quinta-feira, fevereiro 23, 2006

Wellington, Paçoquinha e a escola

Mesmo alguns anos depois, quando já estava aposentada e desfrutava um pouco de lazer, o que jamais conseguiu durante o tempo em que foi professora, Maria Lúcia jamais compreendeu o significado da visita que um ex-aluno lhe fizera, na escola, numa tarde de quarta-feira, em setembro do ano de 2002.
No dia seguinte à misteriosa visita, ao encontrar na própria escola uma colega de profissão, não hesitou em logo lhe dizer:
- Sabe quem esteve aqui, ontem? – e sem esperar resposta, continuou: - o Wellington.
- Que Wellington? – perguntou Isa, a amiga.
- O Wellington, aquele que foi meu aluno na 2a série e da Márcia na 3ª.
- Aquele garoto totalmente louco, que nos fez um dia chamar a polícia e o corpo de bombeiros ao mesmo tempo?
- Isso, esse mesmo.
- Não acredito. Pra mim ele nem mais existia. Do jeito que era maluco e com as companhias que andava, achei que não duraria muito.
- Ele não só existe, como mudou muito. Está um homem, é grande e forte, tem vinte e três anos – afirmou, sem pestanejar, Maria Lúcia.
- E o que ele queria? – perguntou Isa, um tanto desconfiada.
- Disse que estava com saudade da gente. Queria nos ver, sobretudo a mim e a Márcia, que fomos professoras dele. Disse que devia muito a nós.
- Não acredito, aquele garoto era uma peste.
- Sério, e parece que mudou muito, contou que entrou pra polícia.
- Polícia? – surpreendeu-se a amiga.
- Polícia Federal.
- Não acredito, Lúcia, isso deve ser brincadeira.
- Verdade, Isa, ele mostrou carteira de policial.
- Deve ser falsa.
- Não era, não. Ele nos contou que está lotado em São Paulo. Que veio ao Rio numa missão especial. Pediu-nos segredo. Falou: “professora, por favor, não fale a ninguém”, aí virou pra Márcia e continuou: “trata-se de uma missão altamente perigosa e comprometedora”.
Isa, com a testa franzida, olhou para Maria Lúcia, demonstrava total descrença pelo que a amiga lhe relatava.
Maria Lúcia continuou:
- Então, ele nos contou o segredo: “a senhora já ouviu falar num criminoso chamado Paçoquinha?”, “o seqüestrador?”, perguntei. “Esse mesmo”, ele continuou: “o que está preso no batalhão de polícia, aqui próximo da escola. Viemos escoltá-lo, ele será transferido para outra unidade”.
- Você e Márcia realmente se certificaram de que ele era da polícia mesmo?
- Claro. A Márcia ainda disse a ele em tom de dúvida: “como você é da polícia federal se não há concurso pra lá há anos?”. “Claro que houve concurso”, ele nos assegurou e ainda disse mais: “foi um concurso que ocorreu apenas em São Paulo”.
- Lúcia, como é possível, um concurso federal apenas em São Paulo?
- Isa, ele nos contou todos os detalhes. Nos relatou algumas façanhas acontecidas por lá, prisões espetaculares que fez junto com outros companheiros e outras tantas coisas. Eu ainda falei pra Márcia: “viu?, há pessoas aqui que não crêem, mas a escola também forma pessoas para o bem. Em meio ao tráfico, à criminalidade que toma conta dos morros aqui em volta, há aqueles que optaram por fazer parte da lei".
- Há algo de estranho nisso, Lúcia, não consigo acreditar.
- Nós duas, eu e a Márcia, conversamos com ele durante muito tempo. Depois que bateu o sinal de saída, a Márcia se foi com as crianças e eu ainda saí com ele e continuamos conversando.
- Vocês saíram? Maria Lúcia, você deve ter enlouquecido. Vocês foram pra onde?
- Isa, aí você já está querendo saber demais.
As duas se separaram a seguir. Cada uma foi para sua sala e deram suas aulas naquele dia.
Na sexta feira, dia seguinte à conversa, Isa chegou à escola procurando desesperada por Maria Lúcia. Ao encontrá-la disse de um jato só?
- Lúcia, você já leu algum jornal de hoje ou viu o noticiário da TV?
- Não, por quê?
- Então leia você mesma – entregou-lhe o exemplar de um jornal.
Maria Lúcia então se surpreendeu com a principal notícia:
"Paçoquinha foge. Famoso seqüestrador escapa fardado e pela porta da frente de Batalhão onde estava preso. Governador exige apuração imediata. Secretário de Segurança exonera comando da polícia militar. Há suspeitas de mega operação envolvendo civis e militares na fuga do famoso criminoso".

sexta-feira, fevereiro 10, 2006

Cidadela

A rua do Ouvidor em nada lembrava os tempos passados. Uma alarmante gritaria de camelôs ecoava por todo o trecho. Tentavam vender rapidamente suas mercadorias e, ao mesmo tempo, enxergar a possível aproximação dos homens da Guarda Municipal. Qualquer suspeita da presença destes era motivo de correria e agitação, além de causar pânico aos passantes. Entrei numa loja. Tinha visto havia alguns dias um modelo interessante. Desejava prová-lo. Se caísse bem, o levaria. A vendedora se aproximou sorridente. Apontei o que desejava. Ela foi buscar o vestido. Entrei na cabine. Despi-me e o vesti. Adorei.

