriza o humano: pele e músculos. Nossas roupas de fibra nos escondem. Subimos. O álcool já nos deixou lá em cima, mas ainda faltam os andares. O último é o dele, a cobertura, plataforma de lançamento, visão perfeita sobre a cidade-mundo que matou todos os cães. Sobre os outros prédios, agudas antenas inúteis levam bilhões em mercado futuríssimo, mas nenhuma esperança de mulher, nenhum verso de Camões. Cervantes e Shakespeare morreram, mas esses jovens nada sabem sobre isso. Acumula-se uma montanha de ouro, não há quem, no entanto, possa dizer o que fazer com ela, apenas sugere-se que se compre outra, e ainda outra, e mais outra. Mas voltemos à adrenalina, a todos os nossos ácidos. Ainda falta o último. Sempre estamos em busca do derradeiro. No nosso caso, o gozo sobre a mureta, com a cidade lá embaixo. Meu jovem executivo despe-me. Não o sabe fazer sem rasgar-me. Enfim, aponta-me uma pistola. Bela a arma, reluz quando a cidade espoca seus holofotes, astros trêmulos ante meu recente e audaz cavaleiro. Obriga-me a deitar sobre a mureta do trigésimo andar. Depois trepa e cavalga sobre o meu corpo. Onde vamos os dois? Deixo que me leve e que goze à beira do despenhadeiro. Gozo agora ou deixo para o momento em que estivermos bem próximos do chão, nossos corpos ainda a flutuar... no ácido e no ar? Oh, a morte, ou a proximidade dela, uma espécie de orgasmo. Tanto maior quanto mais alto o precipício.

segunda-feira, março 28, 2011

“Está bem, então vá”

Era o verão de 1972, uma época boa, tínhamos esperança quanto ao futuro e queríamos a liberdade absoluta. Uma vez que recusávamos as grandes cidades, morávamos em acampamentos à beira de praias distantes. Outras vezes íamos para locais de difícil acesso, no interior. As pessoas nos chamavam de hippies, e nós, até certo ponto, acabamos gostando do nome. Embora no mundo inteiro o movimento entrara em declínio, não queríamos pensar nisso. Andávamos de um lado para outro quase sempre em festa. Alegres, preocupávamo-nos apenas com o dia em que estávamos vivendo. Caso tivéssemos o que comer, beber e fumar naquele momento, estava bom.

Fui parar não sei como numa praia do norte da Califórnia. Se perguntar hoje onde fica essa praia, não sei dizer. Sei que havia um camping, e entre os acampados viviam alguns rapazes e moças. Os rapazes eram mais numerosos. Notava-se que eram de boas famílias, mas decidiram largar o conforto do lar e adotar aquela vida. Montavam e desmontavam barracas, subiam e desciam a serra, viajavam de carona. Com que dinheiro viviam? Não sei. Acho que alguns arranjavam com os próprios pais; outros se orgulhavam em dizer que eram artistas: pintores, escultores, artesãos etc. E vendiam o que produziam. Juntei-me a eles.

Um dos rapazes tornou-se meu amigo; depois, meu namorado. Aonde quer que eu fosse, ele me acompanhava. Naquela época eu tinha vinte e seis anos, nunca trabalhara, deixara para trás a cidade do interior em que nasci e viera me aventurar em Los Angeles. Tinha apenas uma pequena mala com poucas roupas.

No acampamento também apareciam pessoas em férias. Diziam gostar da vida em meio à natureza. Não era difícil fazer amizade com elas e até mesmo ganhar alguma coisa, como um prato de comida ou mesmo mantimentos para cozinhar nas nossas barracas. Os turistas gostavam de nos ajudar, acho que queriam ser como nós, mas não tinham coragem. Então, facilitavam-nos a vida.

O rapaz, meu amigo, era calado, não agia como os outros, que participavam de divertimentos, como jogos de vôlei e de futebol. Ele gostava de ficar na praia, principalmente ao entardecer, olhava o horizonte, pensativo. Eu o acompanhava nessas horas, nada falava, deixava-o entregue à sua meditação. Às vezes andávamos durante algum tempo pelas areias da praia. Lembro que na época eu não tinha biquíni. Tivera um, mas me roubaram no acampamento. Assim, não entrava no mar quando ele insistia. Dizia para eu tirar a roupa e mergulhar nua. Mas eu não tinha coragem.

