sexta-feira, setembro 07, 2007

O LIVRO

HARON JACOB GAMAL



O LIVRO





Rio de Janeiro - 2007





As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.
Carlos Drummond de Andrade








I
Relacionamento sem futuro, pensei quando conheci Sílvia. Decidi, porém, arriscar. Aproveitaria. Ela parecia ser mais velha do que eu, mas como era bonita!

Nosso primeiro contato foi na praia. Aqui em Copacabana. Prenunciava-se a tempestade, mas resistíamos por crença de que o sol não nos abandonaria. Eu lia o jornal, que era fustigado por um incessante e inoportuno vento. Foi ela quem se aproximou. Queria acender o cigarro. Não pude ajudá-la inicialmente. Olhou ao redor, anteviu o fracasso. Enfim, deixei o jornal de lado. Minhas sandálias serviram de peso para que ele não se perdesse. Pedi o cigarro. Fui até a turma do vôlei. Voltei com ele aceso. Tentava protegê-lo entre uma das mãos. Ao recebê-lo, agradeceu e exclamou:

- Que vento horrível!

Nada fiz além de concordar, com um movimento com a cabeça. Ainda permaneceu ali por uma meia-hora. Depois, se despediu e partiu.

Alguns dias depois, no mesmo local, reapareceu muito sorridente. Reconheceu-me. Perguntou se me podia fazer companhia. Disse que sim, seria um grande prazer. Conversamos sobre futilidades. De repente, perguntou:

- Que tal nos encontrarmos hoje à noite?

Concordei de imediato. A sugestão contentou plenamente meu desejo. Marcamos encontro no Mondego, na Atlântica. Logo ali na esquina da Constante.

O dia transcorreu sem incidentes. Após a praia, almocei no Parada's, um boteco metido a restaurante, na Santa Clara. Voltei para casa. Dormitei durante três quartos de hora. Ao acordar, fiz café. Liguei o aparelho de CD e ouvi algumas sonatas de Bach. Havia vários livros sobre a mesa do pequeno apartamento. Peguei um pocket e continuei a leitura iniciada havia alguns dias. Quando olhei o relógio, percebi que já eram horas de sair: oito e meia. Desci. A noite estava quente.

Entrei no Mondego. Cumprimentei um dos garçons. Para falar a verdade, nunca gostei dos bares da Atlântica. Parece que há constante avidez por dólares e por turistas estrangeiros. Quando um simples nativo cruza a porta de qualquer um deles, percebe-se o desagrado dos empregados. Eles já nos conhecem. Sabem que gastamos pouco. Se continuarmos saindo, pensei, vou propor um bar mais aconchegante, fora do circuito turístico.

Sílvia chegou às 9:10h. Ela era pequena e magra. Tinha charme. Trajava uma saia jeans, camiseta sem mangas e percebia-se que não usava sutiã. Calçava sandálias que achei perfeitas a seu estilo. Beijou-me. Sentou-se. Pediu um chope. Eu já esvaziara o primeiro copo.

- Você vem sempre aqui?

- Pelo contrário - respondi -, quase não freqüento os bares da orla.

- Conheço um bar que é uma gracinha. Fica naquela rua entre a Figueirdo e a Siqueira. Qual é mesmo o nome daquela rua?

Tentei lembrar sem sucesso.

- Se você quiser - sugeri -, podemos tomar uma ou duas rodadas aqui. Depois vamos até lá.

Conversamos. Tentei não indagar em que trabalhava. Ela, porém, não hesitou. Tive que dizer-lhe que fazia traduções. Mas trabalhava em casa. Achou interessante. Quis saber detalhes, como idiomas, autores, etc. Percebi que gostava de ler e que tinha opiniões exageradas.

Pagamos a pequena conta - conta que contribuiu para sermos ainda mais desprezados pelos garçons - e caminhamos, inicialmente pelo calçadão, junto aos edifícios; depois entramos numa das transversais. Chegamos em dez minutos.

O bar estava cheio. Um homem tocava violão e cantava. Mas de modo discreto. As pessoas tomavam cerveja. A atmosfera do verão carioca se manifestava no local não apenas devido ao calor, mas pelo temperamento vibrante e expansivo das pessoas. Falavam alto. Sorriam. Esbanjavam saúde, êxtase, felicidade. Ali se via um pedaço vivo e bem característico do Rio. Ocupamos uma das mesas laterais. Eram pequenas as mesas do bar. Ficamos próximos um do outro. Esbarrávamo-nos, às vezes, sem querer.

Pusemo-nos a acompanhar o músico. Silvia conhecia a letra de cada canção. Passado algum tempo acendeu um cigarro, virou-se para mim e falou:

- Tenho uma porção de CDs de MPB, você gosta?

- Gosto, possuo muitos discos. Ultimamente tenho comprado mais clássicos e alguma coisa de jazz.

- Jazz? Você gosta de jazz? - perguntou torcendo um pouco o nariz.

Iria retrucar, porém à mesa ao lado, um grupo de jovens ria e falava alto. Eram quatro rapazes e uma moça. As fisionomias transmitiam entusiasmo. De repente, mais um jovem aproximou-se do grupo. Todos se levantaram. Cumprimentaram-no. Abraçaram-no. Estavam envoltos numa aura de intensa amizade.

O recém chegado exclamou:

- Vejam o livro que comprei! Tem um título estranho, chama-se Macabeth. É de um tal de Shakespeare. Parece que esse rapaz tem futuro! - mostrava o pequeno exemplar, e, ao mesmo tempo, girava o corpo em semicírculo à esquerda e à direita. Todos entregaram-se a uma prolongada gargalhada.

Olhei em direção a Sílvia, já esquecido do que lhe falaria sobre jazz. Ela também estivera acompanhando o divertido diálogo. Sua face era clara, compartilhava a alegria deles.

Eles devem fazer parte de algum grupo de teatro - falei.

Ela continuava sorrindo. Sentia imenso prazer por estar ali e poder acompanhar toda aquela movimentação. Quando a algazarra entre eles diminuiu e voltaram a conversar normalmente, ela se dirigiu a mim:

- Você conhece essa peça de Shaskespeare?

- Conheço. Já assisti a duas montagens.

- Quando for montada de novo, você me convida?

- Convido.

Senti-me animado porque ela se mostrava feliz em minha presença. Ainda quis acrescentar alguma coisa sobre a peça, preferi, entretanto, permanecer calado. Esperava que ela retomasse o diálogo.

Permaneceu também em silêncio durante algum tempo. O cigarro ainda reluzia entre seus dedos. Olhou em volta. Gozava a noite. Sorriu em minha direção.

- Você não vai acreditar no que eu vou lhe contar - acrescentou.

- O quê? – perguntei curioso.

- Duas coisas.

- Diga - aproximei-me com intenção de ouvi-la.

- A primeira é a seguinte: de vez em quando, adoro um baseado. E a segunda: já fui campeã sul-americana de atletismo. Cem metros rasos.

Não pude conter o riso diante de duas coisas tão diferentes.

- De que você está rindo? - ela me perguntou séria. - Faz muito tempo, mas é verdade.

Continuei com expressão de riso e afirmei meio incompreensível:

- Você é totalmente louca.

Acabamos rindo juntos, enquanto o garçom chegava com mais dois chopes.

Entramos pela noite conversando. As pessoas próximas já eram outras. Os jovens do grupo de teatro haviam partido. O homem do violão parara de cantar. Passava da meia-noite quando nos levantamos. Silvia não bebera muito. Eu, apenas o dobro. Quando saímos do restaurante, me perguntou:

- Será que a gente consegue um baseado agora?

- Bem, podemos tentar. Você não tem fornecedor?

- Tenho, mas a essa hora não sei se vou conseguir.

Caminhamos de novo até a orla. No Posto Quatro, em frente ao Marriot, me dirigi ao quiosque do Chaves.

- Chaves, tenho um pequeno problema.

Contei-lhe a situação. A solução foi rápida.

- Júlio - disse -, você senta um pouco e toma uma cerveja, é por minha conta. Seu pedido não vai demorar, será entregue em mãos, com toda a segurança.

Não tardou. Eu ainda não acabara de beber a cerveja quando alguém me entregou o objeto tão desejado por Sílvia. Paguei a despesa e rumamos para meu apartamento.

Havia muito tempo que eu não fumava maconha. Mas naquela noite tudo se deu com perfeição. Silvia estava feliz. E eu também. Fumamos juntos e namoramos durante boa parte da madrugada. Só não sei se os vizinhos tiveram o mesmo sentimento. Fumaça densa e malcheirosa escapava daquele pequeno apartamento, na Domingos Ferreira.


