segunda-feira, janeiro 21, 2008


Guimarães Rosa: sentido, loucura e outras linguagens

Haron Jacob Gamal
Doutor em literatura brasileira pela UFRJ

Resumo
Esta pesquisa enfoca a loucura como hipótese de outra linguagem no conto “Pirlimpsiquice”, de Guimarães Rosa, estabelecendo novas perspectivas de sentido e discutindo a liberdade.

Palavras-chave:
Literatura brasileira, João Guimarães Rosa, sentido, loucura, liberdade.

Uma das características do texto literário é a língua trabalhada esteticamente. A partir daí, podemos conceber que não só o aspecto formal – como sonoridade, escolha vocabular, sintaxe original, figuras etc., – mas também a provocação do rompimento de um sentido primeiro e a criação de um sentido segundo possam também constituir uma das principais características da própria literatura. É possível que a margem de deslocamento de significação permitida por um texto desemboque no rompimento das próprias referências, estabelecendo um total estranhamento, abrindo a escritura para questões que poderão permear vários campos do conhecimento, sobretudo, o da literatura.

Guimarães Rosa é um autor cuja criação literária nos permite tal investigação. Seus textos são exemplos de travessias que, a princípio, deixam o leitor ao sabor de alogias e não lugares. É frequente nos depararmos com uma literatura que assombra devido à utilização de linguagem original e única, não havendo na literatura brasileira autor que se tenha aventurado a tentar seguir seus passos. Caso atribuíssemos à sua linguagem a simples transcrição do modo de falar do homem do sertão, estaríamos cometendo um sério equívoco. O autor, na verdade, estabelece um novo significante a partir de experiências estéticas bem sucedidas. Os personagens roseanos beiram abismos existenciais, não deixando de atravessá-los vez ou outra. Da mesma forma como foi bem sucedido na elaboração linguística, seus personagens crescem em relação à media dos homens, transitam num universo que precisam desbravar ou criar sentido. Grande parte dos textos do autor permite que se faça uma leitura especial desses seres, os quais aparecem como agentes do próprio destino, não atribuindo a outros o leme de suas existências. Muitas vezes, nesse reger temerário e incerto, enveredam por sendas em que a lógica do mundo estabelecido não faz parte da paisagem, criam para si novos sentidos e significações, que, numa primeira leitura, ainda se mostram distantes de nosso entendimento.

Em um conto do autor, procuraremos apresentar como acontecem essas translogias e estabelecimento de não lugares. A tentativa dessa possibilidade de leitura não significa que o texto se torne perfeitamente explicável dentro de uma lógica cartesiana. Em diversas ocasiões, paira a própria falta de sentido, que poderíamos nomear de loucura – ainda que o sentido pulse pleno no do universo do inconsciente. A loucura – ou a criação de um universo que não tenha começo ou fim e em que, algumas vezes, o tempo não se dê de forma cronológica, ou mesmo que exista a concomitância de todos esses tempos – não significa a presença e perseverança do puro e simples aleatório, mas a criação de uma linguagem ou sentido de resistência, apesar de – voltando a dizer – no universo do inconsciente. Então, este passa a ter linguagem própria, embora pontuadas de vacâncias e de abismos, muitas vezes de difícil compreensão e de sentido vazio.

“Pirlimpsiquice”[i] (ROSA, 2005, 83-91) é uma narrativa interessante para que se observe a coexistência de sentidos outros – pelo menos três –, ou mesmo para que se percebam translogias a outros universos, sobretudo porque tem como mola propulsora o teatro. Este, além de permitir outras linguagens, cria um mundo próprio, que pode ou não corroborar o sentido, ou também possibilitar, através de significantes que se deslocam de modo contínuo, diferentes grau de significação. A encenação servirá como elemento de estranhamento e de desrepressão, onde a realização do desejo dos agentes, apesar de regida indiretamente pelo inconsciente, se concretiza. 

