terça-feira, março 30, 2010

Obras completas de Freud começam a ser editadas no Brasil

Haron Gamal, Jornal do Brasil


RIO - Paulo César de Souza, tradutor de Freud, diz que na linguagem do criador da psicanálise talvez a metáfora mais célebre seja a chamada “metáfora arqueológica”. Nela, o inconsciente humano seria comparado ao subsolo de uma antiga cidade, “com seus estratos de construções soterrados”. Daí, o trabalho do psicanalista seria comparado ao de um arqueólogo: escavar o inconsciente com o intuito de encontrar na história de cada indivíduo “Atlântidas afundadas na psique”.

O trabalho do tradutor, na verdade, não se situaria fora dessa arqueologia. Vertendo a obra de Sigmund Freud diretamente do alemão, vez ou outra Paulo César se depara com situações semelhantes: a linguagem de Freud ora beira o poético ora beira as vias das ciências naturais, a seguir espraia-se numa terminologia intermediária, não predominando totalmente nem a função poética da linguagem (como diria Jakobson) nem a referencial, que no caso refletiria a linguagem propriamente científica. Portanto, a tarefa do tradutor é a de encontrar a nuance exata do vocábulo na língua de origem, mas também captar uma espécie de tonalidade desse mesmo vocábulo, para que ele não se afaste do contexto da enunciação. Se já se mostra exaustiva e muitas vezes problemática a arte da tradução, imagine-se quando se tem em mãos versões de obras que nos chegam não diretamente do idioma em que foram escritas, mas através de línguas pontes, como o inglês, francês ou mesmo o espanhol. Só agora, praticamente um século após a criação e o desenvolvimento da psicanálise, é que o leitor brasileiro terá acesso a uma versão fidedigna da obra de Sigmund Freud.

A Companhia das Letras pretende ser a primeira editora a publicar, no Brasil, a obra completa do autor de Futuro de uma ilusão traduzida diretamente do alemão e, ao mesmo tempo, organizada em ordem cronológica.


As obras completas serão reunidas em 20 volumes, sendo 19 de textos e um de índices e bibliografia. Estão sendo lançados os três primeiros volumes, de números 10, 12 e 14, que correspondem aos textos escritos entre 1911 e 1920. No segundo semestre de 2010 a editora vai lançar mais dois volumes, os de números 16 e 18, com as obras publicadas entre 1923-25 e 1930-36, respectivamente. A coleção prosseguirá com a publicação de um ou dois volumes por ano, a partir de 2011. A edição alemã que serve de base para a tradução brasileira é a Gesammelte Werke (obras completas), publicadas na Alemanha entre 1940 e 1952. O texto foi cotejado com a Studienausgabe (edição de estudos), publicada pela editora Fischer em 1969-75.

No primeiro livro publicado em nova tradução destaca-se, entres outros textos, “Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia” (“O caso Schreber”); no segundo, com textos de 1917-20, destacam-se “O homem dos lobos” e “Além do princípio do prazer”; e no terceiro, “Introdução ao narcisismo” e “Ensaios de metapsicologia”.

Ao mesmo tempo, a editora está lançando a nova edição revista do livro do coordenador e tradutor das obras completas de Freud em português, Paulo César de Souza, As palavras de Freud. O tradutor já é conhecido no meio editorial brasileiro, tendo ganhado duas vezes o Prêmio Jabuti por traduções de Friedrich Nietzsche e Bertold Brecht.

Paulo César, em seu livro (originalmente tese de doutorado) diz que ele “representa um esforço de revisão filológica da tradução de alguns termos centrais em Freud. São objetos dessa revisão os vocábulos 'técnicos' em torno dos quais tem havido controvérsia na psicanálise: Ich, Es, Besetzung, Verdrängung, Vorstellung, Angst, Nachträglichkeit, Verneinung, Verwerfung, Zwang e Trieb. Isto é feito a partir de uma análise das traduções francesa e inglesa das obras de Freud, tendo por principal referência os textos da 'História de uma neurose infantil' (1914) e dos 'ensaios metapsicológicos' (1915)”.