Ele era muito jovem, acho que seis ou sete anos menos que eu, e tinha casa, pai e mãe. Mas não queria voltar para lá. Também não pensava muito como ia fazer dali para frente.

Certa vez, disse a ele:

“Você deve pensar bem sobre o seu futuro. É muito bonita essa vida, mas não é possível sobreviver assim por muito tempo. É preciso ter dinheiro, ou se morre de fome.”

Ele me ouviu, mas nada comentou. Começou então a rolar um amor entre nós. Mas sem combinação alguma. Não tínhamos compromisso um com o outro nem sentimento de posse. Acabei dormindo com ele. Nas primeiras noites, nada aconteceu. Mas, depois, começamos a fazer amor. Era muito comum na época a expressão, “fazer amor”. Dali em diante, passamos a ficar juntos, dias e noites. Divertíamo-nos muito. Seus amigos nos observavam e lhe diziam que se afastasse de mim, que eu não era boa companhia. Mas era tudo brincadeira. Na época, fumava-se muita maconha, cheguei até a experimentar ácido. Eu não era exceção. Ele, no entanto, não tinha a tendência de fumar muitos baseados. Dizia que preferia o ar puro das manhãs, e sempre carregava livros, principalmente de poesia, também escrevia.

Um belo dia – fazia uns três ou quatro meses que vivíamos juntos – quando estávamos prestes a partir mais uma vez sem destino, senti que tudo aquilo começava cheirar a um romantismo barato demais. Não sei se surtei, mas resolvi dar um basta.

“Você acha que dá mesmo para viver assim, sair viajando por aí de carona, sem dinheiro no bolso, sem destino?”, havia filmes na época que incentivavam nosso imaginário.

“Sempre dá”, eram poucas as suas palavras.

“Não vou com você, me entende? Não vou, já tenho dez anos de estrada, sei como é essa vida, não estou mais para isso.”

“O que você vai fazer?”, seus olhos sempre me transmitiam alguma melancolia.

“Vou com a Shirley. A mãe dela me ofereceu para morar com eles. Ajudo no serviço da casa, depois tento arranjar um emprego, quem sabe estudo...”

“Você vai ser empregada doméstica?”

“Não é isso, vou morar com ela, ajudar em alguma coisa.”

“E onde ela mora?”

“Ainda não sei, acho que num subúrbio, me dê um número que depois eu informo a você”, sugeri.

“Está bem, então vá”, não opôs resistência e ficou olhando na direção do mar.

Para dramatizar a situação e tentar comovê-lo, ainda falei:

“Tem mais uma coisa.”

“O que é?”

“Vou morrer cedo.”

“Morrer, como você sabe?”

“Fiz um exame do coração faz algum tempo, o médico é amigo meu, falou que não tenho muito tempo de vida.”

“Poxa, verdade?”, foram suas últimas palavras.

“Verdade”, levantei-me e saí dali chorando, sem olhar para trás. Ele não percebeu.

Hoje, penso onde andará toda aquela geração... Alguns se engajaram no mercado de trabalho, prosperaram, enquanto outros morreram, ou enlouqueceram devido ao consumo excessivo de drogas.

Sempre quando vou a uma livraria, olho os livros de poesia e procuro o seu nome sobre a capa de um deles. Mas nunca encontrei.

Quem sabe agora com o Facebook ou com o Google eu consiga localizá-lo? Ele vai se surpreender. Pode ser que tenha entrado para uma universidade, se formado, se tornado alguém importante. Pode ser realmente um poeta. Eu é que não tive até hoje competência para encontrar um livro seu.

“Você não falou que iria morrer logo?”

Terei que inventar uma desculpa.

terça-feira, janeiro 18, 2011

Espere aí que vou à revistaria

Alessandra caminhava no Casa Shopping com Álvaro, era quarta-feira à tarde. O rapaz sugerira uma loja de produtos para casa.

“Essa loja é de muito requinte, veja, cada coisa linda”, disse ele enquanto a moça acompanhava-o na investigação.

“Realmente, cada coisa maravilhosa, mas tudo isso é pra quem já tem a vida definida, uma carreira, um apartamento no Plano Piloto; veja o preço de uma garrafa térmica, cento e vinte reais...”

“Repare as máquinas de café expresso.”

“Estou vendo”, reparou Alessandra, “a mais barata custa oitocentos e trinta.”

“Mas vale a pena, já pensou uma cozinha com isso?”, Álvaro apontou para copos longos, algumas taças, todos de cristal.

