quinta-feira, setembro 03, 2009

Edição de 'Dialética negativa' marca os 40 anos de morte de Adorno

Haron Gamal*, Jornal do Brasil

RIO - O século 20, com suas duas guerras mundiais, revoluções e conflitos localizados, foi mais do que suficiente para fazer ruir tentativas de explicações totalizantes insinuadas pelos sistemas de pensamento (metafísica ou filosofia) que, até o século 19, tentaram dar conta tanto da natureza humana, com suas formas e meios de manifestação e reflexão sobre o próprio estar no mundo e suas conseqüências, como da história. Hegel foi o último filósofo a elaborar um sistema que, a partir de pares opostos (ou em contradição aparente) levaria à síntese. Daí à elaboração do método, resultado de um engenhoso sistema de materialização do conhecimento, tentativa de estabelecer o caminho para validar o que se convencionou chamar de saber científico. Ao mesmo tempo, a questão para ser levada avante precisava de um sistema lógico ideal, que não tivesse em conta as idiossincrasias do homem e daquilo que se convencionou chamar de história.

Ênfase na subjetividade

Theodor Adorno nasceu em 1903, viu cair por terra todos os sistemas lógicos surgidos no percurso da filosofia, percebeu a ênfase na subjetividade em um tempo em que o objeto – o outro, aquilo que se apresenta fora do sujeito – mostrava-se insuficientemente explicado pela lógica, incluída aí a própria filosofia. Adorno viveu o desbaratamento da intelectualidade alemã durante o surgimento e crescimento do nazismo – o próprio regime hitlerista foi um dos absurdos que a filosofia não soube explicar. Precisou exilar-se na Inglaterra e, depois, nos Estados Unidos. Voltou a seu país, a Alemanha, depois do fim da Segunda Guerra.

O pensador alemão propõe em Dialética negativa uma dialética que não só convive com os contrários no método de análise, mas também na apreciação do objeto como algo com linguagem própria, dessemelhante do sujeito. Opondo-se a Hegel e mesmo a Heidegger, a quem acusa de posições idealistas quando trata da subjetividade em Ser e o tempo, Adorno contesta o conceito idealista de objeto, mostrando em primeiro lugar que toda reflexão, por mais pura que tente se apresentar, traz um rastro de mundaneidade do qual é incapaz de se desvencilhar. Num segundo momento, sua reflexão se dirige à análise da ontologia e suas aporias.

Só então, depois de mostrar as lacunas e os trâmites escorregadios pelos quais envereda Hegel, parte para apresentação de sua dialética, que não deixa de trazer em parataxe a coexistência com a diferença, com as contradições do ser humano e com a história.

A segunda parte do livro aborda o tema proposto pelo autor, apresentando conceitos e categorias; a terceira tem como título “Modelos”, com os seguintes tópicos: “Liberdade”; “Espírito do mundo e história natural”; e “Meditação sobre a metafísica”.

A crítica à filosofia da identidade, empreendida por Adorno, centra-se na afirmação de que a subjetividade, ao visar o objeto como meio de este estar apenas disponível a seus interesses, não observa nele o que lhe é contrário ou diferente. Uma vez que o almejado no não-semelhante está apenas em demonstrar a hipótese daquele que empreende a busca, só é levado em conta, no segundo elemento, o que tem de semelhante no próprio sujeito – o oposto visado teria algo que identifica a esse mesmo sujeito. Daí pretende-se chegar à síntese. As outras contradições imanentes ao objeto, que estão fora dos interesses do sujeito, não são levadas em consideração. Portanto, o método desenvolvido a partir da dialética hegeliana acaba não só sendo apropriado pela ideologia, como servindo à legitimação de seus interesses. Essa mesma ideologia avalizará todo o processo científico e a expansão do sistema de troca. Em sua extremidade, chega-se ao conceito de indústria cultural, que, ao fazer jus a todo o percurso, apresenta-se de maneira avassaladora como verdade, tornando difícil, ou mesmo impossível, a crítica a partir do aparelhamento resultante de todo o processo.

A Dialética negativa na verdade complementa, por confirmação filosófica, os conceitos críticos desenvolvidos por Adorno e Horkheimer na Dialética do esclarecimento. Em palavras do próprio autor: “A dialética enquanto procedimento significa pensar em contradição em virtude e contra a contradição uma vez experimentada na coisa. Contradição na realidade, ela é contradição contra essa última. Uma tal dialética, porém, não se deixa mais coadunar com Hegel. Seu movimento não tende para a identidade na diferença de cada objeto em relação a seu conceito; ela antes coloca o idêntico como suspeita. Sua lógica é uma lógica da desagregação: da desagregação da figura construída e objetivada dos conceitos que o sujeito cognoscente possui de início em face de si mesmo. A identidade dessa figura com o sujeito é a não-verdade. Com ela, a pré-formação subjetiva do fenômeno se coloca diante do não-idêntico, do indivíduo inefável. A suma conceitual das determinações idênticas corresponderia à imagem dos sonhos da filosofia tradicional, à estrutura a priori e à sua forma arcaísta, à ontologia”.

Idealismo sem verdade

Não mais seria possível, assim, o método lógico hegeliano, porque este, a partir do descarte das contradições presentes no objeto, apelaria por um idealismo que não corresponderia à verdade em nenhum período da história humana. O método hegeliano apresentar-se-ia como tout a coup para introduzir uma filosofia do progresso, já encetada a partir do iluminismo.

No ano de 1969 Adorno – que morreu há 40 anos – foi acusado pela esquerda alemã de não levar à prática seus escritos críticos. A partir do movimento estudantil que sacudiu a Europa, ele foi acusado também por Marcuse, que se colocou ao lado dos revoltosos. O alemão respondeu que não era sua incumbência traçar um plano de ação, que não se destinava a ele elaborar qualquer tipo de práxis ligada a sua teoria. Em determinado momento, falou que a própria pesquisa crítica já era um tipo de práxis. Em outras palavras: o exercício do pensamento já se mostraria a própria práxis, porque liberaria o ser humano dos instrumentos de dominação.

* Professor de literatura e doutorando em literatura brasileira pela UFRJ.