quinta-feira, dezembro 09, 2010



“O fim abraça tudo”, menos a poesia

A primeira parte do livro Loja de amores usados, de Carmen Moreno, chama-se "Morte Versus Vida", eis um trecho do primeiro poema, Movimento: "O fim abraça tudo / que mal se inicia. / Qual feto morto, / na barriga do dia." Versos prenunciando a vitória da morte, que, inclusive, aparece em primeiro lugar no próprio título. Poderíamos pensar que para essa devastação impossível de ser contida nada restaria. Mas, mergulhando livro adentro, envolvendo-se no ardor da hora poética, logo se percebe que essa morte, que a tudo e a todos devora, não consegue levar consigo a poesia. Permanece esta como marco de uma vitória, como a vida dos deuses olímpicos, que se não eram tão eternos assim, ao menos o são enquanto duram. E duram até hoje.

Num idioma que, entre tantos poetas difíceis de serem hierarquizados, há um Camões e um Pessoa, a própria opção de escrever poemas torna-se uma temeridade. Mas Carmen Moreno arrisca-se, não teme o desafio, parecendo talhada para tal ofício. A epígrafe inicial, colhida na obra de João Cabral, aponta o propósito: "gosto de chegar ao fim, de atingir a própria cinza."

Em tudo que escreve, ela não deixa ideias nem modos de dizer na superficialidade:

"Ninguém parte: aparta-se de nós / apenas o palpável. / Perde-se a casca densa do amado ser. / Seus sonhos, mirados do Alto, / a terra não morde."

"Arriscar é ser mais que o medo."

"Busco o poema como quem se esparrama, / tateando a cama vazia. / Quero, no colo da palavra, / a cor que falta no dia."

Na segunda parte, "Ecos da Casa", os poemas percorrem o universo da memória:

"A família se esvai, / por entre os dedos dos anos. / Encardida fotografia. Grande útero decomposto."

Trata-se, na verdade, de uma memória drummondiana, lembranças que não apenas transmitem saudade, amargor de uma vida sempre vulnerável a perdas, a separações, ao silêncio, mas essa memória também revela o peso da ancestralidade, que permanece em cada um e que é impossível ser descartada.

"A família tomba sobre nós com seus guardados. / Quem seríamos, sem tantas vozes compondo nossos passos?"

Versos que nos lançam à presença perene daqueles que nos antecederam, presenças em pequenos gestos, olhares, palavras perdidas, impossível se livrar do passado, impossível a autossuficiência:

"Meu pai morava no desamparo. / Sorte, que a casa amparava sorriso nas frestas de cal, / nas tréguas do caos. / E havia alegrias resistentes nos cantos dos quartos, /

nas rosas das janelas... / E havia o movimento dos irmãos, / e as mãos da mulher partindo pedaços de pão, / para não perdermos o caminho."

Mais adiante:

"Tenho minha mãe entre as pernas, / Há anos tento pari-la, pari-la de mim, / mas minha mãe não se desgarra."

E, ainda uma vez, a própria poesia surge (metaforicamente, é claro) como um meio de salvação, uma barreira capaz de nos proteger das mazelas do dia-a-dia:

"Vem, poema, me salva do sorriso de minha mãe, / da loucura da minha irmã."

Momento em que alegria e loucura se unem, porque, tanto no universo familiar quanto no percurso da memória, a palavra surge como meio de organização do mundo, não a palavra comum, mas a da poesia, a palavra surpreendente, a palavra até mesmo impossível.

Na terceira parte, "De Cama e Cortes", o livro enfoca o papel do amor, também como antídoto à solidão, ao caos provocado pela inexplicabilidade da vida. A sedução se faz presente como tentativa de driblar a morte:

"Os amantes se penetram. / Injetam-se no outro, e perdem o rosto."

"De que recanto do amor o pássaro da morte / levou no bico o teu beijo."

A temática da morte, como nos grandes poetas de nossa língua, quase sempre se faz presente no texto de Carmen, ora apontando a dualidade amor versus morte, ora vida versus morte, que na verdade tem como origem o próprio amor.

Apesar da divisão do livro em partes, torna-se impossível ocultar temas recorrentes. Memória, amor e morte sempre reaparecem para configurar uma tessitura poética coesa.

"Acariciar sonhos, / enchendo gavetas de guardados. / Amarelados papéis, roídos por baratas e tempo."

A última parte, "Sobre Saias e Sobre (saltos)” enfoca especificamente a condição feminina, apresentando questões do tempo, que apontam o papel da mulher na contemporaneidade:

"A mulher que mora em mim tem tantos mundos, / que todos os homens sou eu." Aqui a mulher tornando-se uma entre todos os gêneros.

"O amor roçou no tempo até esgarçar-se de vez, por excessos. / Quando caminho as coxas roçam uma na outra, por excessos. / Cortar gorduras é exercício estóico (às vezes esmoreço e espreguiço). / Mas tenho apreço pela assepsia da alma: limpo desde menina o lixo entranhado na história."

Ou ainda:

"escondo a barriga sem lipo, / mas a alma - renovada - mostra a cara."

Neste trecho, apresentam-se as exigências da modernidade em oposição ao desejo do eu poético pela autenticidade.