O enredo pode ser resumido da seguinte forma: a um grupo de alunos de um colégio de padres é atribuída a tarefa de encenar uma peça de teatro na ocasião de uma data festiva. O pequeno grupo entusiasma-se com a proposta e se põe ensaiar com dedicação o texto escolhido pelos padres, superando divergências pessoais e procurando melhoras tanto no comportamento como nos estudos. No dia da apresentação, contudo, acontece um fato inesperado.

O conto inicia-se com um narrador em primeira pessoa que reage com surpresa à proposta da direção da escola a respeito da perspectiva de encenação da peça teatral. Ele começa a narrar de um tempo já distante do fato acontecido, lembra-se de alguns companheiros que participaram do evento e tenta revelar o destino que tiveram ou a profissão que exercem nos dias contemporâneos à enunciação. A linguagem característica dos personagens de G. Rosa, sobretudo a do narrador, já proporciona indícios do estranhamento que a história estabelecerá.

O narrador nos relata o clima religioso do colégio:

O padre Prefeito, solene modo, fez-nos a comunicação. Donde, com o Dr. Perdigão ali ao lado, rezou-se o padre-nosso e três ave-marias, às luzes do Espírito. Aí, o Dr. Perdigão, que empunhava o livro, discursou um resumo, para os corações da gente, à toda. Então, cada um teve de ler do texto alguma passagem, extraindo de si a melhor bonita voz, que pudesse; leu-se desabaladamente. Só o Zé Boné não se acanhou de o pior, e promoveu risos, de preenchido beócio, que era.

A comunicação aos alunos sobre a possibilidade de apresentação de uma peça teatral estabelece um momento de ruptura ao clima do dia-a-dia do colégio. Em seguida, quando sabemos o nome da peça, “Os filhos do doutor Famoso”, intuímos de que se trata de teatro leigo, portanto também em linha de ruptura com o sentido comum que predomina numa escola religiosa. O aparecimento do personagem Zé Boné constitui, num instante seguinte, o aprofundamento da instabilidade e da perda do sentido ideológico.

É comum ao texto literário constituir um campo de forças dialéticas. Aqui, além de haver uma escola religiosa em que se tenta fazer da arte algo sublime, algo que enobreça o espírito, encontra-se a divergência. A arte, no caso o teatro, além de ser ponto de encontro de objetivos pedagógicos, edificantes, poderá servir de instrumento para que se estabeleça um sentido diverso e distante do predominante.

O grupo de amigos a quem foi confiada a tarefa artística também se encontra dividido. Há dois líderes. De um lado, Ataualpa; de outro, Darcy. As forças contrárias se unem para que os estudantes possam levar avante a tentativa de cumprir a tarefa. A partir deste momento, começa a tentativa de união do pequeno grupo. O combinado é: “Ninguém conta nada aos outros, do drama”. Ao grupo coeso, resta uma preocupação: o apalermado Zé Boné. A manutenção da ordem ou sentido vigentes encontra-se ameaçada pela presença desse personagem, que destoa dos demais.

A seguir, há um longo parágrafo caracterizando Zé Boné. Sabemos que ele é dado a imitações:

[...] varava os recreios reproduzindo fitas de cinema: corria e pulava, à celerada cá e lá, fingia galopes, tiros, disparava, assaltava a mala-posta, intimidando e pondo mãos ao alto, e beijava afinal – figurando a um tempo de mocinho, moça, bandido e xerife. Dele bem se ria. O basbaque.

É interessante observar que personagem com tamanho talento não seja cogitado para representar papel expressivo. Ele é visto como alguém suspeito, que não dará conta da tarefa atribuída, apesar de papel pequeno. No entanto, não adiantemos, Zé Boné acabará gerador de uma grande surpresa. No mesmo parágrafo, sabemos um pouco mais sobre o narrador, que faz parte do grupo e a quem é atribuído um papel:

[...] decidindo o padre Prefeito e o Dr. Perdigão que, por retraído e mal-à-vontade, em qualquer cena eu não servisse. Não fosse o padre Diretor, de bom acaso vindo entrando, declarar que, aluno aplicado, e com voz variada, certa, de recitador, eu podia no vantajoso ser o “ponto”.

