terça-feira, dezembro 09, 2008

Crônica do desejo

Nada melhor do que o passar do tempo para apontar a boa literatura. Um livro que apareceu nas livrarias brasileiras há algumas semanas foi editado pela primeira vez em 1928, na Áustria; chama-se Crônica de uma vida de mulher, de Arthur Schnitzler. A obra do autor vienense, polêmica à época, hoje é considerada literatura maior e, traduzida, freqüenta vários idiomas. Ele diplomou-se em medicina e especializou-se em psiquiatria, mas dedicou a maior parte da vida à carreira de escritor.
Schnitzler coloca como cenário os últimos anos do Império Austro-Húngaro, faltando pouco para a eclosão da Primeira Guerra Mundial. Assim como vemos os nobres em decadência, também há a burguesia que, sem escrúpulo, tenta aproveitar o máximo da situação. Do mesmo modo, não deixam de faltar os pobres, a quem nada resta além de uma vida miserável e sem perspectiva. Mas o romance derrama suas luzes sobre outra questão ainda mais explosiva, tabu não só no meio em que o autor viveu mas também na maioria dos lugares: o problema da realização do desejo. Tanto mais quando a personagem principal é uma mulher. O mesmo assunto será estudado por Freud, o criador da psicanálise, que inclusive foi amigo do escritor.
Thesere Fabiani, uma moça de dezesseis anos, tem a mãe de ascendência nobre, e o pai, Hubert Fabiani, militar. No início do romance o autor apresenta o processo de desagregação familiar, que acontece a partir da aposentadoria do tenente-coronel e da conseqüente transferência da família de Viena para a então pequena Salzburg. O pai logo se entedia do lugar e tem planos grandiosos para voltar à carreira militar. Mas isso é entendido como insanidade pelas autoridades. Ele é internado num manicômio local e dia-a-dia seu estado piora.
A mãe, quase indiferente à situação, refugia-se na leitura de folhetins e em reuniões consideradas suspeitas pela medíocre sociedade local. O irmão de Therese, Karl, parte para a Viena com o objetivo de estudar medicina, não mais retornando. A jovem torna-se alvo de galanteio de um oficial, de quem ela inicialmente gosta, mas depois se decepciona; a seguir, de um conde, para quem a mãe tenta atraí-la devido a interesses financeiros. Therese então parte sozinha para Viena. Na capital, tenta estabelecer-se como preceptora de crianças e adolescentes. O autor nos conduz pelo submundo da vida vienense e por todo o tipo de lar, desde os mais pobres até os dos banqueiros e aristocratas. Therese tem esperança nos homens, deseja alguém que possa torná-la feliz. Mas num trânsito constante, eles fazem-lhe promessas, relacionam-se com ela, para logo depois desaparecerem.
No decorrer da narrativa, o autor esquadrinha quase todo o tipo de comportamento humano, tanto relativo aos homens por quem Therese se apaixona, como também em relação às pessoas para quem ela trabalha. Vemos um fervilhar de almas e, ao mesmo tempo, toda uma trama de artimanhas criadas para ocultar libidinagem e traições; o texto soa como denúncia à hipocrisia familiar.
Por mais de trezentas páginas, vemos Therese – não por sua vontade – trocar constantemente de patrões e a acompanhamos em suas constantes andanças pela cidade e arredores. As personagens são inúmeras e às vezes é possível vê-las reaparecer em situações novas.
Crônica de uma vida de mulher foi publicado dois anos antes da morte do autor, apresentando-o em plena maturidade artística. Schnitzler já se tornara um escritor consagrado devido ao sucesso de suas peças de teatro, contos e novelas. Por vezes é possível perceber um certo exagero na criação de peripécias. O fato, no entanto, serve como contraponto à referência aos folhetins escritos pela Senhora Júlia Fabiani-Halmos, mãe de Therese, que de tanto viver imersa nesse tipo de literatura, acaba tornando-se uma escritora de certa notoriedade.
Outra observação interessante é a seguinte: ao retratar na ficção o ser humano e suas pulsões, assim como teorizaria Freud na psicanálise, Schnitzler não poupa ninguém, o que há de mais recôndito na natureza humana vem à tona, impossível de ser recalcado.
Eis uma passagem do romance:
“Therese esperava na entrada do parque central da cidade. Do outro lado, em frente a um certo Café da Ringstrasse, os hóspedes estavam sentados ao ar livre, tomando sol. Uma criança pálida ofereceu violetas a Therese para que as comprasse. Ela pegou um ramalhete. Um passante sussurrou algo ao seu ouvido, um convite totalmente desprovido de papas na língua e em palavras tão desavergonhadas que ela ousou se virar. Ficou vermelha como sangue, mas não apenas por causa da fúria. Por acaso ela não era louca de viver como uma escrava?... Como uma freira? Como todos olhavam para ela! Alguns se viraram para ela; um deles, um homem belo e elegante, passou por ela um punhado de vezes, e parecia esperar para ver por quanto tempo ela ainda permaneceria sozinha. Talvez fosse bom que Kasimir não viesse. Um pobre-diabo... E um tolo ainda por cima. E justamente ele? Mas por quê? Ela é que tinha o poder de escolha.”
Nos dias de hoje, uma reflexão desse tipo, mesmo partida de uma mulher, não causaria estranheza. Mas o livro é da primeira metade do século passado, e a narrativa ambientada há exatamente cem anos.

Crônica de uma vida de mulher
Arthur Schnitzler
Tradução de Marcelo Backes
Ed. Record, 398 páginas

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