“No final da loja há taças de fibra, imitação de cristal, de longe nem parece, mas é caro do mesmo jeito.”

“Já vi que vai ser difícil encontrar um presente aqui pra minha mãe”, ele resmungou.

“Sua mãe não é uma pessoa tão sofisticada para exigir um presente desses.”

“Verdade, é uma pessoa simples mas muito especial pra mim, queria comprar alguma coisa daqui, sei que ela vai ficar muito feliz.”

“Ali, algumas bandejas com atrizes dos anos cinquenta, sessenta, coisas a la Andy Warrol, Marylin Monroe, será que ela não gosta?”

“Ótima ideia, vamos ver.”

Depois do presente comprado andaram um pouco pelos corredores do shopping, todas aquelas lojas com sofás, estantes, mesas, quartos e salas, cozinhas. Enfim, encontraram um café, no centro de uma das alas, defronte à Marieta.

“Quer comer alguma coisa?”, convidou Álvaro.

“Não, apenas café, já comi demais no almoço.”

Dali era possível ver a livraria.

“Ah, vamos depois à Cultura, quero ver a revistaria”, disse Alessandra.

“Vamos, sim.”

“Na verdade, tenho de ter cuidado, já comprei quatro livros antes do Natal.”

“Para o concurso?”, quis saber Álvaro.

“Não, por puro prazer. Dois de escritores brasileiros, um português e outro americano.”

“Pra que tanto livro?”

“Você sabe que meu maior prazer é ler.”

“Mas você está em época de estudar, Ale, assim não vai conseguir.”

“Consigo, é apenas para as horas vagas.”

“Mas quatro livros para horas vagas, e em período de estudos...”

“Não vou ler todos de uma vez, nem vou parar tudo para lê-los, sei a programação que tenho de cumprir.”

“Tomara que você consiga.”

“Consigo, sim, não precisa se preocupar, vou passar no concurso do Executivo.”

“Assim seja. Quando eu terminar a faculdade, vou parar tudo, vou estudar dia e noite para o concurso da Câmara.”

“Isso, se prepare, você também vai conseguir.”

“Que tal o Judiciário, ao invés do executivo?”, Álvaro olhou para ela e depois parou diante do primeiro estande de livros, assim que entraram na Cultura.

“É outra opção, mas prefiro o Executivo.”

O rapaz esperou que duas senhoras passassem, depois tomou nas mãos um livro que tinha a história do rock, ou dos Rollings Stones.

“Você e sempre o rock. Aqui em Brasília, a terra do rock. Não sei, mas pode ser um atraso”, Alessandra e suas insinuações.

“Depois que estivermos lá, compramos o que precisamos”, ele não alimentou a polêmica.

“Compramos o quê?”

“Garrafas térmicas, bandejas com retratos de Monroe, máquinas de café expresso, quadros para a sala e estofados, mesas maciças...” ainda Jagger nas mãos.

“Ah, é mesmo, a loja de produtos para o lar.”

“Compraremos quase todo o Casa Shopping...”

“Bom, quase todo, mas enquanto isso espere aí que vou à revistaria.”

terça-feira, outubro 12, 2010


Casamento
Marta desceu a escada da varanda de casa. Estava quase junto às areias da praia. Era costume seu todo dia ainda permanecer um quarto de hora na cama. Depois vestia o biquíni e descia para a beira do mar. Caso o sol já estivesse quente, ou já o sentisse na pele mesmo de modo brando, sentava-se diante do mar e admirava o horizonte. Pensava qual seria a distância em que céu e mar aparentemente se tocavam. No verão, aproveitava para mergulhar logo cedo, sentir a temperatura da água a estimular-lhe a pulsação.