Caminhei em direção à Rio Branco. Desejava ir a uma livraria na Travessa do Ouvidor. No sinal, reparei um homem alto, negro, gordo e desajeitado. Devia medir em torno de 1,90m. Continuei rapidamente até atingir meu destino. Entrei na livraria. O ambiente se transformou. O ar era frio. Uma voz de mulher entoava um jazz intimista. A exposição de livros me transportou a um outro mundo. Passava os olhos nos títulos quando vi o mesmo homem, do outro lado, em frente à estante de ficção estrangeira. Mera coincidência, pensei. Desisti de permanecer ali. Iria ao CCBB, tomaria um café e descansaria um pouco.

Após tomar o café, olhei em volta. Apreciei a bela e antiga arquitetura do prédio. A cúpula alta e transparente deixava penetrar a luz do sol. Sentia-me bem. Temi avistar o homem alto, negro, gordo e desajeitado. Mas ele não estava ali.

Dirigi-me ao segundo andar. Acontecia a exposição de um famoso pintor nacional. As telas eram gigantescas e apresentavam figuras geométricas. Embora um tanto leiga em artes plásticas, não deixei de apreciar as formas e nuanças de cor.

Quando dei por mim, entardecia. Segui pela Primeiro de Março. Tráfego intenso. Sobre o passeio, desviava-me de pessoas apressadas que vinham em sentido contrário. Ambulantes obstruíam a passagem. Na praça XV, entrei no Paço Imperial. Aproximei-me do bistrô. Sentei-me e pousei a bolsa sobre a cadeira ao lado. O garçom veio em meu socorro. Pedi um suco de laranja. Quando ele se afastou, surpreendi-me com a presença do homem que já vira outras duas vezes durante a tarde. Desta vez, concluí que não podia ser coincidência. Fiz um gesto brusco de que iria levantar-me, mas contive-me. Aquele era um lugar público, teoricamente não havia perigo. Na rua, estaria mais exposta. Tomei o suco vagarosamente. Procurei distrair-me. Olhei duas páginas de uma revista que trazia comigo. Permaneci ali cerca de vinte minutos. Às vezes tentava, de soslaio, observar se ele me espionava. Constatei que não. Não se moveu de onde estava. Pedi a conta. Paguei e não esperei troco. Precipitei-me porta afora. Senti vontade de ir ao banheiro. Mas agüentaria. Alcancei a praça e, sem olhar para trás, atravessei em direção à Sete de Setembro.

Anoitecera. O número de pessoas diminuíra. Passei diante de um restaurante onde um homem cantava ao violão. Algumas pessoas tomavam cerveja. Um garçom apontou-me uma mesa. Segui em frente. Quando atingi o Mc Donald's, entrei e tranquei-me no banheiro. Olhei-me no espelho. Estava assustada. Ajeitei-me. Na rua novamente, olhei em várias direções. Não avistei quem eu temia. Apressei-me em direção à Rio Branco.

Peguei um táxi. O trânsito seguia lento em direção a Copacabana. Naquele momento, me encontrava mais tranqüila. Os vestígios da agitação anterior tinham desaparecido. Respirava aliviada e até sentia uma ponta de felicidade. Ao cruzarmos o segundo túnel, já na Princesa Isabel, pedi ao motorista que me deixasse no primeiro ponto da Tonelero. Quando ele parou, assustei-me. De novo o homem. Desta vez no ponto, como à minha espera.

- Continue, por favor, não vou descer - precipitou-se minha voz atônita.

O motorista ainda demorou, o apressei:

- Rápido, não pare aqui.

Continuamos. Pedi que ele fosse pela Lagoa, entrasse em direção a Ipanema e me deixasse na Visconde de Pirajá. Desceria um ponto antes da General Osório.

No momento de saltar, porém, hesitei. Concluí que seria melhor continuar.

- Não, por favor, vou voltar para Copacabana.

Agora foi o motorista que me olhou com desconfiança.

- Não é problema de dinheiro - assegurei -, se quiser, pago adiantado. Dei uma nota de vinte a ele.

- Continue, por favor.

O movimento em Copacabana nunca diminui. O bairro funciona a pleno vapor em todas as horas do dia e da noite. Sairia do táxi na Nossa Senhora de Copacabana, na esquina com a Figueiredo de Magalhães. Ali haveria muita gente. O perigo seria menor.

Caminhava a passos rápidos pela Figueiredo. Tentava alcançar a Tonelero, como quem vem de Ipanema. Mas logo percebi que percorrer aquele trecho não fora a melhor escolha. Olhava em todas as direções; avançava, mesmo com maus pressentimentos. No caminho, descobri uma padaria. Entrei. Comprei um maço de cigarros. Acendi um. Dei dois tragos com sofreguidão. Quando me voltei com o objetivo de retomar o trajeto, vejo o homem passar. Ia em direção à minha rua. Fui abatida por intenso desespero. Estava certamente à minha procura. O que fazer? Tentei pensar em algumas soluções. Tentativas vãs. Se eu seguisse em sentido contrário, tudo ficaria mais difícil. Quis ir à polícia. Mas temi que me julgassem louca. Pensei em recorrer a algum amigo. Não me lembrei de ninguém naquele momento. Saí da padaria e entrei num novo táxi. Já estava tão perto de casa e tive de me afastar novamente.