Na primeira parte, o autor discute o estilo e o vocabulário de Freud, apresentando questões sobre as traduções em ambas as línguas. O tradutor brasileiro opta pela análise filológica levado também pelo debate a respeito do caráter literário e científico do autor. Cita o Prêmio Goethe concedido a Freud em 1930, o que tornou o autor vienense festejado como escritor de estilo literário por grande parte da intelectualidade europeia. Ainda nessa parte, vários estudiosos de Freud são citados: Schönau, Roustang, Holt, Mahony, e Pörksen. Alguns tendem a reconhecer o caráter literário da obra freudiana, enquanto outras se prendem ao flanco científico.

Numa discussão preliminar, que notoriamente serviu de pretexto para que traduzisse toda a obra do fundador da psicanálise, Paulo César apresenta, na segunda parte, a importância e os problemas da edição standard inglesa: “A chamada edição standard das obras psicológicas completas de Freud, publicada na Inglaterra entre 1955 e 1974, constitui um dos mais formidáveis empreendimentos intelectuais de nossa época. Formidável, em primeiro lugar, por ter sido realizada por um homem, James Strachey, com ajuda de dois ou três auxiliares e bem poucos recursos materiais. Além de terem de traduzir o que ainda era inédito em inglês, Strachey revisou extensamente as traduções existentes (algumas dele próprio), buscando a homogeneidade estilística e terminológica, e redigiu um sem-número de notas, introduções e referências”. Mas, a seguir, há a contrapartida crítica: “Num obituário assinado por A. Grinstein (Strachey morreu em abril de 1967), sua realização foi avaliada do modo mais positivo. Mas já então apareceram críticas fundamentadas, de um ou outro psicanalista que lia Freud em alemão. Elas permaneceram vozes isoladas no 'coro dos contentes', porém. Somente em 1983, com a publicação do livro Freud and man's soul, de Bruno Bettelheim, passou-se a questionar abertamente a edição britânica. A publicidade em torno do livrinho de Bettelheim poderia ser comparada à ruptura de um dique holandês: desencadeou um dilúvio de objeções (ou, no mínimo, fez um vasto número de interessados acordarem para um problema que não percebiam)”.

Em francês, até meados da década de 1990, Freud nunca teve uma tradução rigorosa e completa de suas obras. E as edições que apareceram refletem muitas vezes de maneira caótica a doutrina psicanalítica dando mais importância ao que dela entendem seus exegetas do que propriamente ao pensamento do autor vienense. Quanto à tradução francesa mais recente das obras completas, Paulo César objeta que apesar da grandiosidade do projeto – a publicação de toda a obra de Freud em francês iniciou-se apenas em 1994 – apesar da gigantesca estrutura organizacional para a tradução e o caráter milionário do empreendimento, ela esbarra na seguinte questão: embora o texto em francês se atenha à letra freudiana, muitas vezes a tradução não corresponde à intenção dos organizadores. A obsessão a respeito de um purismo excessivo com o texto original acaba por deixar de lado um fato que ocorre em todas as línguas: as palavras não são um terreno tão seguro, elas podem ter várias nuances dependendo do contexto em que se encontram.

A empreitada editorial levada a cabo pela Companhia das Letras parte de uma posição privilegiada. Além de Paulo César de Souza ser um tradutor experiente, a edição brasileira chega num momento de intensa discussão teórica sobre a psicanálise e sobre a exatidão das traduções da terminologia utilizada por Freud. Portanto, o leitor brasileiro poderá ter em mãos uma edição que evita as vicissitudes e as escorregadelas ocorridas em outros idiomas.


08:24 - 27/03/2010


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Livros discutem o legado de Nietzsche

Haron Gamal e Rafael Haddock-Lobo, Jornal do Brasil


RIO - Dentre as muitas epígrafes existentes no livro Nietzsche: o rebelde aristocrata, de Domenico Losurdo, a primeira é muito reveladora. Diz o seguinte: “Quem não o pode reivindicar? Dize-me apenas de que precisas e te encontrarei uma citação de Nietzsche. Pela Alemanha e contra a Alemanha, pela paz e contra a paz, pela literatura e contra a literatura” (Tucholsky).

A biografia intelectual e o balanço crítico do filósofo alemão serão discutidos exaustivamente nas 1105 páginas do livro. O historiador e filósofo italiano parte da formação do pensamento de Nietzsche, seus primeiros anos de juventude, sua judeofobia, o namoro com as idéias do musicista Wagner, abordando depois a maturidade intelectual do autor de O nascimento da tragédia, suas obras e a relação delas com o contexto histórico do período, mostrando que muitas das ideias e posições assumidas pelo filósofo, que se cristalizaram em aforismos e em outros tipos de explanações, faziam parte do pensamento “do tempo”.