O dia era especial para ela, sorriu ao lembrar-se. Aliás, toda mulher estaria feliz por viver a perspectiva de um dia como o de Marta. Como sempre, deu os passos costumeiros e foi quase até à beira d'água. Sentou e se espreguiçou. Recostou diretamente na areia sem se preocupar com os pequenos grãos que lhe grudavam na pele. Olhou para o céu. Depois de alguns segundos fechou os olhos para ouvir melhor o estouro da arrebentação. Aquela praia era um refúgio onde quase ninguém aparecia. O barulho de um vento brando e o marulhar lhe faziam constante companhia. Um ruído diferente, no entanto, atraiu sua atenção. Era um som que vinha de uma certa altura. Abriu os olhos e viu no céu uma enorme pipa. Reparou que o ruído era provocado pela resistência das as asas do objeto contra o ar. Seguiu o grosso fio que sustentava a pipa, acompanhou seu peso através de uma espécie de barriga que o cordão fazia no ar. Pela altitude, quem a conduzia não devia estar longe. Marta não quis voltar-se, gostava de estar sozinha aquela hora, preferia não dar pelo inoportuno, que pouco a pouco se aproximava.
Não demorou e surgiu-lhe o homem às costas. O condutor do enorme objeto voador era um senhor, isso mesmo, alguém de meia idade. Passou ao lado dela, a uns dez metros, não deixou de lhe desejar um sonoro "bom dia", e continuou seus passos lentos até molhar os pés e tornozelos dentro do mar.


Marta teve vontade de dar as costas e voltar para casa. Ainda não tinha feito o café, e ansiava por uma xícara. O homem, porém, tinha os cabelos grisalhos, e eram fartos. Não deixou de observá-los. Surpreendeu-se com a quantidade de cabelos para alguém que já devia ter passado dos quarenta, ou mesmo dos cinquenta. Quando ainda não resolvera levantar-se, ouviu o homem:


"Bonito, não?" Após as duas palavras, olhou na direção da pipa, fazendo de conta que apresentava o objeto à mulher. Continuou: "Custou-me dois dias de trabalho", virou-se mais uma vez para ela e sorriu.


Marta não quis ser indelicada. O homem parecia simpático. Não era um intruso qualquer, seu único interesse parecia ser suas asas voadoras.


"Belo lugar, não o conhecia, você vem sempre aqui?", sua voz límpida não levou em conta que ambos eram desconhecidos.


"Mais ou menos", foi a resposta de Marta.


Ele sorriu mais uma vez, sempre com a atenção voltada para a pipa. "Sou de Blumenau, estou viajando a trabalho, mas você não imagina como sou apaixonado por praias e pipas."


Foi a vez de Marta sorrir. Parecia sincero: apaixonado por praias e pipas. Ela achou sonora a expressão. Pelo menos não viera importuná-la como faziam os rapazes que apareciam na praia um pouco mais tarde. Aquele papagaio segurado pelo grosso cordão, aproveitando o vento que não cessava, era a verdadeira intenção do homem de meia idade.


"Carlos Alberto, desculpe-me, acordei indelicado hoje, nem me apresentei. Deve ser por causa desse mar maravilhoso e dessa pipa monstruosa", acabou de falar e Marta pode reparar seus dentes muito brancos. Parecia realmente um homem muito bem cuidado, alguém que se preocupava com os detalhes. Sim, para ela, os detalhes sempre foram o mais importante.


"Marta", pronunciou seu nome, sua voz não soou alta, mas no tom suficiente para que pudesse ouvir.


"Você é dessa região?"


"Sim e não."


"Suas respostas são interessantes: 'mais ou menos, sim e não'."


"É que não nasci aqui, mas vivo aqui desde criança."


"Agora, sim, agora você foi clara como o céu, como a luz desse imenso sol."


Marta gostou daquelas palavras. Pareciam as palavras de alguém muito feliz. Ela olhou mais uma vez para a pipa, para o longo cordão e para o homem, prestou atenção ao seu esforço de empiná-la cada vez de modo mais elegante.


"Você me dá licença, mas tenho de ir", disse a mulher. "Adeus."


Ele deixou a pipa no ar, cuidada apenas pelo vento. Segurava o cordão, mas já não olhava na sua direção.


"Ei, espere, a manhã está tão bonita, fique mais um pouco."


Marta percebeu que o rosto dele se franziu, que aguardava ansioso por uma resposta. Desejava sua permanência, mesmo que precária.


Ela voltou-se, chegou a dar uns passos, estacou e disse:


"Sabe, é que hoje é um dia especial para mim."


"Especial? Que bom saber disso! Então me conte, quero saber por quê."


Ela deu um longo suspiro, piscou os olhos, viu que uma onda maior se desfazia em espuma e vinha desordenada em direção à areia.


"Está vendo aquela casa logo ali?", apontou a ele, "é onde moro; acordei e saí imediatamente, nem tomei café. Estou seca por um café. Espere então um pouco que eu volto. Volto e prometo que lhe conto porque hoje é um dia especial para mim."