Desci na Atlântica. Entrei no Leme Palace. Me hospedaria ali por uma noite.

segunda-feira, fevereiro 06, 2006

Trilogia Brasiliense
I

O painel luminoso em letras brancas e fundo vermelho ofusca meus olhos. Trata-se de uma loja de material fotográfico: Fujioka. Paro. Em frente, há um quiosque de café. Peço um expresso. A garçonete, séria, me pergunta se desejo mais alguma coisa. Meneio a cabeça negativamente.
As pessoas desfilam o final de ano no Conjunto Nacional. Tento ver suas fisionomias. Principalmente a das mulheres. Passam apressadas. Desejam presentes de última hora. Uma moça pára na frente de uma das vitrines; observa as câmeras digitais. Sorvo meu café enquanto ela permanece; rabo de cavalo, pequena bolsa às costas, camiseta e calça jeans, o casaco dependurado num dos braços. A garçonete percebe meu interesse, enquanto lava algumas xícaras. A moça, a do rabo de cavalo, dá meia volta; o acaso faz que nossos olhos se cruzem. Pisco. Ela não repara, ou finge que não repara. Desaparece. Outras pessoas continuam atravessando o local. Há lojas para todos os gostos e interesses. Meu pensamento se mantém na moça loira de rabo de cavalo. Quando me volto ao bistrô, seguro o cardápio que está ao lado. Descubro outras coisas além de café expresso e café com creme: irish coffee.
- Vocês servem irish coffee?
- Servimos.
- Quero um.
Tento observar como ela o prepara; há alguma cerimônia, um tipo de ritual na preparação. Mas concluo que há muito ninguém faz tal pedido. A garçonete olha num pequeno papel a receita da bebida. Viro-me ao corredor à esquerda para que ela não se sinta constrangida.
Vejo uma loja de loterias, depois uma sapataria. Várias lojas de moda feminina se enfileiram no lado oposto e em uma delas descubro uma das atendentes, de sorriso dourado e blusa cor de rosa. Presto atenção ao que ela faz. Anda de uma lado a outro, conversa com a companheira de trabalho e chega à porta quando percebe alguém interessado nas roupas. A vitrine está uma graça. Ela sorri para a cliente, pergunta em que pode ser útil.
Recebo meu irish coffe com um pouco mais de ingredientes do que o normal e com o ar preocupado da garçonete; a bebida tem bom sabor, o uísque parece de boa qualidade.
Após os dois primeiros goles, algo inexplicável ocorre em meu interior. A capital federal me chega com outros ares. Só quem aprecia o que é construído pelo homem – o que é artifício - tem bons sentimentos por esse lugar.
Volto-me de novo às mulheres. Há uma morena que me olha e se detém diante da loja em frente. Ela se demora. O tempo é demasiado para quem escolhe um par de sandálias. Duas negras param ao meu lado e pedem pão de queijo e café com leite. Descubro uma criança entre elas. A mais velha me repara e se deixa escorregar num sorriso educado. Retribuo. Minha pele se ressente devido ao frio, apesar de dezembro. Aqui a temperatura sempre é baixa. Brasília acompanha o primeiro mundo até na temperatura. Mas o sol permanece dentro de mim na expectativa de que a mulher que entrou na sapataria corresponda. Termino minha bebida. Sinto que a garçonete não está acostumada a servir irish coffee; teme que eu deseje outro. Peço uma pequena garrafa de água. Ela sorri aliviada. O menino entre as duas come seu pão de queijo. A morena sai da sapataria, caminha para o café. Percebo o olhar fugidio em minha direção; não tento disfarçar. Ela pede um capuccino. Eu tomo minha água. Carrega bolsa com o nome da loja. Dois homens passam conversando, um jovem segue uma adolescente. A morena dá a senha e consegue estabelecer um diálogo. Duas palavras sobre o clima; depois descobre que não sou daqui. Meu silêncio me denuncia. Respondo por monossílabos. Temo que ela escape após o último gole. Executo a lei dos contrários: desinteresse, ainda que em disfarce.