Essas ideias, na verdade, devem ser debatidas numa linha de crítica da revolução, a não ser que se queira descartar, com sérios prejuízos para a história do pensamento, as obras de juventude do autor. Diante de uma intelectualidade contemporânea, que no século 20 tendeu a citar Nietzsche e a tirar proveito de sua obra sem lhe exigir contextualização e coerência histórico-política, o professor italiano apresenta com muita retidão de pensamento o tanto que é precipitada a abordagem ahistórica e apolítica do autor.

Um outro aspecto que se impõe é o da honestidade editorial quanto ao texto do filólogo-filósofo da Basileia. Comentando a edição “definitiva” Sämtliche Werke, Kritische Studienausgabe, organizada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari (Dtv-de Gruyter, München, 1980), na qual Losurdo se baseia, cita-se Gadamer: “Muitos acreditaram que a nova edição crítica, publicada por Colli e Montinari, provocasse um novo e decisivo enriquecimento e aprofundamento da compreensão de Nietzsche. Ora é certamente verdade que pela primeira vez possuímos os cadernos de apontamentos de Nietzsche em forma criticamente segura e cronologicamente ordenada e que não dependemos mais da redação e da seleção em que a irmã de Nietzsche e os editores sucessivos tinham compilado os seus fragmentos póstumos, todavia é ingênuo crer que hoje, tendo o verdadeiro Nietzsche à disposição, estejamos definitivamente livres das preocupações que atormentaram os intérpretes anteriores”.

A seguir, continua o próprio Losurdo: “Embora bastante precioso, o trabalho editorial de Colli e Montinari não é aquela espécie de hermenêutica plenitudo temporum, religiosamente anunciada por intérpretes impacientes para desembaraçar-se de perguntas inquietantes que a leitura de Nietzsche contém. É a própria edição Colli-Montinari que confirma a presença, num filósofo aliás extraordinariamente rico e estimulante, de motivos que hoje não podem não suscitar ecos sinistros: celebração da eugenia e da 'super-espécie', teorização, por um lado, da escravidão, por outro, da 'criação' da 'espécie superior dos espíritos dominadores e cesáreos'; a invocação do 'aniquilamento das raças decadentes', e do 'aniquilamento de milhões de mal sucedidos', afirmação da necessidade de 'um martelo com o qual despedaçar as raças em via de degeneração e moribundas, com o qual tirá-las do meio para abrir o caminho para uma nova ordem vital'”.

Nietzsche: o rebelde aristocrata é divido em sete partes, possuindo ainda dois apêndices. Cada uma das partes contém em média sete capítulos, que por sua vez se subdividem em tópicos.

Losurdo opta por uma abordagem que privilegia a formação do pensamento histórico e político de Nietzsche, como aponta o título do primeiro capítulo: “A crise da civilização: de Sócrates à Comuna de Paris”. No trecho, o autor mostra que o filósofo alemão já vê em Sócrates a judeização do pensamento grego, o que afasta a cultura helena do preceito de “grecidade trágica” mergulhando-a numa crise a partir da concepção socrática de uma civilização que não mais privilegia o herói, mas o homem comum e em consequência a mundaneidade, o que já ameaça a aristocracia. Tal concepção anunciaria a perspectiva de igualdade, bandeira levantada pelo cristianismo, que, como sabemos, tem raízes judaicas. Losurdo afirma que o problema de Nietzsche não era com o judaísmo, mas, sobretudo, com a cristandade, pois esta é que faz a judeização da cultura. O tópico mais revelador no trecho é: “O suicídio da grecidade trágica como metáfora do suicídio do antigo regime”.