II
A porta do elevador se fechou em silêncio. Eu subia pela terceira vez o prédio de número 52, da Bolívar. Já telefonara outras duas. Nenhuma resposta. Toquei a campainha do 602. Esperei. Ninguém veio abrir. Liguei do celular. Ouvi o telefone tocar lá dentro. Uma, duas, três, quatro, cinco vezes. Enfim, a secretária eletrônica. Desliguei. Tive vontade de bater forte. Derrubar a porta.
Desisti. Desci pelas escadas. Senti a cabeça girar. A descida ligeira alterou-me o equilíbrio. Atravessei a rua sem olhar. Um som de buzina surpreendeu-me. Depois, a voz do motorista. Um palavrão. Segui em direção à praia. No caminho, entrei num bar. Encostei no balcão. Do lado esquerdo, dois homens bebiam cerveja e discutiam futebol. Uma mulher loura, de short curto e top, entrou em busca de um maço de cigarros.
- De caixinha - ainda a ouvi pronunciar.
O empregado a atendeu. Depois que deu as costas e partiu, ele ainda a continuou olhando. Quando se voltou para mim, arregalou os olhos. Tentava cumplicidade. A bunda da mulher o impressionara. Pedi um café, sem compactuar com ele.
- Tem genebra gelada? - perguntei após depositar a pequena xícara sobre o balcão.
O homem não respondeu. Abriu o frigorífico, tirou uma garrafa verde, despejou num copo comum uma enorme dose. Ainda sinalizei para não exagerar. Ele, no entanto, não me olhou. Tomei o copo em uma das mãos, reparei o líquido transparente e o bebi, de único gole.
Saí de ânimo novo. No calçadão, lancei-me a caminho do Posto Seis. Sob o sol da tarde, as pessoas caminhavam, banhavam-se, encontravam-se, conversavam, se amavam. Uma espécie de êxtase absorveu-me. Sutil alegria de apenas poucos momentos. Naquele sábado, não mais procuraria Sílvia. Andaria. Aproveitaria o fim de tarde, ao ar livre. O verão crepitava. Observei uma senhora passeando com uma pequena cadela. O animal farejava. Deparou-se logo adiante com outro da mesma raça. Ambos se cheiraram. Giraram em semicírculo. A dona do primeiro se dirigiu ao dono do segundo, um senhor:
- Do seu, ela gosta. Há um outro ali, nas proximidades da Figueiredo, que é um problema. Ela não gosta dele, de modo algum.
Os cães permaneceram durante alguns segundos enredados. Depois ela falou:
- Vamos, Anete.
O pequeno animal se desembaraçou do outro com facilidade. Facilidade característica dos animais. Seguiram. A mulher e a cadela. Longa correia unia as duas.
Em frente ao Othon, parei num quiosque. Mesa alguma desocupada. Junto ao balcão, três pessoas não se davam conta de que impediam qualquer aproximação. Numa das mesas, duas louras conversavam e sorriam. Um ambulante negro lhes tentava vender camisas de clubes cariocas, ou da seleção nacional. Elas continuavam rindo. Nada entendiam. Ou fingiam. Ele falava um inglês desencontrado, sintaxe portuguesa, alguns vocábulos em espanhol. Tentava ser engraçado. Trabalhava. Elas, sorrisos de plástico, não compraram.
A genebra já me deixara rastros. Sentia-me um pouco frio, apesar da caminhada e do calor. Meu espírito, porém, flutuava. Acreditava ter a solução para vários enigmas. Não queria perder aquela sensação. Perguntei ao empregado do quiosque:
- Tem genebra gelada?
- Gelada, não.
- Como? Não tem gelada?
- Posso fazer o seguinte: coloco duas pedras de gelo.
Sorri diante da solução. Gesticulei como se não houvesse outro jeito. Ele veio em seguida com um copo e duas enormes pedras.
- Vou caprichar! Não é pra qualquer um que faço isso, viu?
O homem me olhou. Queria minha amizade. Achei que lhe devia retribuir a boa vontade. Sorri novamente. Bebi. Paguei e agradeci. Disse que ele era gente boa, que sempre voltaria. Despedi-me. Ele, com vasto sorriso e algumas palavras, agradeceu-me:
- É isso aí, doutor. Nós estamos aqui pra servir. O senhor é sempre bem chegado.
Segui. Agora tudo parecia mais límpido. O mundo adquirira leveza. Difícil descrevê-la. Próximo à rede de vôlei do Gustavo, alguém me acenou. Parei. Era Joana. Trabalhara comigo havia alguns anos. Recentemente nos reencontramos. Às vezes, saíamos. Parecia esperar a vez para o vôlei.
- Não fala mais comigo, não?
Abraçou-me alegre, como se não me visse há tempos. Beijou-me.
- Olha, há uma festa hoje. Você quer ir? Não tenho companhia.
- Festa? Onde?
- No Joca's.
- Que Joca's?
- O Joca's, o bar do Debret.
- Ah, sim, sei onde é.
- Você vai ou não?
- A que horas? - indaguei.
- Às dez e meia .
- Vou - afirmei sem titubear.
- Espero você lá, hein? Não vai me dar bolo, viu?
- Claro que não - respondi.
De repente, das proximidades da rede, alguém chamou:
- Vamos, Joana, é a nossa vez. Joga ou não?
- Claro que jogo! - gritou.
Deu-me um beijo ligeiro e se foi. Acenou-me quando se posicionou junto à rede.
Continuei em frente. Mais pessoas surgiam. Aproveitavam o fim de tarde. Ao mesmo tempo, caminhavam sob sol mais ameno. Lembrei-me dos livros que me esperavam em casa. As duas doses de genebra atrapalhariam a leitura. Pensei em voltar, fazer alguma coisa para me livrar do álcool, manter a tranqüilidade costumeira. Atravessei. Um garçom conhecido me acenou de um dos bares. Ofereceu-me uma boa mesa. Gente bronzeada entre copos de chope se espalhava em conversas miúdas. Arre, com a leitura! Que fique para outro dia. A bebida dourada chegou-me imediatamente. Numa tulipa de cristal.
- Vou trazer pra você um tira-gosto. É cortesia.
Voltou logo em seguida. Deixou uma porção de salame.
Silvia é uma mulher transtornada. Como podia acontecer aquilo? Não era a primeira vez. Desaparecera. Não deixara aviso. Nenhum vestígio. Tentei desviá-la do pensamento. Iria logo mais à festa da jogadora de vôlei. Foda-se Sílvia.
Quando comecei a beber o segundo chope, percebi que teria de me cuidar. Do contrário, estaria de porre à hora marcada. Repeti o ritual apenas mais uma vez.
Depois que deixei o bar, voltei ao calçadão. Decidi correr um pouco. Queria suar. A intenção era eliminar o álcool. Iniciei em ritmo lento, mas não resisti por muito tempo. Senti que, caso insistisse, entraria em colapso. Após algumas centenas de metros, surpreendeu-me súbita vertigem. Suava frio. Na altura da Santa Clara, com dificuldade de respirar, atravessei. Embrenhei-me pelos quarteirões internos de Copa. Avistei um bar. Entrei. Pedi café. Era um bar antigo. Balcão, o empregado do outro lado e as pessoas de pé, homens na maioria. Bebiam e conversavam. O café estava velho e tinha gosto amargo. Mesmo com açúcar. Lembrei que o açúcar aumenta a glicose e impede o efeito do álcool. Resultado: tentei engolir meio copo de café quase intragável.
Regressei. Percebi um recado na secretária eletrônica. Avancei sobre o aparelho. Quando tentei ouvir a mensagem, silêncio. A pessoa desligara ao perceber o sinal de gravação. Decepção. Desesperança. Larguei-me no chão. Ao lado do telefone. Olhei para o teto. Tentei concatenar os pensamentos. A tarde de sábado findava. O apartamento aos poucos escurecia. Lá fora, vozes de crianças e o burburinho da rua.

III
Às dez e meia da noite acordei um tanto confuso. Lembrei-me do convite de Joana. Levantei-me. Tomei um banho rápido. Procurei no pequeno armário o vidro de perfume. Vesti-me.
A cabeça ainda me doía quando entrei um tanto tímido no Joca’s. Pelo caminho, enquanto atravessava algumas ruas das proximidades, tive a sensação de que esquecia algo; agora, a mesma sensação retornava. A lembrança de Sílvia tomou-me de repente. Ao menos lhe poderia ter telefonado ou me voltado em direção a seu apartamento, já que passara pela rua onde ela morava; se estivesse em casa haveria luz em um dos cômodos. A decepção à tarde, o início de bebedeira e o torpor em que caíra logo após ter entrado em casa, já no início da noite, tolheram-me a memória. O que fazer agora? Na verdade, eu desejava mesmo era estar com ela.
Joana ao me avistar foi tomada de imensa alegria. Correu a meu encontro, agarrou-se a meu pescoço, beijou-me exagerada e sussurrou, ainda com o rosto colado ao meu:
- Puxa, pensei que você não viria.
Olhei o relógio. Só então reparei que já eram onze e meia. Várias mesas estavam ocupadas pelos amigos do aniversariante. Alguns se surpreenderam ao me ver. Levantaram-se e me vieram cumprimentar. O primeiro foi o Guilherme:
- Porra, Júlio, quantas vezes já traduziram Os três mosqueteiros para o português?
Acabei rindo enquanto o abraçava e não deixei de lhe responder no mesmo tom:
- Quatrocentos e quarenta e quatro.
Aqueles que acompanharam o breve diálogo e sabiam da minha profissão não perderam a oportunidade, riram alto. Procurei o aniversariante. Joana disse-me, entre a alegria geral e a música que era alta:
- A Adriana foi buscá-lo. Esta é uma festa surpresa.
O chope era livre e chegava com facilidade. Muitos já estavam bastante alegres, bebiam havia algumas horas, quando ainda se encontravam na praia. Os grupos discutiam vários assuntos. Sentei-me junto a três pessoas: dois homens e uma mulher. Conversavam sobre cinema. Um deles, que se dizia cineasta, eu apenas conhecia. Cumprimentou-me com um breve gesto. Dirigira dois curtas, e ainda, segundo ele, concluía seu primeiro longa.
- É a questão do patrocínio – afirmava -, o preço está um absurdo. Como se sabe que são as estatais que entram com o grosso do dinheiro, os preços vão lá em cima. Quem não sabe captar, não consegue rodar. É uma burocracia terrível. Em alguns casos é preciso contratar especialistas para fazer esse trabalho.
Seu interlocutor o ouvia atento entre um gole e outro de cerveja. Era um pouco mais velho e parecia muito interessado no assunto.
- A classe exigiu a regulamentação do audiovisual, não? Não estão então satisfeitos?
- Nem todos – continuava -, quem inicia agora, se deseja ser independente, não consegue bancar os custos.
- E quem consegue filmar, então?
- Apenas os grandes. Veja só, um Cacá Diegues consegue todos os recursos. A lei é discriminatória. É necessário que sejam criadas restrições para estes. Mas é um assunto sobre o qual ninguém deseja falar. Além disso, você fica preso ao patrocinador. Precisa agradá-lo. Não há independência para se filmar.
Entrei na conversa quando Joana voltava de um cumprimento e puxava a cadeira para sentar-se a meu lado:
- Não temos um grande filme sobre o golpe militar, ou sobre as conseqüências dele – arrisquei. - Talvez seja devido a isso.
- Exatamente – animou-se o cineasta -, é uma ótima observação – virou-se em minha direção. – Como você vai fazer um filme sobre esse tema, se quem financia a maior parte é o governo? Ainda há pessoas daquela época no poder. O filme vai ferir interesses. Há a televisão também a patrocinar através de sua própria produtora. Esta emissora cresceu durante a ditadura, obteve privilégios. Como abordar com isenção o episódio e seus envolvidos?
Nas outras mesas, as pessoas começaram a cantar em homenagem ao aniversariante. Ele acabara de chegar. Todos se levantaram animadamente. Abraços e beijos se multiplicaram. A conversa foi interrompida e as pessoas se misturaram. Um garçom trouxe outra bandeja cheia de copos de chope. Rapidamente ela se esvaziou e todos se posicionaram para um novo e festivo brinde. Quando a conversa voltou ao normal, algumas pessoas haviam mudado de lugar. Joana envolveu-se em uma discussão sobre música. Mas não me deixou. Levou-me para junto dela e manteve-se abraçada a mim durante um bom tempo. O cineasta perdera-se em outra roda de conversa. Quis integrar-me ao novo grupo. Pus-me a ouvir o que discutiam. Não viera ao aniversário pelo aniversariante, que, aliás, eu pouco conhecia. Procurava distração e companhia. Não demorou e a conversa sobre música também esquentou. Discutia-se a qualidade da atual MPB. De um dos lados vinha uma opinião ácida:
- A música brasileira atual é uma música de mercado.
- Os músicos precisam sobreviver...- alguém retrucava.
- Sempre precisaram e sempre conseguiram, mas não era necessário que chegassem ao estágio atual.
Joana intercedeu:
- Na música, a cultura brasileira tem uma marca, que normalmente não se vê em outras artes. Merece, portanto, respeito.
A polêmica se estendeu. Uma mulher, que depois eu descobri chamar-se Míriam, rebateu:
- Esperem aí, por favor, não se pode generalizar.
- Não estou generalizando – voltou a carga Joana -, estou apenas querendo dizer que a nossa música em qualquer lugar do mundo é respeitada.
- Tanto nossa música clássica, quanto a popular – falou Alberto.
- Nosso cinema também é respeitado. Em qualquer cineclube de uma minúscula cidade que seja, de qualquer país, sabe-se quem foi Glauber – opinou Míriam.
- Quanto a isso não há dúvida – Joana concordou enquanto levava um gole de cerveja à boca. – Sobre música, porém, é preciso ressaltar que a atual música brasileira é de boa qualidade.
- Mas é de mercado, é feita para vender - disse Miriam.
- Se pensarmos assim, o cinema também...
- O cineasta que não nos ouça – falei entre um riso irônico.
Um rapaz, que fazia parte de uma banda de rock, intrometeu-se na conversa:
- Muitos começam protestando, mas acabam aderindo ao mercado. É preciso viver, dizem. A desculpa é sempre a mesma. Dizem que é impossível escapar a essa máquina terrível de fazer dinheiro...
- E você, o que acha? – Joana perguntou a ele.
- De que vale minha opinião?, será que temos capacidade de reverter essa situação? - procurou esquivar-se
- Não é questão de reverter, mas de criar uma mentalidade que fortaleça os verdadeiros artistas, aqueles que cultivam as raízes de nossa cultura e procuram, ao mesmo tempo, novas linguagens - afirmou Joana.
- Isso é verdade – intercedeu Alberto -, aqueles artistas que iniciaram suas carreiras nos anos 60 não mais se preocupam com isso. Qualquer disco que lançam, pretendem vender milhões de cópias. Tem gente até cantando em inglês...
- Começaram protestando, depois ficaram ricos – acrescentou o roqueiro.
A conversa se estendeu, se ramificou, alguns trocaram de lugar, e logo se percebeu que, para a comemoração de um aniversário, não se poderia chegar à conclusão alguma em relação ao debate. Ou melhor, a única conclusão era a de que o mercado saía duramente criticado, combatido, golpeado, mas vencedor. Vencia porque era uma luta desigual, alguns sentenciavam. Vencia, ao menos por enquanto. Vencia, segundo outros, de modo irreversível.
À uma e quarenta, um grupo sugeriu que a comemoração continuasse em outro lugar. Como os participantes eram muitos naquele momento, as propostas foram várias. Venceu a daqueles que opinavam por um pub em Ipanema. Mesmo os que se mostravam defensores ferrenhos da cultura nacional acataram a sugestão. Joana chegou-se a mim e falou:
- Você não vai me deixar, não é mesmo? Vem comigo? – indagou de modo carinhoso, beijando-me uma das faces. Não tive outra alternativa: segui em companhia dela.
O grupo foi chegando pouco a pouco no pub, situado na General Osório. Logo na entrada reparei que o local estava lotado. Mesmo assim nos esprememos, tentávamos atingir a pista de dança, no segundo andar. O som tecno logo me chegou aos ouvidos. Não se podia conversar naquele ambiente. Nem era local para isso. Um público predominantemente jovem se amontoava por todos os cantos. O ambiente ia escurecendo à medida que nos aproximávamos da pequena pista. Joana me agarrava com um dos braços. Creio que temia perder-me em meio ao tumulto.
- Vamos para o bar – gritou em meu ouvido. Precisou repetir a proposta ainda duas vezes para que eu entendesse.
Ao atingirmos o balcão do bar, ocupamos uma das poucas brechas, ao lado direito. Joana voltou-se ao garçom. Ele mesmo preparava as bebidas e as servia.
- Duas margueritas, por favor.
Olhei para ela um tanto surpreso. Bebêramos vários chopes no Joca’s. Ela sorriu e moveu os ombros, como que pedindo minha compreensão. Bebemos e dançamos a nosso jeito.
Às três e meia resolvemos partir. Em meio ao barulho ensurdecedor, despedimo-nos de quem estava próximo a nós. As luzes, que saltavam de várias partes do teto, piscavam continuamente. Sentia-me tonto e com dor de cabeça. Joana ainda estava agarrada a mim. Bebera, como a maioria, demais. Eu contive-me durante boa parte da noite. Mas perto da hora de ir embora, bebi duas doses de tequila com limão.
Logo que saímos, pegamos um táxi. Perguntei a Joana se queria ir para casa. Disse que sim, mas queria que eu ficasse com ela. Descemos na Constante, em Copa. Era onde morava. Subimos. Ela demorou para encontrar a chave dentro da bolsa. Ao abrir a porta, percebi que não estaria só no apartamento. Uma das irmãs dormia, na sala, com o namorado.
- Joana, é melhor eu ir – falei. – A gente se vê amanhã ou depois.
Ela me beijou, enquanto reparava a irmã bêbada de sono tentando entender o que acontecia. Saí rápido. Desci pelas escadas.
Quando cheguei a meu prédio, percebi luz na janela do quarto. Provavelmente esquecera de apagá-la. Entrei. Reparei que havia alguém no apartamento. Era Silvia. Estava acordada. Deu-me um beijo demorado sem fazer qualquer tipo de pergunta e sem dizer palavra alguma. Também nada falei. Tirei toda a roupa.
Permanecemos agarrados um ao outro durante o resto da noite.