- Preciso também comprar um calçado – deixo escapar.
Ela sorri. Quase pergunta se quero ajuda para a escolha. Embora ela se tenha aproximado com facilidade, temo que se assuste, pode não ser nada disso que estou pensando. Preciso de mais uma bebida, mas deixo para após a escolha do calçado. Talvez uma sandália, confortável e de couro.
- Ah, de couro, são caras mas ótimas.
- Sim, ótimas - repito sua última palavra.
Carrego agora também uma pequena bolsa, com a sandália. Atravessamos todo o Conjunto. Sugere um bar discreto.
- Por que um bar discreto?
Ela não responde.
A cidade é discreta, todos falam baixo, todos se cumprimentam, mas pouco se conhecem. Um bar discreto; ei-lo. Há sempre um garçom solícito à porta de um bar discreto. Enquanto ela pede para ir ao toalete, peço uma dose de uísque.
- Sim, uísque - de novo, a surpresa -, não se bebe uísque nesses lugares?
Bebe-se. Eu é que não percebo. Ela volta. O garçom traz a bebida. Ela olha desconfiada para o copo. Desculpo-me, devia ter esperado. Ela não bebe, garanto que vai pedir suco. Desfaço-me em sorrisos, sinto-a preocupada. Vejo em seus olhos desconfiança sobre o homem que está diante dela. Acusa-me de alcoolismo através de um sorriso sem têmpera. Penso que deseja partir e está arrependida sobre o encontro casual. Ledo engano. Ela pede vodka.
Um rapaz passa pelo corredor empurrando um carrinho; dois outros o acompanham. Neles há alegria de fim de ano. Reparo a loira de cabelos com rabo de cavalo. Tarde demais. A morena toca um de meus braços.
- Veja aqui - diz olhando o cardápio -, veja que interessante, comida francesa, no Conjunto!
Ela, daqui, nunca tinha reparado. Duas doses de uísque, duas de vodka. Um prato de batatas cozidas. Estranho? Sim, mas verdade, estavam ótimas. Para finalizar mais um uísque para mim, mais uma vodka para ela. Saímos juntos. Estamos inteiros. A temperatura já não é baixa. Ela me arrasta para o estacionamento. Desconfio. Tem automóvel, veio dirigindo.
- Você já vai? - pergunto.
- Não, vamos juntos, onde você se hospeda?
- No Manhattan.
- Não vamos já - muda de idéia -, há uma varanda.
Paramos. A noite com as luzes de natal se estende por todo campo aberto que é a capital federal. Há enfeites, há estrelas, há brilhos interessantes.
- Eis uma cidade para quem gosta da cultura.
- Cultura? - repete minha última palavra em tom de pergunta.
- Cultura - afirmo -, tudo aqui é construído ou organizado pelo homem, matemática com um pouco de poesia.
- Poesia? – surpreende-se.
- Acostumamo-nos com a natureza; quem está de férias prefere uma praia, alguma montanha, um sítio; só vem para cá quem aprendeu a gostar de outro tipo de natureza: a humana; ou se vem por necessidade.
- Filosofia?
- Não -, respondo -, ou melhor, talvez sim.
- Você está aqui por isso?
- Não sei, descobri agora.
- Agora? repete.
- Agora, confirmo.
- E o que vamos fazer?
- Vamos andar.
- Aqui não se anda, quero dizer, a esta hora se anda de carro.
- Então vamos, vamos de carro.
Ela olha mais uma vez a área aberta, com prédios distanciados, vias que se cruzam de modo planejado, luzes que nos iluminam.
- Matemática, poesia, construído - ouço sua voz -, gostar do que é construído - repete em tom de reflexão.
Olha-me, sorri melancólica enquanto abre a porta do carro. Eu queria que ela tivesse um sorriso alegre. Sinto tê-la despertado para o que nunca tinha pensado. Talvez tivesse sido mais fácil levar a conversa em outra direção. Filosofia?, não. Talvez amor ou sexo, ainda que implícito.