É na sexta parte, no entanto, que o livro de Losurdo se torna mais instigante. Em “No laboratório filosófico de Nietzsche”, o professor italiano pergunta: “Por que a denúncia e a crítica da revolução devem constituir o fio condutor da leitura de Nietzsche? De outro modo, não é possível 'salvar' o filósofo de sua inteireza. Quer-se ver nele o teórico de uma crítica afiada e impiedosa da ideologia que despedaça os mitos de germanismo e do antissemitismo? Salvo qualquer outra consideração, resta o fato de que esse tipo de interpretação comportaria a liquidação das obras de juventude, que ecoam temas teutômanos e judeófobos bastante difundidos na cultura do tempo e que, todavia, são extraordinariamente fascinantes. Quer-se ver em Nietzsche o campeão do 'espírito livre' e o teórico da reabilitação da carne em contraposição ao ascetismo do Ocidente cristão? De novo somos obrigados a cortes e renúncias dolorosas em prejuízo do discípulo de Schopenhauer, que exprime todo o seu desprezo pela galopante 'mundanização', evoca com acentos angustiados as consequências catastróficas do 'triste crepúsculo ateu' e defende contra Strauss 'o lado melhor do cristianismo', o dos eremitas e dos santos”.

Domenico Losurdo, da mesma forma, se contrapõe aos apologetas de Nietzsche que desejam proteger o filósofo de qualquer contaminação e revestem suas palavras com o recurso da metáfora. Ao falar sobre aniquilamento das raças decadentes e aniquilamento de milhões de mal sucedidos, o autor de Assim falou Zaratustra estaria demonstrando capacidade “bastante limitada de entender e de querer no plano político da análise histórica e política”.

Um tópico que merece muita atenção é o denominado “Nuremberg ideológico”. As concepções filosóficas de Nietzsche como a celebração do gênio e do super-homem, ou da necessidade da intervenção eugênica que serviram até certo ponto de embasamento ideológico ao 3º Reich, também circularam intensamente na cultura europeia e americana do final do século 19 e, em momento algum, nomes como o do americano Emerson e do inglês Galton são mencionados.

Talvez o extenso trabalho de Losurdo não agrade àqueles que veem um Nietzsche idealizado, apolítico e extemporâneo, filósofo do qual apenas retiram-se os trechos necessários ao desenvolvimentos de tiradas espetaculares para satisfazer a vaidade de autores que se seguem. Mas o trabalho do professor italiano se revela monumentoso não apenas em relação aos pormenores do percurso intelectual de Nietzsche, mas também sobre a trilha seguida por toda intelectualidade dos séculos 18, 19 e parte do 20, um momento em que a modernidade já está em curso e que poucos são capazes de enxergar o mundo que se anuncia.


Com sangue e com espírito

A relação com o corpo pode ser uma das mais interessantes chaves de leitura para se tentar compreender a cultura ocidental. E o mesmo pode-se dizer da filosofia. Desde Platão, a filosofia sempre dedicou esforços para tentar compreender e estabelecer o lugar do corpo em seus sistemas filosóficos. E, salvo exceções, deve-se admitir que esta relação, desde a Grécia antiga até o século 20, sempre foi muito mais tensa do que propriamente elogiosa. Não só em Platão, mas incluindo nesse movimento tipicamente filosófico a filosofia cristã e toda a filosofia de inspiração racionalista, a mente, a alma e a razão tiveram o privilégio do estudo, concedendo-se ao corpo um lugar secundário e, por isso, inferior.

Nesse sentido, Nietzsche inaugura a contemporaneidade ao tentar a todo custo trazer o corpo para um lugar de dignidade filosófica e, com isso, todos os atributos que antes o faziam ser menosprezado, como o desejo, os instintos e tudo mais que, para Nietzsche, engrandece a vida. E talvez seja impossível se aproximar de um pensamento como o de Nietzsche sem refletir sobre esse lugar de destaque que o corpo adquire em seu pensamento.

Tal é a estratégia bem sucedida de Nietzsche e o corpo, livro de Miguel Angel Barrenechea, que toma o corpo como fio condutor para apresentar o pensamento do filósofo alemão. Mas deve-se ter em mente que o termo fio condutor não pretende estabelecer uma unidade ou um sistema de pensamento assistemático por excelência, que busca justamente denunciar os grandes sistemas da tradição filosófica. “Tomar o corpo como ponto de partida é fazer dele o fio condutor, eis o essencial”, diz o próprio Nietzsche em um fragmento póstumo.

A ideia de Nietzsche, e que é tomada como fio condutor para o livro de Barrenechea, é a de que o corpo é um fenômeno de tal modo rico que pode servir como a melhor maneira de se alinhavar alguns dos temas mais importantes e reincidentes na filosofia nietzschiana, como a crítica ao dualismo, a noção de força, a relação com a vida, com a animalidade e com a dietética. Assim, seguindo esta linha que mais parece um fio de Ariadne do que um fio condutor, pois nos leva ao labirinto de um pensamento, o leitor é convocado a contra-assinar o livro que lê: pois nada mais vital (e, por isso, autobiográfico) do que a relação com o corpo e com o desejo.