IV
Estávamos no deck do Leblon. Sílvia, sôfrega, aspirou o cigarro recém aceso. Eu lia uma matéria sobre cinema, no jornal. Não deixei de me surpreender e exclamei:
- Puta que o pariu! Ou esse cara nunca foi ao cinema ou assistiu a outro filme. Não é possível escrever uma bobagem dessas.
Sílvia não reagiu. Sem dizer palavra alguma, virou uma das páginas do caderno que estava lendo.
Quando terminei a leitura, passei-lhe o jornal. Ela esticou o pescoço, olhou-me por cima dos óculos e falou:
- É sobre aquele filme que vimos, não é mesmo? É um filme polêmico. E veja só quem escreveu o artigo, é pessoa de renome.
- O que é que tem? Por acaso alguém é perfeito?
- Ah, que bom ouvir isso de você! Se ninguém é perfeito, você também não é... Lembra outro dia no B’s? Você arranjou uma discussão desnecessária com aquele jornalista do G. Só faltaram sair no tapa. O assunto era sobre uma matéria que comentava a nova tradução de O idiota, de Dostoievski.
- Discussão desnecessária?, nada disso, – assegurei -, ele é mesmo um ignorante. Você lembra o que ele falou?
- Lembro – respondeu dirigindo-me os olhos rapidamente, voltando-os, a seguir, ao jornal, que segurava nas mãos.
Através desse pequeno movimento, percebi todo o charme que me tornava uma fácil presa daquela mulher. Esqueci-me por uns momentos do que conversávamos. Pensei em me aproximar e beijá-la. Mas algo me deteve, o beijo ficou para depois.
- Você falou que a tradução estava perfeita - continuou -, irrepreensível. Viu? Lembro até a palavra: irrepreensível. Ele falou que havia alguns problemas que precisavam ser revistos. Você perguntou se ele sabia russo. Ele respondeu que não. Então você mandou que ele lesse o almanaque do Tio Patinhas. O homem ficou furioso e queria partir pra briga. Vocês dois já tinham bebido demais. Se não fosse eu, o episódio teria um final bem diferente.
- Como alguém que não sabe a língua de origem pode criticar uma tradução?
- Claro que e possível comentar alguma coisa. Basta comparar a tradução atual com a antiga. A que nos faz compreender melhor está mais adequada, não é mesmo?
Sílvia olhou-me demoradamente. O vento soprou mais forte, movendo-lhe os cabelos. Sobre nossas cabeças, um enorme guarda-sol preso no centro da mesa nos lançava pequena sombra. Olhei para o empregado do quiosque. Ele entendeu que eu desejava uma cerveja. Sílvia disse que não queria bebida alcóolica.
- Não faz mal – respondi -, peça um refrigerante.
Dizer que o dia estava agradável seria redundância. Dali se viam várias pessoas na praia. No Leblon e em Ipanema. O clima era de meia estação. Continuei olhando o caderno cultural do jornal, quando falei novamente:
- Por falar em O Idiota, você acabou de ler o livro?
- Acabei.
- E o que achou?
- Gostei.
- Não é possível ler O idiota e falar apenas "gostei", é importante discutir algumas questões, não?
- Sim. O romance aborda muita coisa. É muito complexo.
Começamos a conversar sobre o livro. Ela era uma pessoa que gostava de ler. Não era especialista em literatura, mas uma leitora contumaz e um tanto exigente. Normalmente não conseguia verbalizar questões complexas. À medida que a conversa se aprofundava, falava pouco, até que, em determinado momento, se colocava inteiramente como ouvinte. Aquilo me desagradava. Eu acabava falando sozinho e ela, por não rebater, parecia ter dúvidas sobre minhas palavras.
O empregado do quiosque trouxe a lata de cerveja. Despejei-a num copo de plástico. Temi que o vento o levasse. Mas o copo permaneceu estável, ao menos enquanto cheio.
- É muito difícil falar sobre a obra de Dostoievski - comecei um pouco preocupado com a reação dela. - Devem existir milhares de teses sobre o que escreveu e grande parte do que a gente comenta, para os especialistas, pode ser assunto de criança.
- Não falo de especialistas - disse enquanto levava o cigarro mais uma vez aos lábios. Depois entornou um pouco do refrigerante também dentro de um copo de plástico. Continuou: - a gente pode conversar sobre qualquer livro, a nosso nível, sobre o que entendemos. As questões colocadas por especialistas não são para nós. Não sei por que você se preocupa com isso. Acho que esse é um dos motivos que afastam as pessoas dos livros. Especialistas, teses e etc. só atrapalham.
Concordei com ela em silêncio. Acabei por lhe contar a experiência de um professor que conheci havia tempos.
- Tive um amigo que ministrava aulas de português para os alunos dos últimos anos do ensino fundamental. Ele dizia. "Os jovens se afastam dos livros por culpa dos professores". E afirmava categórico: "eles complicam demais". Ele me contou que certa vez leu A metamorfose, de Kafta, para a garotada. Então falei: "você está maluco? Kafka para a gurizada?" Ele disse: "eles já não são tão guris assim e olha que o resultado foi surpreendente." Segundo ele, os alunos ficaram impressionados com a transformação de Samsa num inseto monstruoso. Ele leu o livro junto com eles e após o término da leitura falou: "agora vamos dividir a turma em grupos e vocês vão tentar encenar uma pequena parte da história que acabaram de ouvir. Vocês podem fazer as modificações que quiserem. A encenação precisa ter, pelo menos, alguma coisa a ver com o que eu li para vocês." Os alunos se reuniram durante uns quarenta minutos e, perto do final da aula, cada grupo fez sua apresentação. Um dos grupos representou da seguinte forma: "alguém deitava sobre três carteiras enfileiradas, usadas como cama improvisada. Fazia de conta que despertava, olhava apavorado para seus braços e pernas recém transformados em garras, levantava com dificuldade. Depois descobria que tinha asas (foi preciso permitir esta concessão), batia-as e levantava vôo. A mesma encenação se repetia, exatamente da mesma forma, com mais outros dois alunos. O último, porém, ao se levantar e tentar voar, era abatido de modo impiedoso por outra personagem, que entrava em cena e não o perdoava, espancando-o com uma grande sandália. Ele caía no chão fulminado e morria. Aí está, A Metamorfose, de Kafta, para a garotada da 7a série. Uma encenação irrepreensível"
Sílvia acompanhou toda a narração com interesse e sorriu quando terminei.
- Interessante esse trabalho que seu amigo faz.
- É - continuei -, ele diz que tenta fazer os alunos gostarem de leitura.
Permanecemos em silêncio por alguns instantes. Dobrei alguns cadernos do jornal e cuidei para que não voassem. Ela procurou mais um cigarro. Após acendê-lo, retomou a conversa.
- Acho que os romances de Dostoievski permitem muita discussão - comentou e esperou que eu falasse algo.
- Você sabe que falo como um leitor comum. Embora trabalhe profissionalmente com traduções, não sou professor de literatura. Há pessoas que descobrem muitas coisas no decorrer da leitura. Há também aquelas que somente se prendem propriamente à história.
- Creio que as pessoas, de modo geral, gostam de uma boa história - disse ela.
- Em O idiota, há o enredo propriamente, mas encontramos, pouco a pouco, outras coisas interessantes.
- O que, por exemplo?
- A princípio, o que se observa é que acontece muita coisa em pouco tempo. Não é uma crítica negativa que estou fazendo, o que quero dizer é que há um jorrar incessante de palavras, frases... A gente até se preocupa e fica pensando: será que num espaço tão curto de tempo é possível se falar sobre tanta coisa, fazer tantas observações? Dostoievski foi acusado também de criar personagens inverossímeis.
- Talvez o príncipe, não é mesmo?
- Isso. O príncipe Michkin não pensa praticamente em si. Vive em função dos outros. Ao mesmo tempo é considerado um idiota porque é sincero e não sabe fazer o jogo de aparências daquela sociedade. Mas que ele tem conversa, tem. Acaba por conquistar a todos, passam até a amá-lo. O problema é que ele não suporta o peso de sua opção, ou pode-se dizer, de sua maneira de ser. Ele se torna um verdadeiro idiota porque não se coloca sob o escudo das aparências, não se permite proteção alguma, dentro de uma sociedade em que todos vivem a se esconder continuamente.
- Eu não sei - hesitou, sorvendo o cigarro mais uma vez -, li o livro com interesse, gostei muito, mas o que me tocou mais foi a questão do casamento. Praticamente não havia amor. O interesse era pelo dinheiro e por vantagens que se arranjavam com dotes. Era um outro tempo.
- Vejo uma outra coisa interessante, que acontece também em Crime e castigo.
- Qual? - olhou-me com algum interesse, mas reparei que talvez não gostasse de meus comentários ou os achava um tanto complicados.
- A questão da febre, ou da doença.
- Como assim?
- Repare que quase todos os personagens de Dostoievski, quando perdem a razão, estão possuídos por uma febre ou por algum tipo de mal que os leva a cometer atos que não os praticariam se estivessem sãos.
Silvia olhou-me enquanto eu observava mais uma vez seus cabelos ao sabor do vento. Ela tentava segurá-los, prendê-los em forma de rabo-de-cavalo. Continuei:
- Em ambos os assassinatos que acontecem, tanto em Crime e castigo quanto em O idiota, os personagens que os cometem estão em estado de demência devido à febre. Isso tem a ver com outra discussão que o autor coloca em algum outro ponto da narrativa: é também sobre crime e criminosos. Ele diz, logicamente não com essas palavras: "Todo criminoso, por mais cruel que tenha sido seu crime, sabe que cometeu algo que causou danos, que gerou algum tipo de mal a alguém. Ele pode não se arrepender do que fez, mas no fundo reconhece que cometeu algo nocivo à sociedade. Se isso não acontecesse, se ele achasse corretas suas ações, estaríamos num momento em que já não se faria distinção entre os conceitos e, consequentemente, viveríamos num estado de confusão total." Agora escute ainda - eu continuava me entusiasmando pelo assunto -, no momento em que um crime é cometido e o criminoso se encontra em estado de febre, demência ou doença, não significa que ele, o criminoso, esteja isento de culpa, mas o tratamento dado a ele é outro. É como se a doença o tivesse levado ao crime. O arrependimento e a punição seriam, consequentemente, o processo de absolvição.
Sílvia olhou-me com certa curiosidade. Inclinou a cabeça parecendo não demonstrar concordância ou discordância. O empregado trouxe outra cerveja. Ergui a lata na direção dela. Disse mais uma vez que não queria beber. Enchi meu copo, tomei um grande gole. Levantei-me e fui até ela. Sílvia permanecia imóvel em seu lugar. Envolvi-lhe o pescoço com um de meus braços, beijei-lhe o rosto. Arrastei a cadeira até ali, sentei-me. Permanecemos abraçados durante algum tempo.