II

"Luciana, loira, 24 anos, estudante universitária, precisa de ajuda financeira. Tel 8....... ."
Fico intrigado com o anúncio na seção de classificados do Correio. Percorro toda a página e percebo outros: um rapaz oferece seus dotes e serviços, mais adiante outra jovem também em dificuldades, em seguida uma mulher de trinta e três anos está em busca de aventura. Logo descubro: prostituição, feminina e masculina. Decido ligar. Para Luciana. Após o segundo toque, ouço sua voz.
- Alô, Luciana?
- Sim.
- É sobre o anúncio, você precisa de quanto? – mostro-me incisivo.
- Precisamos conversar antes.
- Como faremos?
- Devemos nos encontrar.
- Onde?
- No Brasília Shopping.
- Quando?
- Você marca.
- Hoje, às 1800.
- Ok.
Fixamos o local: o café diante da livraria. Combinamos a roupa que vestiremos.
Luciana está à minha espera; veste blusa cor-de-rosa esvoaçante, de tule; o tecido transparente permite que se observe o top, que é próprio para aquele tipo de tecido; a saia é rodada, em tom cor de vinho; o conjunto lhe dá ar juvenil. Circulo a mesa em que ela lê uma revista.
- Luciana?
- Sim.
- Armando.
- Muito prazer.
Logo percebe que não sou da cidade.
- O que você faz aqui? – quer saber.
- Ainda não sei.
- Você viaja a algum lugar e não sabe para quê?
- Talvez.
- Um desmiolado – sussurra e sorri.
- Conversemos sobre negócios – sugiro.
- Negócios?
- Sim, seu anúncio.
- Ah, sim – sorri de novo.
Olha-me sorrateira. É bonita. Mas não é a loira anunciada no jornal
- Os homens preferem as loiras – pronuncia adivinhando-me o pensamento.
Tem cabelo curto, mais para castanho claro, um corte sedutor.
- Qual é o preço?
- Quinhentos.
O valor é alto, mas mantenho a seriedade.
- Vale pela noite toda?
- Toda – responde voltando-me os olhos e depois procurando um guardanapo sobre a mesa.
- Onde vamos?
- Você paga, você escolhe.
Quando ainda andamos pelo interior do shopping, pede licença para ir ao toalete. Espero diante de uma loja de telefones celulares que é vizinha a uma de chocolates: Kopenhagem. Admiro a tecnologia dos aparelhos e depois o requinte dos bombons. Uma das vendedoras – da loja de chocolates – me olha e sorri. Sinto que não será difícil estabelecer algum vínculo inicial. Penso em abandonar a profissional. Tarde demais, ela já aparece na outra ponta do corredor. Ainda tenho tempo de ir até o pequeno balcão onde está a moça. Deixo meu cartão. É a primeira vez que tento uma conquista desse gênero, não creio que terei retorno.
Vamos ao R., famoso restaurante freqüentado pela elite da cidade, à beira do lago sul. Ali há um pianista que à meia luz dedilha melodia suave. Após às 21:00h surge outro músico, desta vez um saxofonista, que lhe faz companhia. A música nos atinge em cheio, principalmente após dois cálices de vinho do porto. Jantamos à luz de velas. Entrada: camarões ao vapor com molho holandês; cherne assado acompanhado de batatas portuguesas cortadas finíssimas é o prato principal; uma grande salada de palmito, acelga e mini tomates torna o jantar mais leve. Tudo no mais extremo requinte. Bebemos uma garrafa de Bordeaux.
Ao deixarmos o local, circulamos de automóvel à beira do lago. Após alguns poucos quilômetros, chegamos à South Point, famosa boate da moda. Mas antes de entrarmos, envolvo Luciana em meus braços, passeamos durante algum tempo sobre um céu vago e enigmático, observamos o lago e as luzes dos automóveis que cruzam a via expressa.
Como é quarta-feira, a South Point não tem muitos freqüentadores, o que nos deixa bastante confortável. De início, não quero nenhuma bebida alcóolica, mas Luciana pede coquetel de frutas tropicais com vodka e algumas gotas de gim, uma pequena cereja acompanha a bebida. Sorvo aos poucos uma garrafa pequena de água mineral com gás. A música naquele momento ainda é suave e entoada por voz feminina: um blue negro, compassado, convida ao namoro. A pequena pista está quase vazia. As pessoas junto às mesas permanecem envolvidas umas às outras. A temperatura ambiente é baixa e também incita ao tocar de corpos. Em seguida, o ritmo começa a se tornar mais agitado até desaguar num estilo anos setenta, mixado e preparado por DJs que não se satisfazem com o som original. Dançamos o tanto que podemos e da maneira que sabemos. Creio que Luciana está surpresa. Talvez tenha pensado que eu a houvesse solicitado somente para programa num motel. É provável que me ache um milionário que quer se manter anônimo; animo-me por ela não ter perguntado a origem de meu dinheiro. Não teria como lhe explicar. Ainda bem que as prostitutas são discretas.
Ela é bastante carinhosa. Namora-me com se eu fosse seu verdadeiro amor. Beija-me na boca diversas vezes e com volúpia. Dança e se diverte dando o máximo de si. Nem se percebe que trabalha.
Às duas e meia, decido partir para meu hotel. O Manhattan Plaza. Lá um quarto de casal nos espera. Quando dirijo ainda beirando o lago, antes de atravessarmos a ponte JK, pede que eu pare.
- Algum problema? – pergunto.
Faz que não com a cabeça. Lança-me um sorriso ardiloso e desce. Pede que eu abaixe os faróis. Diante do automóvel, tira toda a roupa e a arremessa em minha direção. Quer que eu aumente o som do aparelho de CD. Põe-se a dançar nua durante muito tempo. Não sei qual é sua intenção. Confia em mim deixando em meu poder todas as peças que veste; está afastada do carro. Sempre admirei a confiança que desperto nas mulheres, já na primeira vez que saio com elas. Começa a chuviscar. Seu corpo é salpicado por gotículas que parecem de cristal. Dois raios produzem estrondoso trovão; a chuva engrossa, ela se deixa molhar, seu corpo todo brilha, depois corre para dentro do automóvel e senta ao meu lado. Beija-me na boca; suas mão estão frias, mas sua língua é quente. Posso sentir gosto de mel e frutas, o rastro de álcool é o aroma do desejo. Quando me solta, sussurra:
- Leve-me a seu hotel, é urgente – sorri de novo maliciosa.
- Você não vai se vestir?
- Não, me leve nua...
Cumpro-lhe o desejo.
Temos uma noite inesquecível. Ela é boa de cama e garanto que eu também não a decepciono, embora – é preciso lembrar – aquilo para ela seja um trabalho.
Quando acordo às oito e alguma coisa, percebo que estou só. A primeira coisa que penso é que fui furtado. Mas constato que não foi isso que aconteceu. Encontro um bilhete:
“A noite foi maravilhosa. Obrigada. Sobre o pagamento, esqueça. Era brincadeira. Também vim a passeio. Um dia desses nos encontramos. Talvez em outra cidade. Um grande beijo. Luciana.”
Às onze horas, enquanto leio o Correio no lobby superior do hotel, o telefone me chama. Ligação local, a cobrar. Atendo. É a moça da Kopenhagen; quer encontrar comigo.