E nada mais nietzschiano, como mostra Nietzsche e o corpo, do que exigir um leitor que leia com sangue (ecoando aqui a sentença de Assim falou Zaratustra que diz: “Escreve com sangue, pois sangue é espírito”). Nesse sentido, poucos filósofos provocam uma leitura desse tipo sanguínea como Nietzsche, na qual nosso corpo parece convocado a participar da leitura, sendo talvez ele mesmo o próprio órgão do entendimento. Uma leitura como a que costumamos fazer quando adolescentes, diriam alguns, e que somos desabituados ou talvez deseducados a ter, por alguma misteriosa razão.


E tal misteriosa razão não é nada mais do que aquilo que Nietzsche quer, como médico da cultura, denunciar: a conivência da razão com o rebaixamento do corpo, as atitudes constantes que visam seu enfraquecimento e toda uma glorificação de tudo que, em última instância, é pernicioso ao corpo e à “grande saúde”, para sermos fiéis aos léxico nietzschiano. Desse modo, a cultura ocidental acabou sempre exaltando ideias metafísicas, transcendentais e, nos termos de Nietzsche, falsas e mentirosas, ao invés de se voltar para o que de fato é saudável: o corpo.

Com isso, as metáforas dietéticas, as indicações das condições climáticas ideais para uma escrita, em um movimento absolutamente crítico de afastamento da postura dualista da filosofia ocidental, povoam o pensamento de Nietzsche, e são esses os elementos que Miguel Angel Barrenechea cuidadosamente alinha em sua escrita. Escrita, aliás, que recupera sem a menor vergonha o entusiasmo adolescente que tantos parecem esconder, e que acaba por contagiar o leitor. E não seria essa a mais coerente leitura? Não seria essa, ao menos, a que mais condiz com a postura nietzschiana? Talvez seja uma das possibilidades de se fugir da clausura que Nietzsche tanto denunciou, e que o livro de Barrenechea nos convida a percorrer. Com sangue – e com espírito.


08:22 - 27/03/2010


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Livro de Richard Rorty defende o pragmatismo

Haron Gamal, Jornal do Brasil

RIO - Partindo do princípio de que os seres humanos deveriam dedicar todas as suas energias para o aumento da felicidade humana, expressão que não é propriamente sua, mas de pensadores tanto materialistas como também de pensadores místicos, Richard Rorty (1931-2007) desenvolve em Filosofia como política cultural uma espécie de pragmatismo. Segundo ele, deveríamos nos preocupar com as finalidades e não com reflexões abstratas, que, ainda conforme suas palavras, não levariam a nada. Como exemplo, um artifício utilizado no início do livro para sustentar sua argumentação descarta a perspectiva de classificar os seres humanos segundo raça, privilegiando uma abordagem geneticista. Em vez de “falarmos sobre raças diferentes, vamos falar sobre genes diversos”. Portanto, segundo Rorty, não deveríamos falar sobre coisas que não fazem sentido.

A espécie humana caracteriza-se pelo desenvolvimento do raciocínio e, a partir dele, pela construção tanto de obras concretas – como as possibilitadas pelas ciências físicas – como também pela elaboração de outro tipo de obras, estas abstratas, que existem apenas na imaginação e se concretizam em forma de textos, literários ou não. As teorias filosóficas, que se caracterizam pelas sutilezas do pensamento, muitas vezes servem mais como demonstração da engenhosidade humana do que como meios de estabelecer um propósito propriamente físico. Não é de se admirar que filósofos como Platão e Aristóteles tenham escrito obras com a intenção de que o ser humano obtivesse alguma vantagem. Mas mesmo tendo desencadeado intermináveis discussões, muitas delas de caráter controverso, não se podem abandonar as perspectivas abertas por esses filósofos, desejando que se discuta apenas o que possui lógica interna, útil para a melhoria da vida humana.

A própria discussão filosófica também serve como uma espécie de melhoria ao permitir às pessoas o desenvolvimento do pensar. Afinal, a obra dos grandes filósofos, mesmo que contestada, não deixa de ser um tipo de obra de arte, que merece apreciação em toda a sua plenitude. Na história da humanidade, todo homem que desenvolveu algum tipo de filosofia talvez tenha pensado que os seres humanos teriam como resultado um mundo melhor. O que acontece é que não se pode utilizar essa afirmação com o objetivo de demonstrar a perenidade e validade do pragmatismo.