V
Na verdade, nunca gostei da Lapa. Sempre achei decadente o bairro, sem chance alguma de recuperação. Aquela fileira de sobrados antigos, que se estende do Asa Branca até os Arcos, sempre me pareceu prestes a desabar. Basta entrar ou subir em uma daquelas construções para que você comece a sentir premente preocupação sobre o futuro de sua existência. As edificações restauradas, situadas nas ruas próximas, transformaram-se em caros restaurantes e casas de show que passaram a freqüentar as páginas dos guias turísticos. A razão da revitalização do local, na linguagem de homens da prefeitura e empresários da noite, é a preservação da memória do bairro e da cidade. Mas tudo aquilo nada mais é do que um belo motivo para você ser explorado em todos os bolsos e, ao final da noite, sair sorrindo, sob os olhares de seguranças falsamente gentis. Os ambulantes também são outro aborrecimento de que é impossível se livrar. Vendem de tudo. As opções se multiplicam quando se trata da oferta de cervejas. É possível encontrar as piores marcas, é possível encontrar latas que já entraram e saíram da geladeira de isopor duas dezenas de vezes. Não vou falar sobre a qualidade da cannabis, encontrada à venda em abundância nas redondezas, porque aí já seria trilhar veredas perigosas. Mas há aqueles que gostam. Do fumo e do lugar. Sorriem ao dizerem que estiveram na Lapa e curtiram uma noite de boêmia maravilhosa.
Eu caminhava sozinho e entrava pela Mem de Sá. Parei nas proximidades do Carioca da Gema. Eram mais ou menos 9:30 da noite. Marcara encontro com Silvia e um casal de amigos dela, na porta daquela famosa casa. Um negro de um metro e noventa, trajando terno preto, permanecia imóvel debaixo de um toldo branco, enquanto outro funcionário da casa conferia a reserva dos recém-chegados. O tráfego em frente era caótico. Inúmeros táxis desembarcavam passageiros ávidos em conhecer o local. Logo que cheguei, o negro se dirigiu a mim e perguntou se eu tinha reserva. Respondi que sim, mas que esperava três pessoas. Pediu então que eu me afastasse, que não permanecesse à frente do local. Por duas vezes me afastei e inconscientemente voltei, na ansiedade de avistar Sílvia e seus amigos. E por duas vezes ele me falou exatamente a mesma coisa. Não queria ficar mais adiante porque a alguns metros, à esquerda, era um famoso ponto de travestis. Não tenho nada contra travestis. Acho-os pessoas autênticas e interessantes. Mas não me sentia bem em estar próximo a eles, uma vez que minha intenção era outra.
Inúmeros casais chegavam. O lugar não é para quem anda só. Entravam sorridentes, e, entre eles, notava-se a presença de turistas.
Ouvi som de chorinho. Vinha lá de dentro. Não gosto desse tipo de música. Sei que se trata de cultura brasileira, mas percebo ritmos mais instigantes. O choro sempre me pareceu algo retrógrado, tentativa vã de dar vida a alguma coisa morta, composição executada por instrumentos que nunca me convenceram. Batida rápida, constante repetição, notas que fogem, pessoas que parecem tentar escapar de alguma perseguição. Molejo falso, falsa malandragem, algo improvisado no pior sentido da palavra. Pensei se não teria sido melhor permanecer em casa naquela noite.
Atravessei a rua. Queria me livrar da aglomeração e beber algo enquanto eles não chegavam. Entrei num botequim, na rua do Lavradio. Pedi uma dose de genebra gelada. O atendente abriu um dos frigoríficos localizado abaixo do balcão, encheu um pequeno copo. Ficou a olhar-me como que perguntando se eu queria mais um pouco. Meneei a cabeça negativamente. Tomei o copo nas mãos e bebi tudo de um só gole. Quando ensaiei deixar o bar, vi um letreiro luminoso: Hotel País de Gales. Construção antiga, talvez um sobrado do início do século XX, descaracterizado, restaurado a mercê de interesses comerciais. Ao mesmo tempo, uma mulher alta, magra, de vestido comprido tipo bata indiana atravessou, passou por mim e me olhou de soslaio. Chegou a me dirigir um ligeiro sorriso. Pensei em segui-la, abordá-la. Mas fiquei apenas na intenção. Imediatamente lembrei algo que ocorrera havia, mais ou menos, vinte anos. Eis a história.
Sábado. Mais de duas da tarde. Estava no centro da cidade com objetivo de visitar velhos sebos. Andara durante toda a manhã. Entrara em quase todos, revirara estantes, regateara alguns livros e devo ter comprado uma pequena quantidade deles. Tomava um café numa padaria que existia na Treze de Maio. De repente, vejo uma mulher passar adiante, sobre o passeio. Eu fazia o meu lanche, de pé, voltado para a rua. Ela me olhou. Também me sorriu. Naquele dia, meu destino seria outro. Engoli o mais rápido que pude o lanche, paguei e saí em desabada correria. Tentei alcançá-la. Fora em direção à Cinelândia. Encontrei-a na altura do Teatro Municipal. Dirigia-se ao Castelo. Mais tarde descobri que desejava condução para a Ilha do Governador.
Ela diminuiu as passadas ao reparar que eu a seguia. Olhou lateralmente para se certificar de quem se tratava. Não foi difícil fazê-la parar e estabelecer um diálogo. Não lembro com que palavras iniciei, só recordo que ela falou:
- Você me paga um guaraná?
- Só um guaraná? - ainda repeti surpreso.
- É, pode ser.
Voltamos à mesma padaria. Pedi o guaraná. Insisti e acabou aceitando um salgado. Via-se que era pessoa simples. Era magra, mas saudável. A roupa escondia um corpo bonito, que eu apreciaria depois.
- O que você faz aqui no centro?
- Vim à procura de uma loja de reparo de roupas - respondeu-me sorrindo, enquanto recolocava o copo de refrigerante sobre o balcão. Deu uma mordida grande no salgado. Reparei, então, que ela tinha fome. Ainda perguntei:
- Você não quer almoçar?
- Não, não, obrigada - respondeu-me de forma rápida.
- Você está com pressa? - atirei a minha pedra. Queria ficar um pouco com ela e tentar alguma coisa.
- Não - respondeu-me, alongando o ã. Percebi uma ponta de charme na expressão.
- Vamos caminhar um pouco? - sugeri.
Ela aceitou. Partimos em direção ao Largo da Carioca, entramos na rua do mesmo nome. Todas as lojas já estavam fechadas. Uma ou outra lanchonete permanecia aberta. A cidade, nos fins de semana, ao menos naqueles tempos, era uma desolação total. Ainda não estava na moda a palavra depressão, mas era isso que sentíamos ao cruzar aquelas ruas vazias. Raramente esbarrávamos em um ou outro transeunte extraviado. Quando chegamos à praça Tiradentes, afligi-me ante ao abandono a que aquele grandioso monumento se encontrava, condenado a estar ali por anos, décadas, talvez séculos. Do outro lado, havia algum movimento. Olhei em direção à rua Luís de Camões. As prostitutas mantinham-se a postos. Insistiam. Lembrei-me de um amigo. Certa vez ele me falara: "com uma nota de dez você passa a noite com uma delas. É o ponto mais barato da cidade”. Tive pena do meu pau, caso saísse com alguém dali. Tive pena de Camões. Acho que ele merecia uma rua melhor.
Eu e a mulher, seu nome era Soraia, pouco conversamos. Perguntei se ela encontrara a loja e se obtivera sucesso.
- Mais ou menos, não consegui falar com a proprietária.
Percebi então que ela fora em busca da tal loja não para algum conserto, mas à procura de trabalho.
- Está difícil trabalho, não é mesmo?
Ela respondeu de modo silencioso, com uma expressão de desânimo. Naquela época, eu tinha vinte e poucos anos, trabalhava na prefeitura, mas nada falei sobre isso.
Descemos pela Visconde do Rio Branco. Deparamo-nos com vários hotéis baratos. Passamos por todos eles, até que entramos na Lavradio. Ela já percebera minhas intenções. Nada, porém, falara. Quando passávamos junto ao Hotel País de Gales, ela mesma estacou e voltou-se a mim com as seguintes palavras.
- Se nós transarmos - apontou com a face o prédio do hotel -, você me arranja uma nota de cinco?
- Arranjo - respondi sem titubear. Nunca fizera uma conquista tão fácil e barata. Ainda fiquei seriamente preocupado se ela era mesmo mulher. Pensei que pudesse estar me enganando. Quando entramos, apalpei sua calcinha pela frente. Ela segurou minha mão e disse:
- Calma, já vamos, aqui não.
- Não foi essa minha intenção - ainda sussurrei. Ela me lançou um leve sorriso. Percebi nele toda a melancolia daquela tarde.
O empregado, atrás do balcão, em meio a uma escuridão quase total, suavizada apenas por luzes em tom azulado, alertou-me:
- O senhor sobe, dobre a direita e siga até o fim do corredor. É a última porta. Não repare, o hotel ainda está em obras. Estou lhe oferecendo a melhor suíte.
Fizemos o que ele disse. Quando tentei abrir a porta, a chave não girava. Havíamos passado por três homens que trabalhavam em um vão, à direita. Eles, naquele momento, se voltaram com olhar malicioso na direção da mulher. Ao nos ver em dificuldades, um deles veio em nosso socorro e tentou abrir a porta. Não conseguiu. Disse que esperássemos. Pegou a chave e correu em direção à recepção. Os outros dois ficaram a nos olhar. A fisionomia deles era de desejo. Perguntavam em silêncio a si mesmos: "Como esse idiota consegue uma mulher dessas, e nós aqui, com água na boca?" Rapidamente o empregado da portaria apareceu. Vinha seguido do homem que propôs nos ajudar. Desculpava-se de mil maneiras. Ofereceu a chave correta. Disse que daria um desconto por tal falha.
Entramos. Tranquei a porta. Os homens da obra devem ter ficado imaginando o que faríamos lá dentro.
Agarrei a mulher. Ela disse:
- Calma, calma.
Fui tirando sua roupa até deixá-la totalmente nua. Era bonita e boa de cama. Mas confesso que, naquele tempo, eu não tinha a experiência de hoje. Trocamos beijos, carícias, mas no momento da relação sexual, gostaria de ter demorado mais. Quando terminamos, Soraia levantou-se. Procurava juntar suas roupas. Entrei no banheiro. Logo que acabei de me lavar e saí, reparei que ela, ainda nua, apanhava uma nota de cinco que eu deixara em meio a meus pertences, sobre um aparador. Escondeu-a entre as pernas, junto às nádegas. Temia que eu não lhe pagasse. Tive pena daquela mulher.
- Porra, Júlio! Nós já estamos plantados em frente ao Carioca da Gema há meia-hora. Onde você se meteu? Quase entramos só nós três! - era Sílvia e seu casal de amigos. Acordava-me de tal devaneio, quando eu, ainda no mesmo bar, acabava de beber a segunda dose de genebra gelada.

