domingo, maio 18, 2008

Cartomante

A casa era na verdade um sobrado antigo. Da rua era possível ver o gradeamento do que antes fora uma aprazível varanda. Agora emoldurava roupas ao sol e ao vento. Como chovera, dois guarda-sóis grandes foram colocados como anteparo às gotas da chuva. O tempo ia virado e ainda se prenunciava alguma serração. Meio escondida, entre panos amarelecidos, tendo ao fundo o que fora a grande porta de um quarto, estava lá a placa: cartomante, quiromante, prevê-se o futuro, não deixe escapar a sorte.
Olhei a rua, uma artéria perdida do centro velho; outras casas, um muro comprido; no lado oposto algum comércio, brechós em maioria. Ao longe se via uma igreja. Tentei perceber como se dava sinal à pessoa responsável pelo lugar. Não havia onde bater. Só depois de muito tempo percebi um cordão. Devia-se puxá-lo, alguma coisa no sobrado dava o aviso; e a mulher aparecia na sacada.
A própria puxou o cordão. A porta se abriu tornando possível às vistas um túnel úmido, com cheiro de panos velhos e algum odor de tempero que escorria escadas abaixo. O resto era o negrume e gordura.
Ao atingir o patamar, após meus passos se multiplicarem sobre os degraus de uma escada oca e irregular, pude apreciar envolta em sombras a figura feminina. O que logo me prendeu a atenção foi sua saia comprida, de fazenda amassada, quase um crepom, que ia até os pés. A blusa lhe deixava os braços nus. Tinha os olhos negros, grandes. Acima da cabeça um lenço vermelho não escondia a farta cabeleira também negra.
“Um senhor!, prazer, Madame Soledad”, chegou a pronunciar de leve a última consoante.
Vi-me meio embaraçado e pensei em voltar. Diria que errara o número, que não era aquilo que desejava. O ambiente ameaçava sufocar-me; mas acabei achando que devia resistir.
Fui salvo por uma menina loura que passou correndo; olhou-me de soslaio e chegou a pronunciar “mamãe”, mas desapareceu em um dos cômodos que se perdiam à meia-luz.
Apontou-me uma banqueta. Reparei então a pequena mesa com o baralho. Surpreendeu-me que era novo.
A mulher seguiu alguns passos até o que me pareceu ser a cozinha. De lá voltou com um copo comprido, com água até a metade, que pousou sobre a mesa, ao lado esquerdo. Reparei então um livro; sinais esotéricos se espalhavam desordenados sobre a capa negra.
Fiz que falaria alguma coisa. Ela, no entanto, fez sinal de silêncio. Sentou-se também e embaralhou as cartas. Fez vários movimentos com as mãos, fechou os olhos, pareceu concentrar-se, já com as mãos paradas por sobre a pequena toalha que cobria a mesa.
“O senhor me visita por causa de uma suposta doença”, sua voz soou límpida, em tom seguro, ecoou pela sala e só então a olhei nos olhos.
Pensei qual devia ser sua idade, já que era impossível qualquer prognóstico. Tanto poderia ter vinte e cinco como quarenta anos. Mas tinha alguma beleza. Era esguia; vestida com roupas chiques não se poderia dizer sua origem humilde. Seus braços compridos moveram-se ainda com o baralho à mão. Imaginei aquelas mãos a fazer carícias; dali, furtivo, fui aos lábios, enquanto seus olhos se voltavam para a mesa. Eram lábios carnudos.
Fiz, instintivo, um movimento com a cabeça, mas ela dirigiu a palma da mão em minha direção e através de uma negativa sugeriu que não era hora para que eu me manifestasse.
“Não é nada grave”, disse séria e voltada para as cartas que esparramara para logo as recolher.
“Uma mulher está próxima ao senhor, mas ela já não pertence a este mundo”, falou sóbria, voltando os olhos e demorando a face sobre mim. Depois os abaixou mais uma vez e manteve-se pensativa. Virou novamente carta a carta e, ante a figura de um rei de copas, fisgou-me de novo pelo olhar. Nada mais pronunciou.
Quando acabou, colocou-se de pé. Quis perguntar-lhe o preço, tirei algumas notas do bolso.
“No seu caso, não costumo cobrar”.
“Como assim?”.
“O senhor não precisa pagar”.
“Gostaria de saber sobre a mulher; disse que não é desse mundo”.
“Maneiras de dizer; é que vive voltada a uma outra época”.
“Ah, sim, agora entendo”.
Movimentei-me como de partida; voltei-me, porém, de súbito.
“Mas, não entendo, a senhora parece ser pobre; como vive sem dinheiro?”.
“Não vivo sem dinheiro”, voltou-me as costas e fez que eu a seguisse até a escada.
Abriu-me caminho.
Meus passos ecoaram pela escada do sobrado, após um estalo a porta entreabriu-se e me perdi na pequena rua. Em breve, misturava-me às pessoas que surgiam pelas calçadas, ao tempo em que a tarde se dissipava.
Já noite, em um café, ao pousar a xícara sobre a mesa de mármore, a mulher voltou-me à mente: seus braços finos, suas mãos ágeis, seu rosto comprido; seu corpo ereto.
Eu a admirá-la; quase uma dor.