Conclamado a tal papel, ele é congratulado pelos amigos, e até ganha algum prestígio com isso, uma vez que “o ponto” tem função de ordenador e mediador numa peça, evitando tropeços por parte dos atores. Mais uma vez, se por um lado Zé Boné personifica a desordem, por outro temos um narrador com aspecto de bom moço, alguém capaz de proporcionar segurança ao grupo, prometendo sobrevivência em possíveis horas de tormenta. Os dois campos de força que permeiam todo o texto não deixam de estar presentes.

A partir do parágrafo seguinte, o jogo dialético se subdivide e somos apresentados a outro grupo de alunos, liderados por dois “malcomportados incorrigíveis”: Tãozão e Mão-na-lata. Descobre-se a divisão que há entre os alunos do colégio. O narrador demonstra também a preocupação de que se descubra “o drama”, que sejam obrigados a revelar para os outros a “estória”. A solução encontrada pelo grupo é inventar outro enredo para mascarar o verdadeiro e ensaiar este sem correr riscos.  Assim é feito. Mas a preocupação a respeito de Zé do Boné paira novamente. Ele pode contar a verdade ao outro grupo. Então há a solução provisória: “E, de Zé Boné, ficasse sempre perto um, tomando conta.” A princípio, Zé Boné não dá motivos para desconfiança “nem na estória do drama botava sentido [...]”. O personagem se põe a disparar pelo pátio com suas representações atabalhoadas. O que podemos deduzir de seu comportamento como elemento constituinte do texto até esse momento, é um possível contraponto entre teatro e cinema, através de suas encenações espontâneas.

Os personagens que se opõem ao grupo, Tãozão e Mão-na-lata, até aqui não demonstram interesse “no assunto do teatro nem tocavam”. Já a outra “estória”, a inventada, provoca grande alarde no colégio, “prosseguia, aumentava, nunca terminava com singulares-em-extraoridnários episódios”. Eis como a chamavam: “O fuzilado, o trem de duelo, a máscara: fuça de cachorro, e principalmente, o estouro da bomba”. Como se vê, o sentido paralelo vai tomando vulto. O gosto pela história da peça a ser apresentada vai, pouco a pouco, passando para a falsa até mesmo entre os que têm a incumbência de ensaiá-la. Estes também se enamoram pelo enredo criado como disfarce. Desse jogo duplo, de sentido oficial e oficioso, do teatro edificante e do subversivo, a trama do conto se desenvolve.

Já falamos desse narrador que no contexto do conto tem o papel de estabelecer a ordem. Ele é quem nos narra a história e dentro dela também lhe cabe o papel de estabelecer o sentido (uma espécie de ordem) – ele será “o ponto”, na peça; aplica-se em reter “tintim de cor por tintim e salteado” –, no entanto, também ele, assim como seus companheiros, demonstra entusiasmo pela trama paralela.  A seguir, ainda vamos perceber um fato curioso: esse narrador mostra-se descontente porque “o ponto” ficará “debaixo daquela caixa ou cumbuca”, mencionando seu lugar, invisível ao público. A ordem, portanto, se encontra oculta. É importante observar que isso já indicia que algo contrário às expectativas pode estar por acontecer. Nesse jogo, em que o teatro pode servir de meio para o estabelecimento de outro sentido, a premência do narrador em se fixar a determinados nomes ou objetos permite que se desconfie de rumo diverso que a narrativa poderá seguir.