VI
- Oi, tudo bem? - perguntei.
- Quase tudo.
Meu pai se levantou da mesa de jogo. A praça ainda era fresca àquela hora da manhã. Com poucas pessoas circulando, os velhos podiam cartear com toda a tranqüilidade. Jogavam todos os dias. Aposentados temerosos do vazio, do nada para fazer. Eram pequenos Ulisses em cujas faces havia vestígios de odisséias silenciosas.
- Vamos tomar café - disse a ele.
Caminhamos até o bar, no outro lado da praça. Ao entrarmos ele saudou, com leve movimento de cabeça, um conhecido.
- Como estava o jogo? – indaguei.
Nada bom, esses caras não sabem jogar. Falam muito, pensam que jogam.
A garçonete colocou duas xícaras sobre o balcão. O açucareiro foi usado primeiro por ele, depois o passou a mim. Ela veio com o bule e encheu as duas pequenas xícaras.
- Você não apareceu mais pra almoçar. Vai lá, Mercedes sempre faz comida.
- Estou muito ocupado – me desculpei. - É melhor encontrar com você aqui.
- E o trabalho?
- Tem sido muito. Tenho prazos a cumprir, às vezes quase não saio.
- E as mulheres? – fez meio sorriso, ar de deboche.
Dei de ombros, não queria entrar em detalhes.
– Não vejo você na praia ultimamente - observei.
Não tenho ido. Não tenho me sentido bem pra entrar na água. Sabe como é, minha idade, esses problemas todos, não posso facilitar.
- Não tem caminhado?
Tem feito calor. Deixa o tempo refrescar um pouco.
Ele não tinha muito assunto. Fora um bom pai, trabalhara, se esforçara para dar o melhor aos filhos. Conseguira, mas sentia-se um tanto ludibriado pelo destino. Não previra uma velhice daquelas. Vivia de modo comedido. Apesar do que ganhara quando ainda trabalhava, era obrigado a pequenas economias no presente. Tentava que nada faltasse, para ele e para a mulher, a segunda esposa. A primeira, minha mãe, morrera quando eu ainda era criança. Ele não gastara muito durante boa parte da vida. Creio, porém, que pensara em viver a velhice com mais conforto. Seu lazer era o carteado com os amigos, se é que eles podiam ser chamados de amigos. O problema era ele, uma pessoa difícil, sem papas na língua. Certa vez arranjara confusão com um dos parceiros de jogo, quando descobriu que ele, o parceiro, não era aposentado.
- Repare bem – dizia -, este é um clube de aposentados. Apontava o indicador no rosto do homem. Fica numa praça. Mas é um clube. E para aposentados. Você não pode jogar aqui.
Quase brigaram. Disseram-lhe que o oponente não era flor que se cheirasse, que não se metesse com ele. Poderia até matá-lo. Os outros parceiros não conheciam o homem. O pai andou sumido dali por uns tempos. Procurou outras praças, tentou outras parcerias. Até que voltou. Os companheiros o saudaram. Ele sorriu. O homem com quem quisera brigar, aquele que não era aposentado e que não podia pertencer ao clube, sumira.
- Tem ido ao cinema? – perguntou enquanto repousava a xícara sobre o pires.
- Tenho tentado ir menos.
Ele sorriu de modo sutil.
Seu outro lazer era a televisão. Ia para casa almoçar, às vezes voltava às duas, às vezes ficava em casa, ligava a TV e ia até à meia-noite. Via filmes, mudava de canal, tentava alguma coisa diferente. Até que era vencido pelo sono. Reclamava sempre de alguma coisa. Principalmente durante os finais de semana. O pai sempre fora homem sério em casa, até amargo. Risonho e piadista só para os amigos. Nos tempos em que ainda bebia – só gostava de cerveja, de muita cerveja – era, ainda no bar, mais engraçado, quando chegava em casa, no entanto, pouco falava, almoçava e depois dormia durante duas ou três horas.
Voltou caminhando devagar até onde eu o encontrara. As duplas de jogo já haviam mudado. Olhou o jogo sobre a mesa, as cartas nas mãos do homem a quem costeava, depois voltou-se a mim.
- O que você vai fazer agora?
Fiz um gesto de hesitação sem dizer nada. Ele permaneceu num longo silêncio. Disse, enfim, a ele:
- Já vou.
- Vê se aparece. – finalizou.
Voltei à Nossa Senhora de Copacabana como quem vai em direção ao Posto VI. A temperatura ainda não era quente, embora o verão ia alto, começo de março. Entrei num pequeno sebo, numa pequena galeria. Engraçado, ainda não me dera conta daquela loja. A lembrança de meu pai pouco à pouco foi se apagando de minha mente. Sentia um pouco de tristeza por ele, quando comecei a observar os livros sobre o balcão. Não sei se suportaria aquela sua vida. Passava-a numa praça jogando cartas, ou em casa vendo TV. Comecei a manusear o primeiro livro e minha vida retomou seu curso.
Discutira havia poucos dias com Silvia sobre Virgínia Wolf, e ali, sobre o primeiro balcão, havia Mrs. Dallowey. Lembrei do filme As horas. Eu tinha visto aquele filme com Silvia. Lembro-me de que ela o achara deprimente, pesado. Fora ao cinema por minha causa. Depois dei a ela o livro, de presente. Não sei se ela o leu. Suspeito que discutiu comigo apenas pelo que vira na tela. Li o livro pouco depois e achei a história muito complexa. Pensamentos e lembranças das personagens afloram durante todo aquele dia. Impossível não lembrar Joyce. Não sei se Mrs. Dallowey pode ser definido como uma narrativa. Mas gostei da história. Fluxo de pensamento transbordante, certezas e incertezas, delírio e loucura. Uma Londres ainda organizada. Um caminho inglês sobre uma época em que ainda havia algum tipo de crença. Ao menos na literatura Virgínia acreditava. Personagens fascinantes, marcados por muitos riscos, algo tão incomum entre os ingleses. Com Mrs. Wollf, o chão inglês deixou de ser tão sólido. Corri os olhos por outras prateleiras. Reparei que abrigavam livros de literatura policial. Romance inglês, séries sobre detetives famosos. Na ponta da estante, um brasileiro solitário: delegado Espinosa. Recordei-me de dois romances em que ele despontava como policial íntegro, cujo primeiro objetivo era livrar-se das amarras existentes dentro da própria corporação. Tomei na mãos Achados e Perdidos. Era muito recente para estar num sebo. Lembrei que a Copacabana dele era a mesma que a minha. E ele era apenas um personagem de ficção, mas muito convincente.
Saí do sebo. Tinha contrato com a editora. Precisava terminar duas traduções até o final do mês. Inicialmente entregava os trabalhos dentro do prazo. Às vezes, até antes. Mas relaxara. Andava demais pela manhã. Muitas vezes acordava tarde, resolvia ir ao Centro sem objetivo específico. Deixava o trabalho para mais tarde. As coisas, no entanto, não se davam como eu imaginava e as tarefas se iam acumulando. Prometera a mim mesmo que, naquele dia, voltaria logo e retomaria as tarefas. Era preciso disciplina para realizar aquele tipo de trabalho conforme as editoras exigiam. Iria me esforçar.
Atravessei a Santa Clara. Muitas pessoas passavam apressadamente. Continuei na Nossa Senhora. Após alguns metros, entrei no Cirandinha. Pedi um café. Olhei o salão de lanche. É mais movimentado à tarde, quando senhoras, ali, tomam chá e saboreiam waffles. No verão, a casa vende muitos milk shakes. Aquela hora da manhã apenas o balcão de entrada tinha algumas pessoas. Tomavam café. Um homem, ao fundo, bebia cerveja. Uma mulher de cabelos louros encaracolados chamou-me a atenção. A cor do cabelo não era natural, tratava-se certamente de tintura. Mas a mulher era bonita. Ao passar por mim, tocou o canto do lábio esquerdo com a ponta da língua, voltou-me os olhos e depois caminhou de cabeça baixa. Era magra e bem vestida. Tinha sua graça. Uma prostituta, na verdade. Àquela hora da manhã. Mas as traduções me esperavam. Eu tentava disciplinar-me.