Caminhou de volta até a escadinha que levava à varanda. No meio do caminho teve a intenção de olhar trás. Queria saber se o homem a apreciava. Sua seminudez provocava. Mas seguiu. Não se deixou tomar pela curiosidade.


Quando voltou, ele estava voltado para o mar. A pipa, segura no ar; o cordão a sustentava e estava amarrado a uma pedra. O homem parecia um Buda a meditar, os olhos cerrados, alheio ao mundo à sua volta.


"Café?", sua mão direita estendia a ele uma caneca.


Alberto abriu os olhos sem se mexer. Apreciou Marta de rabo de olho. Depois, ainda vagaroso, desfez-se da posição e segurou o café.


"Obrigado!"


"Me desculpe se despertei você do seu transe..."


"Oh, nada disso, sua presença é mais importante."


"Desinteressou-se da pipa?"


"Não, claro que não. Ela é capaz de voar sozinha. Ela e o vento", levantou o rosto e a admirou. "Seu café está delicioso."


"Sou péssima cozinheira."


"Não diga? Você está sendo modesta. Gosto de café forte. Conseguiu me satisfazer. E, olhe, sou exigente."


"Os homens são exigentes, você tem razão. Muitos aceitam qualquer coisa no começo, mas depois se tornam exigentes."


"Não acredito. A única coisa que eu exijo é saber por que hoje é um dia especial para você. É seu aniversário?"


"Ah, sim, já ia me esquecendo. Prometi dizer o motivo. Não, não é meu aniversário. Hoje, vou me casar."


"Sério?", deu uma imensa gargalhada. "Não pense que estou debochando, não. Quero lhe dar meus parabéns! Que bom! Você se casa hoje? Que ótima notícia."


"Você acha mesmo ótima?"


"Claro que sim. Por que pensaria de modo diferente?"


"Geralmente as pessoas viram a cara quando uma mulher fala em casamento.
Muitos até mesmo desaconselham que se case."


"Não os ouçam. Case-se. Você será muito feliz?"


"Jura?"


"Claro que juro."


"Mas como você sabe que vou ser feliz?", Marta parecia ter dúvidas quanto ao futuro.


"Pela sua fisionomia, tenho certeza de que você vai ser feliz. Você possui uma face luminosa."


"Obrigada. Nunca conheci alguém que tivesse me dito isso."


"Fala sério? As pessoas por aqui não conseguem adivinhar quando alguém vai ser feliz?"


"Ah, acho que não. Muitas nem querem a felicidade dos outros."


"Fale-me sobre seu futuro marido. Como ele é?"


"É uma pessoa boa, interessante; é muito atencioso."


"Então, não há o que temer."


"Acho que não. Mas às vezes penso que o problema sou eu, sabe? Sou um tanto temerária."


"Não se preocupe. Ele saberá mantê-la. Os homens adoram temeridades."


Ele riu. Ela também. Permaneceram em silêncio por um longo tempo. Depois, ele tomou nas mãos a pedra que segurava o cordão da pipa. Pegou o cordão e fez alguns movimentos. O enorme papagaio mexeu-se no ar, pareceu que ia mergulhar, mas logo voltou à posição anterior.


"Já segurou uma pipa, alguma vez?"


"Quando era criança, acho."


"Segure, agora. Volte no tempo. Às vezes em alguns aspectos somos sempre crianças."


Marta segurou o cordão, tentou alguns movimentos. Ele a ajudou. Moveram juntos a pipa. Ela pode sentir o arfar do peito dele às suas costas. O homem era peludo. Ela sentiu uma grande vontade de abraçá-lo. Depois deixou novamente o cordão nas mãos dele, virou de frente, olhou diretamente seu rosto e sorriu.


"Dizem que os homens na noite anterior ao casamento fazem uma despedida de solteiro. É verdade?", ela.


"Os homens e também as mulheres, por que não?"


"Não me despedi. Tenho apenas duas amigas e elas estão viajando."


"Creio não haver problema. Você também pode se despedir da sua vida de solteira sozinha, pode namorar este mar, este céu, o sol."


"É, acho que posso."


"Onde vocês vão passar a lua de mel?"


"Vamos viajar para a Bahia."


"Que beleza, a Bahia. O melhor lugar do mundo. Sabia que houve um filósofo francês que sempre vinha à Bahia nas férias? Dizem que não saía de lá. Pena que ele morreu. Mas há outros estrangeiros que adoram a Bahia. Um longo e belo litoral. Muitas praias desertas, a água quente, sempre quente!"