III

– Sr. Armando?
– Sim?
- É Gabrielli, da Kopenhagen, lembra de mim?
- Claro.
Pergunto se posso encontrá-la no Brasília Shopping, às 4:00h da tarde.
- No Brasília, não, hoje estou na loja do Pátio Brasil, sabe onde fica? – pelo seu modo de falar, tenho a intuição de que essa mulher deve ter um jeito amalucado.
- Sei.
Diz mais algumas palavras e quando vou falar, ouço que vai desligar porque não pode estar ao telefone a essa hora. Antes, ainda pergunta se vou mesmo. Confirmo. Percebo que ela está feliz, manda um beijo e desliga.
Observo com mais atenção o local à minha volta. O ambiente é de luxo. Mas devido à época do ano, quase vazio. Os deputados, quase todos, estão em seus estados de origem; empresários e outros profissionais que freqüentam vez ou outra a capital federal também não se encontram por aqui. Admiro a vista panorâmica que se descortina através dos vidros que me rodeiam; vejo outros edifícios, vias, coletivos, automóveis. A cidade se estende; é possível apreciar o eixo monumental com os ministérios enfileirando-se em ambos os lados e os dois altos prédios do congresso ao fundo; os vastos espaços abertos produzem sensação de infinitude e grandeza. Em Brasília, a amplitude também nos transmite sensação de conforto.
Volto-me ao andar onde me encontro; ao fundo há um bar. Taças, garrafas e outros objetos estão arrumados entre vidros espelhados. Preparam-se ali todos os tipos de bebidas e também serve-se café. Deixo o jornal sobre uma das pequenas mesas; levanto-me da poltrona e caminho até o bar. Peço uma pequena xícara de café com leite. Depois, sento-me de novo; agora sobre uma banqueta estofada. Aguardo. Um casal com trajes clássicos conversa, enquanto a mulher tira da bolsa o maço de cigarros; no outro extremo dois homens, um de terno bege outro de terno marrom estão sentados próximos, folheiam a Veja; alguns metros adiante, um jovem, em traje esportivo, parece adormecido num dos estofados, sua cabeça pende para trás, numa posição de quem ou passou a noite em claro, ou bebeu até alta madrugada.
***
Chego mais cedo ao Pátio Brasil. Não por causa do encontro, mas porque preciso almoçar. Dirijo-me ao segundo piso e entro num restaurante muito aconchegante. Mas confesso que não acho a comida tão saborosa. Ao terminar, como de costume tomo café e, depois de passar rapidamente pelo lavatório, caminho para a loja dos chocolates.
Não entro. Admiro pelo vidro os diversos modelos de embalagens e produtos daquela marca. Há caixas de bombons elegantíssimas, parecem obras de arte, percebo o colorido todo especial, quando Gabrielli me descobre. Pede licença à companheira e vem rápida até a mim.
- Oi – fala alongando a primeira vogal, sorri de forma deleitosa.
Beijo-a como se já nos conhecêssemos. Confesso que seu jeito de mulher desperta em mim súbita atração. Acho-a simpática, alegre. Parece ser a pessoa mais feliz do mundo. Depois completa:
- Viu?, telefonei, você pensou que eu ia esquecer, não foi?
Permaneço quieto durante alguns segundos, até que sorrio, procuro corresponder a alegria da moça.
- O que vamos fazer? – pergunto.
- Ah, tanta coisa – diz enquanto arregala os olhos, sorri com euforia ao perceber minha fisionomia -, só que... –, de repente silencia e olha para dentro da loja –, só que não vai poder ser agora, trabalho até as dez.
- Nossa, isso é escravidão – exclamo sarcástico.
- E, veja, sou até moreninha.
Ri de novo, agora de modo estrepitoso, mas sem perder a elegância. Sinto desejo por ela.
- E então, como fazemos? – indago.
- Tenho direito a quinze minutos, espere ali, no café, diante da agência do banco; fico com você durante meu tempo de lanche e então... , quem sabe? - sorri mais uma vez. –, puxa, você não precisava vir com uma roupa tão séria.
- Roupa séria? – surpreendo-me.
- Vestido assim você até parece um dos sócios da empresa.
Ela volta às carreiras para dentro da loja e eu caminho para o café.
Enquanto vou pelo corredor olhando ora a um lado ora a outro levo em conta uma possibilidade: essa mulher vai me causar algum transtorno, mas prefiro arriscar.
Olho uma vitrine de roupas esportivas, olho outra, uma marca italiana, perco-me por um dos corredores diante de uma joalheria. De repente, sinto que alguém me agarra por um dos braços, ouço sua voz.
- Vamos para o outro lado, lá é melhor.
É Gabrielli que surge do inesperado, usa o uniforme da empresa. Um tipo de jardineira marrom com blusa vermelha de manga curta que permanece por baixo da parte de cima da roupa. Ao chegarmos aonde apontou, sentamos.
- Sua loja também tem café expresso... – digo aleatoriamente.
- Quero estar sozinha com você.
- Por que me telefonou? – me faço de ingênuo.
- Por que você me deu seu número? – sua face é clara e animadíssima, explode numa gargalhada. Acabo rindo junto com ela.
- Você trabalha aqui há muito tempo?
- Não temos lugar certo. Vamos para onde a empresa manda. Não há muitas lojas da marca em Brasília. Às vezes, monta-se um quiosque em algum lugar, como o que funciona agora no Conjunto.
- Então, você trabalha muito?
- Trabalho.
- E não se diverte?
- E como! – sorri de maneira ainda mais intensa e me surpreende ao ajeitar meu cabelo. Depois pousa a mão sobre um de meus braços.
- Temos que conversar rápido – diz e olha meio temerosa para o relógio -, escute.
- Estou escutando.
- Você não é daqui, não é mesmo?
- De certa forma, não.
- Então não deve ter muito tempo?
- Devo partir em um ou dois dias.
- Vamos sair hoje? – pergunta de chofre.
Alegro-me com a proposta. Concordo. Tento não me impressionar por todo seu entusiasmo.