VII
O restaurante exibia seus freqüentadores habituais. Eram mais de onze da noite. Um grande número de artistas o escolhera como ponto de encontro, e assim o lugar tomara fama. Recentemente, escritores também afluíam ao local. Eram homens e mulheres que procuravam visibilidade. Pessoas que discutiam o tempo todo, apertavam mãos amigas e desconhecidas, procuravam ouvir sugestões e, como é de praxe, faziam propaganda dos próprios livros. Tinham vida social tão intensa, que se desconfiava da autenticidade do que escreviam. Um dado não tão novo, mas que se intensificava nos tempos mais recentes, era a presença, no local, de gente de televisão, gente que começava também a se arriscar na literatura. Seria possível nomear literatura o que escreviam? Havia alguns bons, tinha-se de reconhecer. Mas o número de oportunistas aumentava. Essas pessoas, os bons e os nem tanto, não deixavam de se fazer notar ali. E, por último, avistavam-se os tietes. Vinham com a intenção de conseguir algum autógrafo, alguns traziam o exemplar do livro debaixo de um dos braços, outros pediam autógrafos em guardanapos, ou mesmo em qualquer outro pedaço de papel. Eu, que freqüentava o restaurante de longa data, antes mesmo de estar na moda, sentia um certo desconforto diante de todas aquelas pessoas.
Quando Sílvia chegou, falei:
- Vamos para aquele bar que você gosta. Aqui já não é possível.
- Por que você não falou antes? Me fez vir até aqui para dizer isso?
- Está bem. Vamos ficar um pouco, mas depois vamos a outro lugar, ok?
- Tudo bem - respondeu e pediu ao garçom um chope.
À medida que peças de teatros e shows acabavam, o restaurante recebia mais pessoas: artistas e o público em geral. Para os admiradores de vida social intensa, o lugar era ideal para se estar numa noite de sábado.
O garçom retornou. Serviu-nos com alguma cerimônia. Olhei o líquido dourado e pensei se não teria sido melhor ter pedido uma taça de vinho. Comentei com Silvia. Ela sentenciou:
- Está muito quente pra beber vinho.
Olhei seu rosto de maneira minuciosa. Às vezes, não gostava de suas opiniões, mas, por outro lado, não deixava de admirar o senso prático, o caráter resoluto de sua personalidade. Em alguns momentos, quando mexia na ponta de um guardanapo, ou mesmo procurava na bolsa o maço de cigarros, eu descobria nela traços que reluziam um aspecto de mulher que me atraía bastante. Silvia estava mais para o figurativo do que para o abstrato, mais para a narração do que para o ensaio. Preferia conversas que não demorassem muito, detestava pessoas que se perdiam em explicações. Entediava-se freqüentemente com livros que se estendiam e não diziam muita coisa, segundo ela. Às vezes, eu queria conversar sobre algumas inquietações, alguma dúvida sobre música, literatura ou cinema. Ela, no entanto, não era a pessoa certa para esse tipo de conversa. Ouvia a princípio, mas não emitia opiniões, ou se as proferia não o fazia com facilidade. Sua respiração se tornava pesada, parecia querer dizer algo, mas acabava calada. Sua paixão mesmo era a música, música que pudesse ouvir a letra e cantar. Ali se apresentava, por inteiro, o conhecimento que possuía sobre arte e talvez sobre a própria vida, na música, na boa música, como ela mesma dizia.
- Não sei o que tanto te incomoda nesses caras - disse, virando-se para o salão lotado.
- Não é que me incomodem – rebati -, é que predomina a hipocrisia.
- Como assim? - incitava-me.
- Se eu começar a falar, você vai me censurar, vai dizer que estou sendo desagradável...
- Já sei, você vai dizer que estão vendidos ao mercado, que são comerciantes, não são artistas...
- Você trouxe seu baralho cigano hoje, não é mesmo? Já consegue ler meus pensamentos! - ri na direção dela. Ela também riu, segurou o copo de chope e bebeu mais um pequeno gole.
- Veja só - ela continuava -, se você fosse escritor ou outro tipo de artista, faria o mesmo. Como é que se vai viver? Eles são profissionais.
- A questão não é essa - contra-argumentei. - Sei que eles são profissionais, que precisam viver, mas o que me preocupa é o destino que as coisas estão tomando, principalmente quando o assunto é arte ou cultura.
- Você por acaso vai salvar o mundo, vai ter capacidade de influir no destino que as coisas estão tomando? - soltou a fumaça do cigarro recém aceso, que a princípio se espalhou diante de mim, mas depois tomou direção contrária devido a circulação do ar.
- Você sabe minha opinião sobre este assunto. A arte sempre resistiu, sempre estabeleceu questões; agora vemos essas pessoas produzindo arte como se fosse um grande negócio, um meio fácil de ganhar dinheiro.
Silvia fez um leve movimento com os olhos, pôs-se a observar durante longos segundo um dos cantos da superfície da mesa, até que voltou a falar:
- Como é que você fala mesmo sobre a cultura de massa? Aquele negócio de esclarecimento, manipulação, coisa e tal...
- Aliás, não sou eu que falo, é uma afirmação que vem desde meados do século XX. A cultura de massa não leva ao esclarecimento, mas à manipulação ainda maior...
- Então, você tem respostas para as próprias questões. - cortou Silvia. - Talvez estejamos no auge da indústria cultural. Será que há alguma forma de resistir a isso? Não estou querendo dizer que o artista deve ser vendido ao mercado, mas qual a alternativa para se estar fora disso? Qual? - insistia ela. - A gente vê por aí pessoas que se colocavam à margem, hoje estão inseridas, seguem fórmulas de sucesso, obedecem às regras do jogo.
Silenciei por alguns instantes. Bebi um pouco da cerveja. De repente, um homem dirigiu-se a nossa mesa.
- Conheço você - disse -, já li duas traduções suas, fique com esse convite, não deixe de ir ao lançamento...
Tratava-se de famoso jornalista. Era também escritor. Tinha vários livros publicados. Seu texto, a princípio, era ágil, inovador e sua rotina diária era a redação de um grande jornal. A presença dele me fez refletir sobre o que conversávamos. Dirigi-me a Silvia novamente.
- Este homem que deixou o convite é exemplo do que estou falando. No início, prometia, mas já a partir do segundo livro rendeu-se. Hoje vende muito, na linguagem que usam por aí. Se quiser, pode viver de literatura; digo, de má literatura. Os jornais, a crítica, a indústria cultural, enfim, querem-nos fazer acreditar que ele é um grande autor, mas nunca foi tão reles. Não falo que exista uma fórmula para se vencer "as forças do mercado", mas que é importante levantar algumas questões, estabelecer bases para se fazer algum tipo de reflexão...
- Mas mesmo assim se faz parte do jogo.
- Depende de que jogo - opinei sem deixar de sorrir da própria pilhéria.
Silvia me olhou com seriedade e falou:
- Prefiro não conversar mais sobre isso. Já estou com dor de cabeça. Vamos sair, vamos tomar um pouco de ar. Depois podemos beber mais um pouco em outro lugar. Essa conversa é muito complicada e não vai levar a nada.
- Vamos - concordei.
E para embaralhar ainda mais o assunto afirmei:
- Nada melhor para resolver um impasse do que temperamento de mulher, principalmente se ela for linda...
Beijei-lhe uma das faces.

VIII
Copacabana amanheceu fria. Desci cedo. Ia em direção ao calçadão. Uma mendiga, à esquina da Santa Clara, encolhia-se sob um cobertor esfarrapado. Alguns senhores tentavam vencer o inverno caminhando e vestindo agasalhos esportivos. Quando atravessei a Domingos Ferreira, Antônio gritou em minha direção:
- Não vai querer a Folha?
- Guarda que eu pego depois - respondi sem me deter.
No calçadão, enquanto andava, alguém passou correndo e tocou-me o ombro. Olhei em sua direção. Era Joana. Acenou-me sem interromper a marcha. Deixou no ar as seguintes palavras:
- Me telefona, preciso falar com você.
Segui para o Leme. Precisava caminhar. Olhava os prédios, as outras pessoas, o mar, até que lembrei um sonho. Daquela mesma noite. Caminhava por uma rua remota, talvez próxima à infância. O passeio era calçado por quadrados de cimento cujas intercessões eram preenchidas pela grama. Cultivava-se grama entre blocos de cimento. De onde me surgira aquilo? A cidade, a do sonho, possuía muitas árvores. As construções, enfileiradas, obedeciam à rigidez geométrica. Mondrian. Senti intensa vontade de procurar por aquele lugar, de voltar àquelas ruas. Um carro freou bruscamente em frente ao Meridien. Alguém atravessara distraído. Quase atropelado. Quando retornei, junto à pedra do Leme, um garoto me pediu dinheiro. Sem palavras, fiz gesto de desalento. Agora, regressava. Imprimia ritmo mais veloz à marcha. Alguém passou de bicicleta e me acenou. Correspondi. Mas não o reconheci.
O metrô entrava lentamente na estação Saens Pena. Pelo microfone veio a voz. Avisava que todos deveriam desembarcar. Estação terminal. Quando atingi a superfície, comecei a me arrepender de estar naquele lugar. Chovia fino. As pessoas esbarravam guarda-chuvas. Os carros buzinavam no sinal da General Roca com a Conde de Bonfim. Era o exílio. Um banco substituía o bar aonde meu pai nos levava. Eu e meu irmão. Íamos ao encontro do avô. Tomávamos guaraná e comíamos batata frita de saquinho transparente. Ele, o avô, fazia-nos comer devagar. Queria-nos educados. Devíamos sempre deixar um pouquinho de guaraná no fundo do copo. Enfiei-me por uma galeria que dava passagem à Santo Afonso. A chuva levava as pessoas por ali. Reparei duas adolescentes bem louras. Sorriam e carregavam mochilas. Uma delas comia uma barra de chocolate. Um rapaz de cabelos negros compridos passou e olhou para as duas.
Ao chegar ao outro lado, segui em direção à Antônio Basílio. Naquele trecho, a paisagem da Tijuca muda. Sem o tráfego de ônibus, a rua se estende elegante, com seus prédios ajardinados e luxuosos. Um amigo de escola invadiu-me a mente. Fazia tantos anos. Onde estaria ele? Lembro que tocava violão. Percorri toda a rua. Não mudara muito. Alguns prédios novos, nada mais. No encontro com a José Higino, o Corpo de Bombeiros. Sonhara muitas vezes com um trote sensacional. Toda a guarnição saía em sirenes. Iam em busca de um incêndio de ficção - comecei cedo a carreira -, mas eles nunca me deram crédito. Parei diante do prédio onde eu morara. Havia grades por todos os lados. Um porteiro desconhecido atrás de uma enorme mesa via televisão. Senti-me impelido a chamá-lo pelo interfone. Aproximei-me. Ele me viu. Assustei-me com o som metálico que abriu a porta. O porteiro confundiu-me com algum outro morador. Não entrei. Deixei a porta aberta e segui em frente. Sobre o passeio, o cimento era inteiro. Agora, ia sem destino. De repente, a casa de Ronaldo.
***
- Ela concordou – disse Ronaldo com entusiasmo para, logo em seguida, terminar a frase com desânimo -, mas só se for de carro.
- De carro? - indaguei -, impossível!
De Sandro, a idéia de sair com a Aparecida.
- Vamos falar com ela. Ela topa - dissera.
Ronaldo se encarregara do contato. Mas a exigência de ser de carro nos pegou de surpresa. Eu e Ronaldo concordamos que seria melhor desistir. Sandro, não.
- Tenho uma idéia - falou.
- Espero que não seja outro fiasco - acrescentou Ronaldo.
- Porra, quando foi que eu coloquei vocês numa fria?
- Só num certo jogo do Flamengo. Aquele negócio do bar do Dida...
- Aquilo já passou. E foi uma outra história. Agora estou falando de mulher. Será que vocês não gostam de mulher?
- Gostamos - respondeu Ronaldo -, mas de carro é sacanagem. E quem aqui, por acaso, sabe dirigir?
- Eu - respondeu Sandro.
- Porra, cara, nunca vi você tocar num volante!
- Nunca viu? Dirijo sim. Arranja o carro que me encarrego de dirigir.
Duas horas depois, já tínhamos todo o plano traçado. O carro seria o do pai do Ronaldo. Um fusca 68.
- Porra, cara, se meu pai descobrir ele me mata, tá entendendo? Me mata!
- Não vai descobrir, deixa com a gente.
No dia combinado, nos encontramos às oito e meia da noite. Hora do jornal. Todas as televisões ligadas. Ronaldo já estava de posse das chaves. Tínhamos que empurrar o automóvel, em silêncio, até à rua. Sem que ninguém percebesse. Sandro se posicionou ao volante. Deu-nos o sinal.
- Agora eu quero ver o que esse maluco vai fazer - disse entre os dentes Ronaldo, enquanto tentávamos movimentar o veículo.
Após algum esforço, o carro começou a deslizar garagem afora. Ao atingir a rua, Ronaldo gritou em surdina para mim:
- Fecha o portão! Cuidado pra não bater!
Quando dobramos à Conde de Bonfim, sentimo-nos aliviados. Ou melhor, eu e Sandro. Ronaldo morria de medo.
- Onde você combinou com ela? - perguntou Sandro, agarrado ao volante.
Na São Miguel.
- Porra, cara, na São Miguel?
Naquele tempo, a São Miguel não era esse terror todo de hoje, mas mesmo assim preocupava.
- Só falta ela não estar lá - arrisquei.
Os dois me olharam a contragosto. Ronaldo assustou-se e se dirigiu a Sandro.
- Olha pra frente, cuidado! - alguém atravessara diante do automóvel.
Contornamos a Xavier de Brito. Subimos a segunda rua à esquerda. Lá em cima, havia uma quebrada, também para a esquerda. Sandro fez a curva. Depois vem um tipo de curva do s, em descida. Ronaldo gritou:
- Diminui, porra, você tá voando.
- Deixa comigo - disse Sandro -, isso é coisa pra profissional.
- E desde quando você é profissional?
Aparecida estava no local combinado. Ainda nos sacaneou:
- Quase deixo vocês na mão. Pensei que não vinham mais. Tem um cara aí de carro que já deu duas voltas. Tá me enchendo o saco. Me convidou para ir à Barra.
Naquele tempo a Barra era deserta e desabitada, lugar ideal para namorar às escondidas.
Ela entrou. Sentou-se a meu lado. Permanecemos em silêncio. Sandro deu a partida.
- Vamos lá, garotada - continuou nos sacaneando -, como é?, vão ficar aí parados?
Olhei para Ronaldo. Ele fez um movimento com a cabeça como que me mandando atacar. Virou para frente. Eu agarrei a mulher. Ela tinha o corpo quente. Viera de vestido. Ficamos atracados no banco traseiro, enquanto Sandro fazia as curvas do Alto da Boa Vista. Era dezembro de 1973.
Entramos pela Floresta da Tijuca. Paramos num lugar ermo e distante. Aparecida estava nua. Ronaldo passou para o banco de trás.
- Agora é a minha vez - falou.
Saí do carro e pedi um cigarro a Sandro. Acendi. Dei um trago e tossi duas vezes. Virei para ele e falei:
- Porra, que mata-rato!
- Viu como dirijo bem? - falava orgulhoso de si mesmo.
- Fica com o volante, que eu fico com a mulher - sugeri.
- Porra, assim também não!
Ronaldo continuava dentro do carro com Aparecida.
Após um quarto de hora, a vez era de Sandro. Mas quando ele entrou e se agarrou a ela, algo nos fez crer que começaríamos a ter problemas. Vimos ao longe um carro que se aproximava. Parecia ter uma lanterna na capota.
- A polícia! - gritei, mas já era tarde. Rapidamente eles se aproximaram e nos bloquearam a passagem. Sandro e Aparecida, dentro do carro, tentavam se vestir. Um dos policiais avançou sobre nós.
- Estamos fodidos - disse Ronaldo.
Éramos menores. Não tínhamos documentos. Sandro, apesar da habilidade no volante, não possuía habilitação.
Quando nos dávamos por perdidos, veio a voz lá de dentro.
- Deixa que eu converso com eles.
Aparecida e os dois policiais desapareceram na escuridão vizinha. O vento frio da noite nos gelava ainda mais. Permanecemos calados e assustados. Ela demorou a voltar.
Quando retornou, veio sozinha. Os dois homens entraram na viatura e se foram sem nos incomodar. Ouvimos a voz dela.
- Me emprestem um pano ou algo parecido?
Ronaldo abriu o porta-luvas e tirou uma flanela que o pai dele usava para lustrar a carroceria. Aparecida se abaixou, limpou-se. Partimos sem mais palavras. Paramos para deixar a mulher no mesmo lugar onde a encontramos. Piscou-nos um dos olhos.
- Como é, não vão pagar?
Sandro e eu olhamos para Ronaldo.
- Pagar? - surpreendemo-nos quase juntos.
- Você não nos falou sobre isso – virei-me para Ronaldo.
- Porra, como vamos fazer agora? - apavorou-se Sandro.
- Se vocês não pagarem, já sabem o que vai acontecer - a mulher encerrou suas palavras olhando na direção do morro.
Ronaldo tirou duas notas amassadas no bolso. Deu a ela.
- Não foi esse o combinado. Mas vou liberar vocês. Amanhã, a essa hora, venham trazer o resto. Sei onde vocês moram.
Sandro deu a partida novamente.
Entramos na nossa rua. Tremenda confusão. O pai de Ronaldo chamara a polícia: tivera o carro roubado.
***
Olhei para a casa mais uma vez. Os antigos moradores provavelmente perderam-se por outros bairros, outras cidades. Quis perguntar por eles. Não tive coragem. Viera impelido pelo passado. O passado estava morto. Precisava esquecê-lo.
Quando retornei, apanhei a Folha com o Antônio. O frio diminuíra. O sol arriscava suas fichas.