E há também a crítica ao universo masculino, este equilibrado no fio tênue entre o desejo do macho e sua fragilidade, a inobservância do masculino pelo próprio reflexo, difícil de ser admitido:

“viril de crachá / ele é macho de etiqueta / lançar-se no pódio / é sua muleta / Para qualquer suspeito / ele arma sua mira / persegue o gay / que o espelho lhe atira!”

Carmen Moreno é autora de vários livros, tanto de ficção como de poesia. Este Loja de amores usados vem apenas confirmar um talento que há muito se destaca, e revelar uma poeta que sabe trabalhar tanto com os temas universalmente abordados pela poesia, como com aqueles que fazem parte do tempo presente.

Loja de amores usados

Carmen Moreno

Editora Multifoco, 119 páginas

Encomendas: vendas@editoramultifoco.com.br

quinta-feira, dezembro 02, 2010

A capa da Fama

Em seu primeiro romance depois da consagração com ‘O filho eterno’, Cristovão Tezza constrói personagem que é um escritor famoso e inseguro

Um escritor ao desamparo, pode-se dizer sobre o tema do novo livro de Cristovão Tezza. O personagem principal é um autor já famoso, ganhador do prêmio Jabuti. Ele se vê numa cidade estranha, Curitiba, para onde fora divulgar o novo livro. Na primeira noite na cidade conhece uma mulher chamada Beatriz, por quem logo se apaixona, convidando-a para ser sua secretária, uma espécie de leitora especial para o livro que pretende lançar em breve. No dia seguinte cancela a viagem de volta e, à noite, vai à casa dela com uma garrafa de vinho. Ao chegar diz: “cometi um erro emocional. Eu me apaixonei por você”. Dali surgirá um embate tenso, não propriamente permeado por palavras, mas por silêncios, pensamentos, diálogos com personagem imaginários, discussões consigo mesmo a respeito do que o outro traz à mente, ou de que carta esconde na manga.

Os dois personagens se colocam frente a frente, tendo como pretexto a literatura, mas o que escorre nesse fio de lágrimas, vinho e sangue é a vida de cada um, o desamparo a que ambos estão submetidos, à intensa solidão que compartilham sem o saber. O tempo em que os dois se movem é curto, uma noite apenas, mas o suficiente para que, em monólogos interiores, em fluxos de pensamento, saiba-se sobre a origem de cada um, suas dores, inquietações, traumas, perdas e a relação com outros personagens adjacentes, sobretudo os que lhes infernizaram a vida.

O escritor, admirado por sua leitora voraz chamada Beatriz, não demonstra ser o mesmo quando despido da pele de autor. Ele é alguém premiado, admirado por todos, mas na vida cotidiana é de uma terrível fragilidade, um autista, como pensa a personagem que o confronta, nem é capaz de chegar à janela para admirar a vista lá de cima.

A pretexto de discutir literatura, o que vem à tona é a necessidade de espantar os fantasmas do passado representados pela ex-mulher e pelo filho que o ignora. Para tirar a diferença, há Beatriz, a nova mulher, com quem ele tem esperança de recomeçar. Ela também tem seus problemas, mas parece saber lidar melhor com a solidão.

Cristrovão Tezza apresenta também como questão neste livro a precariedade do homem que se encontra sob a capa da fama, alguém cujos leitores costumam ver como uma espécie de super-homem. Um artista, uma vez que cria personagens tão fascinantes, não seria possível em pessoa ser tão medíocre. Mas é isso que acontece. À medida que a noite se esvai, à medida que a garrafa de vinho se esvazia, intensifica-se o temor pela chegada da hora da despedida. Cria-se então sempre um pretexto para se ficar mais um pouco: uma xícara de chá, um café bem forte, uma nova garrafa de vinho. E tenta-se de novo, recomeça-se o embate, como se o anterior estivesse sendo passado a limpo, como se existisse um meio de se escapar da solidão, do desamparo, enfim da morte.

A narrativa em terceira pessoa, tendo como contraponto os dois personagens remoendo suas memórias e, sobretudo, Beatriz a conversar com uma amiga imaginária a respeito da noite vivida com Paulo Donetti, o escritor, proporciona boa proximidade temporal, e faz desse narrador mais um espectador das angústias alheias do que alguém capaz de determinar-lhes os passos.

Um erro emocional, novo livro do mesmo autor de O filho eterno, obra anterior com que ele abocanhou praticamente todos os prêmios literários e que lhe permitiu dedicar-se integralmente à literatura, não deixa a desejar. É importante que no atual momento da literatura brasileira, escritores como Cristovão Tezza saibam sair-se bem da síndrome de seu livro mais famoso, mostrando que o risco e a fragilidade de todo autor podem servir de assunto para uma nova obra.

O escritor, nascido em Santa Catarina mas criado em Curitiba, trata com maestria esse tema, na verdade inquietações de todos aqueles que sabem que o tamanho da vaidade é sempre maior do que o do talento, de quem após colher os louros da vitória começa a beirar a repetição, a colecionar críticas desfavoráveis, acabando por se tornar um fantasma para si próprio. Seria melhor acreditar que somos eternamente geniais.


Um erro emocional. Cristovão Tezza.

Record. 192 páginas. R$ 34,90


Haron Gamal - Jornal do Brasil | Sábado, 27 de novembro de 2010