"Vamos mergulhar?", perguntou Marta. "Não quero me despedir daqui porque vou voltar. Vamos continuar morando aqui por uns tempos."


"Ótimo. Entremos no mar", prendeu o cordão da pipa novamente na pedra, caminharam até à beira d'água e mergulharam. Nadaram mar adentro.
"Olhe", apontou ele à pipa, “está se movendo sozinha, de um lado a outro. Mas creio que continuará pairando acima de nós."


"Lembra que eu disse que sou temerária? Assim como sua pipa. Mas acho que vou conseguir ficar por cima. É sobre o casamento, sabe."


Nadaram mais um pouco. Ele ainda voltou-se para a pipa, observou que se mantinha aprumada. Sentiu então a mão de Marta a tocar-lhe o ombro, depois o peito. Voltou-se para ela. Ela sorria. Um sorriso luminoso.


Ambos se aprofundaram no mar bravio. Não pensaram que se distanciavam da costa. Preferiam aquelas águas agitadas. Talvez fosse mais fácil domá-las do que domar as intempéries provocadas pelo amor.


Naquela manhã se amaram. Ainda que apenas aquela vez.

sábado, outubro 09, 2010

Esqueça isso, sobre eleições

Desci para ir à banca de jornal. Era segunda de manhã. No meio do caminho, encontrei o Jofre.

“Oi”, falou quase me segurando por um dos braços, “já sabe o resultado das eleições?”

Fiz que não com a cabeça.

“Tanto sacrifício à toa, esses palhaços vão estar por cima por mais quatro anos.”

Eu não tinha visto a TV nem ouvido o rádio. Ia até a banca, mas também não era para saber sobre eleições. Até mesmo esqueci que tinha havido eleições.

“Lembra-se daquilo que lhe falei na última vez em que estivemos juntos?”

Não esperou que eu respondesse.

“Aconteceu exatamente o que eu temia.”

Fiz menção de continuar o meu caminho.

“Mas ouça, isso não pode ficar assim, são os mesmos que sofrem os que votam nesses caras. Acham que as coisas acontecem porque têm de acontecer.”

Fiz um movimento vago, que podia ser interpretado como concordância.

“Vai comprar o jornal?”, perguntou, “posso ir com você?”

“Fiquei vendo filmes até muito tarde, me esqueci de tudo.”

“Que filmes você assistiu?”

“Alguns que estavam na casa de meu pai. Fui até lá, ontem. Encontrei-os e resolvi trazê-los.”

“Vou até a banca com você.”

“Tudo bem. Sabe quem me procurou, na sexta?”

“Não.”

“O Reinaldo.”

“O Reinaldo?”, surpreendeu-se. “Não o vejo faz tempo. Acho que não tem aparecido por aqui. E o que ele queria?”

“Disse que ia fazer uma viagem, ficar fora por uns meses, não sei. Não acreditei muito na história dele.”

“O Reinaldo é uma pessoa estranha. Ninguém consegue entendê-lo. Certa vez, pensei que fosse viciado em algum tipo de droga. Mas nem pra isso ele serve. Bebe um pouco, fala umas besteiras e desaparece por uns tempos.”

“Acho você muito exigente com ele. Todos têm seus problemas.”

Tínhamos chegado à banca de jornal.

“Olhe só a cara do palhaço. Já colocaram a foto na primeira página. Esses jornais subservientes apoiam todos que lhes dão algum trocado.”

Olhei uma revista. Não era sobre política. Futilidades. Mas era o que me interessava. Peguei um exemplar e paguei ao dono da banca. Jofre me olhou enviesado. Mas nada falou.

“Vou tomar um café, em casa não tenho mais açúcar”, eu disse.

Atravessamos a rua e entramos no bar. Acabou me acompanhando. Em um canto, dois homens ainda conversavam sobre as eleições. Notei que Jofre esforçou-se para ouvi-los, mas logo desistiu. Bebemos nossos cafés. Pagou o dele e o meu.

“Vamos até lá em casa”, falei.

Tomei-o pelo braço e seguimos de volta. Pareceu animar-se, esboçou um ligeiro sorriso.

Quando entramos, abracei-o.

“Esqueça isso, sobre eleições, eles não vão conseguir reger nossas vidas”, terminei a última palavra e o beijei na boca.

Falou, quase em surdina:

“Não sei, Joana. Mas talvez você tenha razão.”

Recostamo-nos no sofá, ainda abraçados um ao outro.