IX
- Joana? Como vai?
- Tudo bem. Pedi que me telefonasse...
- E o que você manda?
- Quero convidar você para o lançamento de um livro.
- Mais um?
- Júlio, estou convidando...
- Tudo bem, qual a data?
- Na próxima terça.
- Onde?
- Na Argumento.
- Tudo bem, acho que dá pra ir. O livro é sobre o quê?
- Poesia.
- Poesia?
- É, e não vai debochar de novo. O cara é bom. Vai fazer história.
- Pessoa também fez.
- Júlio, você vai mesmo?
- Vou.
- Mas promete que não vai fazer nenhuma provocação?
- Eu já deixei você em má situação alguma vez?
- Não, mas você é muito crítico...
- Vou comprar o livro e vou ler em voz alta alguns poemas.
- Não precisa chegar a tanto. Acho que eles vão declamar. Dizem que vai o Gullar.
- Ele já leu o livro antes?
- Não sei, Júlio, mas deve ter lido. Não ia colocar o nome às cegas...
- Qual o nome do autor?
- Que autor?
- O do livro que será lançado.
- João.
- João de quê?
- Que importa, Júlio? Sei que o primeiro nome é João, e é meu amigo.
- Espero que não seja mais um Cabral.
- Júlio ...
- Não me leve a mal.
- Só não vou levar você a mal se nós marcarmos um encontro.
- Mas você já não acaba de marcar?
- Antes, Júlio. Quero encontrar você neste final de semana.
- Tudo bem.
- E a Sílvia?
- Dou um jeito.
- Me pega em casa sexta, às nove?
- Pego.
- Então está marcado?
- Está.
- Um beijo.
- Outro.
- Tchau.
***
- O carro deu problema. Quase perdi a hora, Joana.
- O que houve?
- Ainda não sei. Demorou a pegar. Amanhã vou ver.
- Será que ele agüenta hoje?
- Não sei. Se enguiçar, pegamos um táxi. Para onde vamos?
- Você que sabe.
- Não gosto de mulher indecisa.
- Vai ter que gostar. Não vou deixar de ser por você...
- Está bem. Vamos ao Bar Luiz. Uma viagem ao século XIX.
- Vamos. Lá tem aquele chope imenso.
- Isso mesmo.
- E os garçons são do tempo da inauguração.
- São.
- E hoje não falemos de literatura.
- Isso, sem literatura.
- Claro...
- Seremos duas pessoas normais.
- E não somos?
- Claro que não.
- Então como faremos?
- Serei um homem querendo comer uma mulher.
- Puxa, Júlio, que baixaria!
- Baixaria é escrever para ganhar prêmios.
- Cuidado, Júlio.
- Estou guiando devagar.
- Não é isso.
- É o que, Joana?
- A literatura.
- Esqueci.
- Então tá. Um homem querendo comer uma mulher. Será que não é ela que vai comê-lo?
- Pode ser. Até concordo.
- Não gostei do até.
- Por quê?
- Preconceito.
- Também concordo! Veja: Bar Luiz, rua da Carioca. Um homem e uma mulher. Final do século XIX. Machado ainda vive. Mas ele não bebe.
- Cuidado, Júlio!
- Já saímos do túnel, Joana.
- Não é isso, Júlio.
- O quê, então?
- A literatura....

X
No bar Luiz
- Frustrado!
- Frustrado é o caralho!
- Júlio, não faça isso!
- Me solta, Joana, me solta que eu vou arrebentar esse cara!
- Filho da puta!
- Fala quem é filho da puta, fala!
- Júlio, olha o que você tá fazendo, você vai matar o cara, solta ele, Júlio, solta!
- Frustrado, você é um frustrado! Você não consegue escrever uma linha...
- Júlio, não faça isso! Ele vai morrer! Por favor, vamos parar! Pessoal, ajudem aqui! Ajudem a separar esses dois!
- Veado.
- Veado é o caralho!
- Pára Júlio, por favor, pára de cuspir na cara dele.
- Isso mesmo levem esse veado daqui! Aqui não é lugar de bicha!
- Frustrado! Frustrado!
- Frustrado é o caralho. Quanto você pagou por aquele prêmio, babaca?
- Você fala isso porque nunca conseguiu nada na vida. Eu sou um vencedor. Você só faz tradução de livro b. Otário! Pode me bater, você nunca vai escrever como eu!
- Falso poeta! A literatura nunca foi tão reles, tão bem comportada! Você é um deles. Escrevem como se jogasse bingo. Fazem uma grande aposta.
- Escreva você então!
- Eu não escrevo, eu bato. Dou porrada!
- Júlio, volta aqui, ele já tá todo ensangüentado. Para com isso. Seu Alfredo, ajuda aqui, por favor!
- Calma, Joana. Júlio, pense bem, segura a barra, essa briga não vale a pena! Sai fora você, Armando! Deixa que eu seguro ele. Vá embora. Já basta por hoje!
- Eu vou embora, mas vou dar queixa, viu? Vou dar queixa. Dessa vez isso não vai ficar assim.
- Dê a queixa! Me solta, seu Alfredo, me solta que esse cara merece apanhar!
- Júlio, vamos embora. Tá todo mundo olhando pra gente. Não vai demorar vem a polícia. Vamos, Júlio!
- É melhor vocês irem, Joana. Vou ver se limpo a barra do Júlio. Ele tá nervoso. Vão! Amanhã a gente vê como fica essa situação.

XI
Silvia estava sentada no sofá de dois lugares, na pequena sala de seu apartamento. Cuidava das unhas da mão. Ouvia música. O som vinha do pequeno aparelho, situado a suas costas. Mergulhava delicadamente a extremidade do pequeno pincel no vidro de esmalte vermelho, levava-o até a ponta de um dos dedos com todo apuro. Ficava feliz ao olhar cada unha pintada. Quando se voltou à mão direita, sentiu alguma dificuldade. Um dos poucos e desconfortáveis problemas que enfrentava por ser destra. Mas insistia. Terminada a tarefa, sempre chegava à conclusão de que fora sua obra-prima. Sentia-se, então, cansada. Queria dormir.
Sobre a cama, sempre de casal (era só para ela, partidária do conforto), havia um livro. Estava com o marcador saliente. Indicava que ela não ultrapassara a metade do volume. A capa alaranjada se destacava sobre o edredom de cores suaves. O livro parecia fazer parte da decoração do quarto. Mas Sílvia lia. Lia sempre. Esquecia-se. Mas nada de leituras difíceis, acadêmicas; divertia-se.
Precisava de alguém? Dizia que se bastava. O apartamento à meia luz, a música suave, o livro próximo às mãos; era tudo que desejava. Se alguém se dispusesse a amá-la, deveria ter cuidado. Sílvia jamais amara alguém. Poderia até ter um namorado ocasional, conviver com ele durante certo tempo, mas amar, não amava. Dizia que uma vez amara. Mas não era verdade. "Ama ao próximo como a ti mesmo". Se ela algum dia se enamorasse por alguém, seria amor verdadeiro. Porque amava a si própria intensamente.
Silvia levantou-se. Sentia sede. Encheu um copo com água. Bebeu até a metade, vagarosa. Depois o pousou sobre a mesa, sobre um pequeno guardanapo de papel. Lembrou que não almoçara. Como lhe podia acontecer tais coisas? Esquecer de almoçar. Por isso sempre fora magra. Quando se lembrava que precisava alimentar-se, deparava-se com as primeiras luzes da noite. Fumava. Muito.
Sobre a mesa de TV, (a TV permanecia dias e dias desligada) havia um pequeno bloco de anotações. Descobriu um lembrete. Escrevera-o no dia anterior. Devia comprar sabonete.
Houve um dia em que se trancara em casa por tempo indefinido. Ficara com as cortinas cerradas. Luz, somente a do dia, filtrada pelo forro cinzento da cortina. Silêncio. A vida exterior chegava em sol menor. Através dos ruídos da rua, de alguma voz mais alta, do murmúrio coletivo do bairro. Quando anoitecia, os sons eletrônicos: jornais distantes que prenunciavam o fim do mundo. Naqueles dias, nem o telefone atendera. Cortara relações com o mundo exterior. Não se alimentara. Bebera água. Água apenas. Permanecera deitada durante quase todo o tempo. Olhava um livro. Mas nem com ele se comprometia. Na terceira noite de reclusão espontânea, dormia. Sonhou então que o telefone tocava. Acordou. Ele tocava de verdade. Atendeu. Ana, uma amiga de adolescência que estudara com ela e se tornara jornalista, suicidara-se.
Silvia olhou o relógio. Sete horas da noite. Escreveu mais algumas palavras no mesmo bilhete onde lera sabonete. Abriu a bolsa, tomou nas mãos o maço de cigarros. Tentou acender um, mas o isqueiro falhava. Tentou seguidas vezes. Deu alguns passos até a cozinha. Acendeu o fogão, aproximou-o do fogo. Sorveu, ávida, o primeiro trago. Fechou os olhos durante alguns segundos. Apagou a luz e saiu.
Na rua, a noite já se estabelecera. Mas ainda havia muito movimento. Reparou uma mulher que puxava uma criança pelo braço. O pequeno vinha quase se arrastando. Ele olhou para o lado e a encarou. A pequena face do menino se estampou a Silvia como alguém assustado, os dois olhinhos arregalados. Talvez tentava enxergar nela algo misterioso. A criança seguiu agarrada à mãe, mas só tirou os olhos de Silvia quando não pode mais torcer o pescoço.
Sílvia entrou no pequeno mercado. Procurou alguma verdura nas primeiras prateleiras. Depois lembrou que precisava comprar pão. Pão integral, era melhor. Não esqueceria o sabonete. Ah, um isqueiro. Um isqueiro para acender os cigarros.
Pagou e saiu. Carregava uma pequena sacola.
O rosto da moça do caixa demorou a desaparecer de sua mente. Gente simples. Gente que mora longe. Talvez tivesse o marido desempregado, ou quem sabe, trabalhador temporário, autônomo, como ele mesmo diria. Alguém que, com ar de posse e sempre com alguma reclamação, esperava a mulher, olhava-a impingindo temor. Talvez tivessem um filho. Ela passava antes na casa de algum parente para pegá-lo. Esperava ansioso pela mãe. Apesar de tudo, a mulher era feliz. Tinha seu homem, tinha o filho, um emprego. E uma casa para morar. Mesmo que bem longe. Não havia tempo para pensar em outras dificuldades. A vida a excitava no calor mágico de algumas noites. Algo vibrava dentro dela, da mulher do supermercado, que a levava sempre adiante. Identificava-se com os outros. Pertencia, como os outros, ao mundo. Era feliz.
Silvia chegou à portaria do prédio. Voltou-se para rua. Surpreendia-se.
Naquela noite, sairia com Júlio. Tinham marcado às nove. Ainda havia tempo.
Abriu a porta do apartamento, atirou-se no mesmo sofá onde estivera a fazer as unhas. A caminhada até o mercado a deixara exausta. Estava realmente fora de forma, pensou. Tentara um dia manter-se atleta, mas...
A vida transcorre, na maioria das vezes, com sutileza. Sílvia encontrava sentido nas pequenas coisas. Conhecia pessoas que teimavam ir em busca do grandioso, do surpreendente, mas acreditava que o dia-a-dia, se vivido com delicadeza, era de um tamanho imensurável. Para ela, os pequenos afazeres eram o surpreendente. Queria andar à noite, respirar o ar ainda quente, sentar à mesa de um restaurante, beber uma ou duas taças de vinho. No dia seguinte, continuaria a leitura, descobriria uma música nova, entraria numa loja que não reparara, apesar de passar sempre naquela rua.
O telefone a acordou.
- Júlio? Tudo bem. Já vou descer.