“– ‘Representar é aprender a viver além dos levianos sentimentos, na verdadeira dignidade’ – exortava o Dr. Perdigão, sobre suas sérias barbas.” Nesse momento da narrativa, podemos constatar a presença do elemento religioso que tenta dar sentido transcendente às ações dos homens. O padre tenta dar novo significado ao ato de representar, colocando-o em posição diametralmente oposta a que os alunos entendem por teatro. Aqui, o aspecto ordenador procura estabelecer-se, inclusive como o próprio desenrolar do parágrafo demonstra, com a melhora no comportamento dos alunos que fazem parte do grupo que vai atuar na encenação. Acabam “com essa tolice dos apelidos”; os rapazes até passam a ser chamados pelo nome das personagens que irão representar. Aos que tem nomes de subalternos ou de criminosos na trama da peça, logo se arranja solução: criado passa a ser “fabulo”, filho criminoso torna-se “o redimido”. Os rapazes se esforçam para viver dentro da ordem – ou do sentido – estabelecido pelos padres. “Íamos proceder muito bem até o dia da festa, não fumar escondido, não conversar nas filas, esquivar o mínimo pito, dar atenção nas aulas”. É relacionada uma série de deveres que normalmente eles deixavam à margem. Passam a cumpri-los, temendo, caso burlem as regras, que a apresentação não se concretize. Ensaiam com afinco. A exceção é Zé Boné: “Esse, entrava marchando, fazia continências, mas não havendo maneira de emendar palavra e meia palavra.” Vemos que, dentro da nova ordem, temos um personagem “desordenador”, que mina e ameaça, mesmo de forma ingênua, toda a estabilidade do empreendimento.

No parágrafo seguinte, dentro dessa correlação de forças que se mostra em tensão contínua, há uma nova informação. Mais uma vez temos os outros alunos do colégio, liderados pelo Gamboa, se contrapondo à trupe. Circula a informação de que

Diziam já saber a verdadeira estória do drama, e que não passávamos de impostores. De fato, circulava outra versão, completa, e por sinal bem aprontada, mas de todo mentirosa. Quem a espalhara? O Gamboa, engraçado e de muita inventiva e lábia, que afirmava de pés juntos, estar dono da verdade. O cume de cachorro!

Resumamos: há a versão oficial – a história escolhida pelos padres –, há a do próprio grupo que ensaia, que é a criada para despistar os outros alunos; e, agora, existe uma terceira, que parece ser do grupo dos alunos incorrigíveis. Estes, através de drama próprio, procuram debochar do grupo “oficial”. O sentido primeiro se dilui num segundo, e depois num terceiro.

Adiante, aparecem três acontecimentos importantes: a indignação dos garotos, agora exemplares, diante do grupo dos incorrigíveis; um padre a afirmar “o nosso teatro roubava ao ensino”; e, como outros alunos já comentam as cenas oficiais pelo colégio, descobre-se um traidor, o filho da cozinheira:

[...] o Alfeu. O gebo, pernas tresentortadas e moles, quase de não andar direito, mas o capaz de deslizar ligeiro por corredores e escadas, feito uma cobra; e que vinha escutar os ensaios, detrás das portas.

Novamente, há a presença de um elemento desequilibrador, que se contrapõe à ordem: ele é aleijado, não estuda no local, e ainda furta para os alunos guloseimas da cozinha dos padres. No final do parágrafo, o narrador se apressa em fazer correr o tempo, dando mostras da ansiedade do grupo pela chegada do dia do espetáculo.

Um parágrafo nos apresenta o ensaio geral, onde todos representam a contento. Apenas como a demonstrar alguma sinuosidade, encontramos o próprio narrador – ele se queixa de que todos estão “na ponta da língua seus papéis – para meu desgosto” – e o padre Diretor que, ao assistir ao quinto ato, “disse: que nós estávamos certos, mas acertados demais, sem ataque de vida válida, sem a própria naturalidade pronta, [...] o trom de Júpiter”, em que já se prenunciam os contratempos do dia do espetáculo.

O dia seguinte, domingo, é diferente da rotina do colégio, “os rebuliços, as horas curtas”. Há a descrição de toda a movimentação; descrição esta que muda o sentido e a vida do local: há pão de mel e biscoitos no café, arrumação do teatro, “caixa-do-ponto verde, repintada fresca, as muitas moças e senhoras aparecidas, chegadas de roupas nossas teatrais, novinhas nos embrulhos". À entrada do Surubim, o padre Regente, avizinha-se o desastre, que vai ser desenvolvido no parágrafo seguinte.