- Que legal! Então venha me apanhar às dez, mas me espere no estacionamento, basta dar um toque para meu número que vou a seu encontro, não posso antes, só das dez em diante.
Ela se levanta, me puxa por um dos braços. Uma das moças que trabalha na cafeteira dá um adeusinho a ela e me olha com ar de surpresa, mostra animação, é como se a incentivasse a ir adiante. Percebo alguma cumplicidade entre as duas. Saímos dali e ela também dá um adeusinho à amiga.
- Tenho que ir – diz atabalhoada -, mas não se esqueça, venha me encontrar, você parece ser uma pessoa maravilhosa.
Abraça-me com sofreguidão e, para minha surpresa, me beija nos lábios, depois me solta e grita enquanto corre para a loja:
- Não vai me dar bolo, viu?
Desaparece.
***
Chego às quinze para as dez ao estacionamento do Pátio Brasil. Ligo para Gabreielli. Ela atende.
- Oi, amor, você chegou um pouquinho adiantado, vou demorar ainda uns vinte minutinhos.
Quero lhe dizer que cheguei antes devido ao receio de não poder estacionar, já que o shopping fecha às dez, mas ela não espera eu falar e pergunta sobre a localização de meu carro. Respondo baseado nas letras e números que se encontram nas proximidades. De imediato me manda um grande beijo e desliga.
Saio do automóvel e resolvo circular pelo interior do shopping. O lugar é bonito e aprazível. Mas logo que entro me desoriento. A circulação foi criada para que as pessoas se confundam e tenham que transitar várias vezes pelo mesmo local. Creio que assim permanecem mais tempo entre as lojas e acabam comprando sempre mais alguma coisa, geralmente desnecessária. A essa hora, os empregados estão arrumando o estoque e torcem para que não chegue mais ninguém, principalmente quem olha muito e não compra nada. Olham de soslaio tentando descobrir que tipo de cliente se aproxima. Circulo no térreo e depois no andar imediatamente acima. Percebo que estou acompanhado de muitas pessoas. Umas já fizeram suas compram, outras apenas passeiam. Detenho-me diante de uma loja que vende doces e tortas; a atendente se aproxima e pergunta se desejo algo. Agradeço e continuo meu passeio. Quero ir até a loja de Gabrielli e permanecer escondido, gostaria de ver o que ela faz nos instantes derradeiros de seu dia de trabalho. Mas desisto. É melhor cumprir o combinado, não quero contrariá-la. Vou ao toalete, lavo as mãos e me olho no espelho. Ajeito o cabelo, a gola da camisa e saio. Procuro descobrir em que direção tenho de ir. A princípio, caminho para o lado contrário de onde vim; depois, orientado pelo quiosque de sorvetes do Mc Donald’s, descubro a porta por onde entrei.
Ao retornar ao estacionamento, vejo Gabrielli encostada à porta do carro com o telefone ao ouvido.
- Está bem, vou dar um jeito – são suas últimas palavras; desliga.
Ao me descobrir, corre e se atira em meus braços. Assusto-me com o gesto brusco, assusto-me com suas roupas, ela veste uma saia mais do que mini, abraça-me e se lança inesperada para um beijo, na boca.
Após eu dar a partida, diz:
- Temos um pequeno problema, mas de fácil solução, você não fica aborrecido?
- Claro que não – tento ser natural, como se problemas fossem as coisas mais normais do mundo, tento disfarçar meu olhar sobre suas pernas nuas.
- Temos que dar uma chegadinha em Ceilândia.
- Ceilândia? – indago automático.
- Isso, eu resolvo o problema em um minuto, depois você pode me levar para onde quiser e ficar comigo durante o tempo que desejar.
- Um mês?
- Calma, vamos devagar – aproxima-se e me beija.
- Você precisa me ensinar o caminho.
- Ensino.
A saída de Brasília para Ceilândia não é difícil. A via expressa que nos conduz também é boa. O problema é quando se chega à cidade. Lembra a periferia de São Paulo, ou mesmo a do Rio. A suntuosidade do Distrito Federal desaparece para dar lugar à paisagem que não se imagina para quem conhece apenas o plano piloto.
Entramos por algumas ruas um tanto soturnas àquela hora, depois percebo que as casas vão se tornam mais simples, mais humildes até que desembocamos numa espécie de campo aberto, mais adiante surge outra quadra onde a maior parte das casas se encontra ainda no tijolo. Numa das extremidades, há uma pequena praça.
- Pare aí – diz Gabrielli -, olha, você não precisa se preocupar – fala enquanto abre a porta e sai do carro -, aqui eu conheço tomo mundo, venha comigo.
Saio e caminho a seu lado. De repente, quando passamos diante de um bar, ela fala:
- Me espere aqui, já volto.
Cumprimenta o homem que está atrás do balcão e desaparece.
Ele fica me olhando durante alguns segundos e acaba por perguntar:
- Deseja alguma coisa?
Sem jeito, peço uma garrafa de água com gás.
Reparo dois homens que jogam sinuca na parte interna do bar. Um outro rapaz apenas olha. O que tem a vez de jogar vira-se e me cumprimenta com um pequeno gesto feito com a cabeça. Veste jaqueta de brim, que parece apertada em seu corpo. Segura o taco e com movimento firme acerta a bola branca encaçapando a da vez. Os outros dois fazem gesto de aprovação. De chofre diz:
- Mais uma cerveja, João.
Acabo de beber a água. Sinto-me um tanto deslocado naquele lugar. Mas logo Gabrielli reaparece. Para minha surpresa, traz uma criança pelo braço, deve ter três ou quatro anos. Ao me ver, a menina pergunta:
- Mãe, é esse que é seu namorado?
Gabrielli ri alto e diz:
- É, meu amor, é.
- Ele é bonito, mamãe.
Entramos no carro.
- Vou te ensinar o caminho, tenho que deixar Camila na minha irmã.
Dobramos à esquerda e à direita diversas vezes, até que chegamos. A casa parece boa, é de dois andares. Percebo que falta algum acabamento e que há um carro na garagem. Uma mulher morena de cabelos loiros chega à porta. Pega a menina no colo e tenta me olhar às escondidas. Depois, dá meia volta e desaparece.