Ao defender sua tese, Rorty pergunta: “Como deveríamos dividir a cultura em áreas para as quais a política cultural seria relevante e áreas que deveriam ser mantidas livres dela?”. Neste livro, com artigos elaborados, sobretudo, na última década, o filósofo norte-americano tenta responder a questão por meio da filosofia, mas despindo-a de qualquer resquício metafísico.

A primeira parte do livro tem o título “Religião e moralidade de um ponto de vida pragmatista”. No primeiro capítulo, Rorty afirma que se deve abrir mão da discussão sobre as crenças para que se possa esboçar um tipo de “comunidade cooperativa global entre as nações”. O descarte do apego às crenças e mesmo a existência ou não de Deus não deveria ser levado em conta quando se tem como meta o estabelecimento de um mundo em que o ser humano saia beneficiado. Voltando a John Stuart Mill e a Wiliam James, e seguindo o pensamento deste último, “a crença certa a ser adquirida é aquela que fará mais pela felicidade humana”.

No segundo capítulo, o livro quer demonstrar que a visão de mundo pragmatista está mais próxima do politeísmo romântico que do monoteísmo secular. A argumentação de Rorty, sempre voltada para a realização da felicidade, se bate às voltas com o discurso religioso como forma de afastar o homem do caminho da vida secular. Valeria a pena não se preocupar tanto com os fins religiosos, os quais preconizam a salvação numa outra vida, optando pelo aqui e agora, de modo que as nações convivessem de forma harmônica.

Na segunda parte, considerando pensadores canônicos, o autor afirma: “Quando Copérnico e Galileu extinguiram a imagem do mundo que havia confortado Tomás de Aquino e Dante, Espinosa e Kant ensinaram à Europa como substituir o amor de Deus pelo amor à verdade, e como substituir a obediência à vontade divina pela pureza moral. Quando as revoluções democráticas e a industrialização nos forçaram a repensar a natureza do vinculo social, Marx e Mill se apresentaram com algumas sugestões”. São discutidas questões que levam em conta mais uma vez a crença e opção materialista da vida humana. Rorty afirma que “as classes educadas da Europa e da América se tornaram complacentemente materialistas em sua compreensão de como as coisas funcionam. (...) Também se tornaram utilitaristas e experimentalistas em suas avaliações das iniciativas sociais e políticas propostas”. O autor traça um percurso filosófico em que prevalece a opção pelo descarte de princípios tanto teológicos como filosóficos que mantenham o ser humano afastado de fazeres que não privilegiam a vida em sociedade.

Na última parte, ele propõe a discussão entre a filosofia analítica e conversacional. O princípio de pensamento que não leva em consideração o diálogo e a interação com outras linhas de pensamentos não estaria condizente com o estabelecimento daquilo que ele chama de política cultural. Rorty refuta o conversacionalismo de Habermas, o qual, segundo ele, não atinge a proposta pragmatista ao não seguir perspectivas historicistas na mesma linha do autor de Filosofia como política cultural.

Após a leitura, fica a impressão de que os ensaios tentam responder a questões pontuais da cultura norte-americana. Ao procurar estabelecer uma forma de pensar que leva em consideração apenas soluções de problemas práticos, que na verdade privilegiam apenas as ciências físicas, não haveria lugar para a crítica que se mostrasse fora de um modelo de vida predominantemente tecnicista. Poder-se-ia dizer que o desenvolvimentismo empreendido pelos Estados Unidos deveria servir de modelo bem sucedido para toda a humanidade.

O que se pode estabelecer como crítica é que o pensamento pragmatista, preconizado por Rorty, não leva em conta as contradições sociais, negligenciando questões como a luta de classes e, sobretudo, os interesses de países que tentam alcançar o mesmo patamar das nações desenvolvidas. Através da mundialização atual, pode-se concluir que ser pragmático seria pensar e agir de modo a beneficiar seu próprio país e sua consequente população. Mas o que fazer quando levamos em consideração o acirramento dos interesses e a intensificação dos conflitos, sem ainda considerar a extensão do fundamentalismo tanto do Ocidente como do Oriente?