De modo sucinto, ele descreve a chegada do padre e a comunicação de que o Ataualpa terá de partir, seu tio o espera na portaria com a incumbência de acompanhá-lo, pois o pai do rapaz, deputado, “estava à morte no Rio de Janeiro.” Mas Ataualpa era o que exerceria o papel principal, o Doutor Famoso. “E o teatro, o espetáculo?” Apenas quem podia substituí-lo era quem faria o “ponto”, pois este sabia a fala de todas as personagens. “[...] ótimo [...]. Se disse, se fez.”

A partir desse momento, há a mudança do sentido, ou reversão das expectativas. Com uma narrativa concentrada na força de vocábulos que ora aparecem como pequenos períodos ora fora da sintaxe usual, o clima de expectativa, pouco a pouco, acentua-se. Há uma sequência de parágrafos – o primeiro inicia-se com a expressão “o contentamento” e termina pela palavra “silêncio” – onde há mostras do clima que antecede o início de espetáculo: o tempo passando, as pessoas ocupando seus lugares, os últimos preparativos dos atores, o momento em que entram em cena e reparam os conhecidos na platéia. Então, já é o momento em que se inicia a festividade, tendo o narrador a ocupar o papel principal. O programado não se dá, pois ele sabe as falas da peça, mas não os versos em homenagem à santa, que deveriam anteceder o início do espetáculo. Este trecho termina com o narrador em situação adversa. A mesma passagem focaliza a solução encontrada em meio à balbúrdia e agitação que se estabelece; o ator, como solução, diz: “–Viva a Virgem e viva a Pátria!” Solução provisória, porque ressoam os aplausos. A partir daí, dar-se-ia início à encenação programada.

O sentido original, no entanto, se perde e outro se estabelece. Em primeiro lugar, alguns aspectos técnicos não funcionam, como a descida do pano para que fiquem apenas em cena os personagens necessários à primeira cena:

Mas o pano não desceu, estava decerto enguiçado; não desceu, nunca. Os que tinham de sair de cena, não saíam. Tornamos a avançar, todos, sem pau nem pedra, em fila, feito soldados, apalermados.

É interessante o uso do vocábulo “soldados”, porque ele nos remete a uma imagem de sentido e obediência, o que na verdade não vai acontecer, “E aí veio a vaia. Estrondou...” A vaia é o primeiro sinal para que haja uma reação, “A vaia, que ninguém imaginava”. Esse período é interessante porque, pouco a pouco, mostrará a expansão de um entusiasmo que poderíamos chamar de negativo, no sentido de que corrói a tessitura oficial do texto dos padres. O ponto culmina com a gritaria da platéia por Zé Boné. “Zé Boné pulou para diante, Zé boné pulou de lado. Mas não era de faroeste, nem em estouvamento de estrepolias. Zé Boné começou a representar.” “A vaia parou total.” Então começa a representação propriamente dita, mas não a oficial. A princípio percebe-se que Zé Boné representa a história do Gamboa. Mas a trupe reage e contrapõe com a própria história, “Começávamos, todos, de uma vez, a representar a nossa inventada estória.”

Daí até o penúltimo parágrafo, assiste-se à representação sem precedentes, que ocorre feito um surto. Os papéis se encaixam dentro da mais alta precisão; os rapazes se saem bem sem mesmo saber o que dizer. Tudo se dá dentro da mais completa realização do desejo. Como se trata de um colégio religioso, onde a força da disciplina e da repressão imposta pelos padres parecia pairar, vemos em contrapartida a liberação desenfreada da imaginação e a realização daquilo que só poderia acontecer em sonho. Eis as palavras do próprio narrador:

A princípio, um disparate – as desatinadas pataratas, nem que jogo de advinhas. Dr. Perdigão se soprava alto, em bafo, suas réplicas e deixas, destemperadas. Delas, só a pouca parte se aproveitava. O mais eram ligeirias – e solertes seriedades. Palavras de outro ar. Eu mesmo não sabia o que ia dizer, dizendo, e dito – tudo tão bem – sem sair do tom. Sei, de, mais tarde, me dizerem: que tudo tinha e tomava forte, belo sentido, esse drama do agora, desconhecido, estúrdio, de todos o mais bonito, que nunca houve, ninguém escreveu, não se podendo representar outra vez, e nunca mais. Eu via os do público assungados, gostando, só no silêncio completo. Eu via – que a gente era outros – cada um de nós, transformado. O Dr. Perdigão devia estar soterrado, desmaiado em sua correta caixa-do-ponto.