Voltamos ao plano piloto. Sinto alívio.
- Não se preocupe, você não vai precisar me levar em casa esta noite.
Creio que minha fisionomia me denuncia.
Sinto-a a mulher mais feliz do mundo, me acaricia enquanto dirijo e não hesita em dizer:
- Vamos ter uma noite maravilhosa.
- Onde você quer ir? – pergunto.
- Vamos a um restaurante, você se importa?
- Claro que não.
- Conheço um que é maravilhoso, e não é caro, você vai adorar – fala e me dá mais um beijo, já está quase em cima de mim, tenho dificuldade para passar as marchas.
- Você parece carioca, e mesmo lá no Rio acho que já não há pessoas como você.
- Por quê? Você não está gostando do meu jeito?
- Estou, estou adorando – me apresso em dizer –, é que seu jeito não é característico de pessoas daqui.
- E se eu disser que sou carioca?
- Mas como você veio parar neste lugar?
- Ah, é uma longa história, um dia te conto.
É ela que orienta o trajeto até o restaurante.
Ele se situa em uma das quadras da asa norte. Na verdade, é de luxo. Tem maitre à porta, um outro empregado para nos levar até a mesa, um outro para servir a bebida e não deixar que os copos se esvaziem.
- Ah, é maravilhoso, não é mesmo? – ela me pergunta.
Está sentada a meu lado, não quer ficar de frente. Quando ainda bebericamos e aguardamos o prato principal, não hesita em me puxar pelo pescoço e me beijar na boca. De novo, reparo em suas faces inexprimível alegria. É como se possuísse uma bateria que nunca descarregasse. Sempre tem o maior entusiasmo. Qualquer proposta que faço é saudada como se fosse a melhor coisa do mundo. Conversamos sobre o trabalho dela. Diz que para trabalhar naquela empresa precisou fazer curso de etiqueta.
- Aliás, todas precisam.
- E você foi a que se saiu melhor? – pergunto com ironia.
- Foi um escândalo, nem é bom pensar... – arregala os olhos e sorri.
- Por quê?
- Você já reparou o meu jeito, não? O curso exige que as pessoas sejam discretas; alegria, só superficial; cada uma deve ter fisionomia padronizada. Não sei como consegui me sair bem...
- Você exagera, deve ter conseguido o primeiro lugar!
Emite outra gargalhada. Depois põe as mãos sobre a boca e arregala os olhos diante do silêncio e do ambiente à meia luz.
O garçom nos serve posta de salmão com molho de alcaparras; o prato não é tão sofisticado, mas esse peixe é difícil em Brasília, e a proposta também foi dela. Bebemos vinho branco francês. Ela não é ingênua. Embora ache tudo maravilhoso, está acostumada a coisas boas.
À uma e trinta, entramos no Manhattan Plaza. Olha assustada para toda aquele luxo. Percebo que por essa ela não esperava. Repara desde o elevador, o corredor todo atapetado e com as paredes também forradas, os quadros, até a decoração do apartamento. Vai à varanda com vista panorâmica, permanece durante alguns minutos tentando decifrar os locais que ela conhece lá embaixo. De início, acho que sente frio. Mas depois percebo que quando contrai o corpo magro age como se deixasse envolver por um abraço afetuoso, talvez da própria noite, que a torna mais excitada, como num ritual de preparação.
Quando volta ao apartamento, corre a porta de vidro da varanda. Pede que eu a abrace. Depois, ligeira, tira toda a roupa largando as peças desordenadas pelo quarto e mergulha na enorme cama de colchão de molas. Ela, de bruço, faz movimentos para que o colchão balance. Vejo seu corpo subir e descer, está quase em estado de êxtase.
Abro mais uma garrafa de vinho. Gabrielli que sóbria já é entusiasmada, quando bebe se mostra à beira da explosão. Temo por ela e tento contê-la. Atira-se em meus braços. Quando a acaricio, se tornar mais calma.
Namoramos durante boa parte da madrugada. Ao beirar o orgasmo, grita desesperada. Assusto-me. Diminuo meus movimentos e tento tapar-lhe a boca. Ela pede que eu não pare, mas seu coração explode num ritmo quase alucinado, prefiro acalmá-la; entra, então, num estado de certa tranqüilidade. A seguir, a cena se repete: excita-se, grita, eu a contenho de novo. Na terceira vez, deixo-a livre; ela grita cada vez mais alto até que goza; tento gozar junto com ela. Depois cai exausta a meu lado. Eu, do mesmo modo, estou sem a mínima condição de qualquer tipo de deslocamento.
Acordo às onze. Ainda está aninhada junto a mim. Nua, sob a coberta. Ao me movimentar, escuto seus primeiros sons.
- Hum, hum, me abraça.
Permaneço junto dela. Transamos mais uma vez. Mas agora, ela quase não grita. Próxima ao orgasmo, sussurra de modo quase inaudível:
- Vou gozar.
Depois cai novamente num torpor de quase quinze minutos.
- Você não tem que trabalhar? – pergunto preocupado.
- Hoje, só a partir das quatro.
O brilho da manhã combina com sua fisionomia agora tranqüila e com seus olhos ainda fechados, mas ao abri-los sei que estarão cheios de vida, próximos a outra grande explosão.
Quando, em torno das quinze e trinta, deixo-a à entrada do shopping, ela ainda se volta antes de passar pela porta automática e me dá adeus. Sua saia curta é um escândalo, várias pessoas olham para as pernas de Gabrielli. Ela faz sinal de que me vai telefonar.
***
O avião já decolou. Faz a curva sobre a cidade. Tento ver Brasília de cima. Avisto a torre de televisão, algumas quadras, mas pouco a pouco tudo vai diminuindo de tamanho até desaparecer, para se transformar apenas em nuvens. No sistema de som do avião, o comandante cumprimenta os passageiros e diz como será o vôo até São Paulo. Sempre admirei esse dom de prever o futuro, que só os comandantes possuem.