O sentido oficial, original, o texto estabelecido pela escola se perde totalmente para dar lugar à outro que, poderíamos dizer inventado e inconsciente ao mesmo tempo. A subversão é completa, como se se atirasse uma pá de cal no Dr. Perdigão, não por coincidência atuando como “o ponto”.

Mas essa reviravolta também possui seus perigos e artimanhas. A partir do momento em que se experimenta esse círculo, torna-se quase impossível sair dele. O arrebatamento do não sentido – ou sentido outro – parece indômito. É preciso não se deixar levar por um inconsciente desenfreado. Aqui, então, ouvimos as conjecturas do narrador, que tenta vencer o arrebatamento e parte em busca de uma saída. A representação entrara em círculo, afigurava-se jamais cessar:

Mas – de repente – eu temi? A meio, a medo, acordava, e daquele estro estrambótico. O eu: aquilo nunca parava, não tinha começo nem fim? Não havia tempo decorrido. E como ajuizado terminar, então? Precisava. E fiz uma força comigo, para me soltar do encantamento. Não podia, não me conseguia – para fora do ocorrido, contínuo, do incessar. Sempre batiam, um ror, novas palmas. Entendi. Cada um de nós se esquecera de seu mesmo, e estávamos transvivendo, sobrecrentes, disto; que era o verdadeiro viver? E era bom demais, bonito – o milmaravilhoso – a gente voava, num amor, nas palavras: no que se ouvia dos outros e no nosso próprio falar. E como terminar?

Dentro de uma concepção psicanalítica, a representação em círculos nada mais seria do que a repetição incessante de um significante, o que se poderia nomear de sintoma. A passagem, que se dá de forma lúdica, e o próprio título do conto ratificam essa possibilidade de leitura. Todos estão imersos numa espécie de encantamento, mergulhados como que num surto – que para eles não deixa de ser prazeroso –; experimentam voos que não desejam interromper. Mas, por outro lado, há também a presença de um alter ego que exige a volta. Lembremos que o narrador é não só quem organiza o texto literário, mas também aquele que tinha a função do ponto, algo também organizador. Agora, é ele quem sente a necessidade de dar fim à representação desenfreada, ao sentido subversivo, à negação da versão oficial, à saída da razão. Ele quer o retorno ao mundo da ordem, ao universo organizado como “sanidade”. E eis o salto; mas não para fora, para dentro da vida preestabelecida.

Então, querendo e não querendo, e não podendo, senti: que – só de um jeito. Só uma maneira de interromper, só a maneira de sair – do fio, do rio, da roda, do representar sem fim. Cheguei para frente, falando sempre, para a beira da beirada. Ainda olhei, antes. Tremeluzi. Dei a cambalhota. De propósito, me despenquei. E caí.

É o mundo que se acaba. Mas o mundo do sonho, do sentido outro, da desrepressão total que, na verdade, não poderia ser sustentada por mais tempo sob o perigo de não se ter a racionalidade restituída. O narrador restitui – o que faz também a todos os outros – o tênue fio da razão.

O texto literário, quando é de boa qualidade como o de Guimarães Rosa, é capaz de explorar a multiplicidade de sentidos não só vocabular e sintático, mas se constituir em novos significantes capazes de criar outras unidades de sentido. “Pirlimpsiquice” transita nessa via, permite novos sentidos e outras sintaxes, que se situam dentro do que se convencionou chamar de loucura. Mas, na verdade, é um universo que também possue organização e sentido próprios, acabando por colocar em questão a razão vigente.   

Talvez caiba à literatura, à filosofia e à psicanálise levantar essas questões, que não deixam de estar irremediavelmente relacionadas ao que se entende por liberdade.


[i] Todas as citações deste conto estão em: ROSA, 2005, pp. 83-91.

Referências bibliográficas:

ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.

LACAN, Jacques. Escritos. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.