XII
- Você assistiu à peça, Joana? Reparou os cenários? São meus.
- Assisti. Gostei muito, Rony. Combina muito com o tema, com o argumento. Você está de parabéns.
Jaime foi até o bar pegar uma garrafa de vinho. O apartamento em que estavam era em Ipanema. De repente, Joana mudou o destino da conversa.
- Vocês moram num apartamento muito bonito.
Olhou os quadro, as soluções arquitetônicas modernas e práticas, as cores em tom suave. Voltou-se a Rony e continuou:
- Vocês têm bom gosto. É bom viver em meio à arte. Poucos tem esse privilégio.
- Na verdade, viver em meio à arte, como você diz, e viver de arte são coisas bem difíceis.
- Eu sei, Rony, você precisa estar sempre atrás de trabalho, ou de alguém que precise de cenógrafo. Muitos grupos ou artistas já têm esse tipo de profissional, não é mesmo? Já possuem a pessoa certa, trabalham com ela há anos...
- Tenho com quem trabalhar, tenho como sobreviver, basta que ele esteja acertando. Se alguma coisa começa a não dar certo, o trabalho de todos torna-se arriscado. Se o artista naufraga, quem está com ele afunda também.
- Ouvi falar que você está fazendo cinema, é verdade?
- Estamos começando. Eu e o Jaime. É uma área nova para nós. No cinema não é como no teatro. Tudo acontece muito rápido. E nem sempre seu trabalho aparece. Às vezes, aquilo de que você mais gostou é cortado na hora da montagem.
- Mas ganha-se, não?
- Depende. Hoje há uma série de artifícios em relação a patrocínio. Você precisa saber com quem está trabalhando. O que não se pode é trabalhar de graça. É preciso um contrato, necessita-se ter uma firma, assinar como pessoa jurídica, há todo um ritual burocrático. Torna-se mais um burocrata do que um artista.
- Você já pensou se Van Gogh precisasse vender seus quadros?
Todos riram da solução de Joana para o curto diálogo. Viera a convite de Rony. Esperavam pessoas para uma pequena comemoração devido ao sucesso da peça em que ele participava.
Em determinado momento, foi Jaime que fez a Joana uma pergunta:
- Como vai seu amigo?
- Que amigo?
- O Júlio.
- Tenho encontrado com ele vez ou outra. Mas acho que não anda nada bem.
- Por quê?
- Tem arranjado algumas encrencas.
- Como assim?
- Um dias desses estávamos no Bar Luiz. O Armando apareceu por lá. Foi tomar satisfações sobre uma resenha que o Júlio escreveu sobre o livro de poemas que acabara de publicar. A resenha fazia crítica feroz ao livro. A matéria nem chegou a ser publicada, mas o Armando soube. Acabaram brigando. Foi um vexame. O Júlio acertou o poeta em cheio. Ele até registrou queixa. Tá dando o maior rolo.
- Briga por literatura? Que coisa mais salutar... - Rony meteu-se na conversa ao ouvir a história que Joana contava.
- Salutar nada. Aquilo foi um caos, um vexame.
- Joana, eu acho muito saudável que ocorra no atual momento briga por literatura. O clima anda muito morno. Não há sequer uma polêmica nos dias de hoje. Não se vê discussão conceitual. Há uma espécie de não me toques e coisa e tal. Todos parecem ser amigos. Ninguém deseja desagradar o outro. Fazem parte de uma grande confraria - disse Rony.
- Se você pensa assim, dê a mão ao Júlio. Ele fala exatamente isso.
- Taí, um cara autêntico! - elogiou Rony.
- Joana - disse Jaime -, eu só conheço o Júlio de vista, mas se ele é assim como vocês falam, deve ser alguém bastante interessante..
- Ele é legal, é interessante. Mas essas brigas não vão levar a nada. E amanhã ou depois ele nem vai ter onde trabalhar.
- Por que você pensa assim? - a pergunta foi de Jaime.
- Porque os artigos dele nunca são publicados. Ele só consegue fazer traduções.
- E ele não é um bom tradutor?
- Claro que é, mas esse ramo também está congestionado e não é bom ele arranjar confusão, ou tanta confusão como eu mesma acho.
- Aí vem mais alguém – disse Rony.
Foi à porta e a abriu. Um casal de amigos chegava. Joana os conhecia. Eles se aproximaram e cumprimentaram os três. Rony serviu a ambos duas taças de vinho e trouxe da cozinha uma tábua de queijos.
- Não se incomode – disse o rapaz.
- Obrigada – disse delicadamente a mulher segurando a taça e a levantando em sinal de saudação.
Rony, após acomodar os recém chegados, voltou a tocar no assunto anterior.
- Alguém brigar por causa de literatura, que sensacional!
- Como é? – indagou surpreso o rapaz que não ouvira a conversa desde o início.
Rony fez ao casal um pequeno resumo do que ouvira até ali.
- Vejam só, todos são amigos, todos querem agradar, querem vender os próprios livros. Não há ninguém que tenha coragem para dizer que muitos abriram mão de seus princípios para se tornarem comerciantes, no sentido mais vil que essa palavra possa ter – voltou à carga Rony.
- Comerciantes? Como assim – indagou a mulher.
- Arte é transgressão. Eu concordo com o Júlio. Não há quem discuta as inquietações estéticas ou ideológicas da atualidade - expôs Rony.
- Poucos estão interessados nisso – afirmou Jaime.
- Mas é preciso – continuou Rony -, quando faço um cenário, desejo buscar sempre o novo, mas, na maioria das vezes, não tenho liberdade para isso. Caso o faça, o diretor me pede que suavize aqui e ali, que estou inventando muito, que a peça é para o grande público e que ninguém vai entender aquilo. Conclusão: muda-se o cenário e assunto encerrado.
- Mas você pode discutir essas questões no âmbito acadêmico... - insinuou o rapaz.
- Posso, mas fica somente na discussão. O Júlio quer levar o debate para além do texto literário, para o público, para as páginas dos jornais. Nota-se, porém, que não há quem queira enfrentar seus pares. Parece que todos devem favores, uns aos outros.
- O Júlio agrediu fisicamente o Armando, machucou-o seriamente. Não posso concordar com isso – afirmou Joana.
- A ação do Júlio foi metafórica – insinuou Rony -, ele quis mostrar que a arte não pode acomodar-se. Acredito que tenha sido isso. Conheço ele, é pessoa extremamente sensível.
- Eu acho - continuou Joana - que essa discussão pode acontecer civilizadamente. Mesmo que o Júlio diga que estão todos acomodados, isso precisa acontecer de maneira escrita e em debates sobre literatura, não como ocorreu. Uma briga de bar...
- Você quer dizer que uma briga de bar macula a literatura?
- Não, Rony – assegurou Joana -, eu nem entendo muito bem sobre isso, acho que é preciso educação e cavalheirismo.
- Não sei, Joana, estamos num tempo estranho. Todos querem vender, poucos querem pensar. Será também o fim do pensamento? Pode-se notar que - continuava Rony - na história da arte sempre houve a busca pelo novo. Mas estamos, na verdade, na era da repetição, da mesmice. Dizem que a arte, de modo geral, é o único local onde a subversão é permitida. Onde a desordem é instaurada. Mas hoje há procura pelo estrelismo, pelo preciosismo, pela expressão adequada, principalmente na literatura.
- A transgressão se dá na obra, não na vida... - falou Joana.
- Não é isso, Joana. Atualmente a transgressão não se dá nem na obra. Estamos num tempo em que os escritores são objetos de culto, não as obras. Se procurarmos na atualidade por algum tipo de vanguarda, esta será dos gregos da antigüidade - concluiu com sarcasmo Rony.
- Aí eu discordo - intercedeu Jaime -, você está esquecendo os paulistas.
- Que paulistas?
- Serafim, Miramar...
- Poesia é desordem - falou em forma de bordão o rapaz que chegara com a moça; e acabou por concluir: - desde que me abram as portas dessa ordem!
Todos riram e mergulharam em mais uma garrafa de vinho.

XIII
Joana comia um sanduíche no Mc Donald’s. Não costumava freqüentar o local nem gostava dali, mas era questão de emergência. O dia transcorrera sem tropeços, já passavam das dez da noite, não queria chegar em casa com fome e descobrir que não havia coisa alguma na geladeira. Carregava na bolsa um pequeno fichário com anotações sobre o último trabalho. Fazia traduções para cinema. Isto é, traduzia diálogos que se tornavam legendas. Aquele trabalho, a uma pessoa comum, podia parecer atrativo. A ela, porém, tornara-se extremamente banal, devido ao grande número de filmes de baixa qualidade que as distribuidoras encomendavam. Tomou o resto do refrigerante já de pé, pronta para partir.
Após alguns instantes, caminhava na Nossa Senhora de Copacabana, ia para casa.
Olhou a caixa de correio, não encontrou correspondência. Quando entrou, reparou que a luz da secretária piscava. Apertou a tecla com a intenção de ouvir as mensagens e aproveitou para estirar-se no pequeno estofado, ainda de posse da bolsa e do livro que trazia em uma das mãos. Dentre os recados, não descartou o de Marcelo, velho amigo que morava em São Paulo; dizia estar no Rio a serviço da editora e que desejava marcar um encontro, queria conversar a respeito de um trabalho incumbido a ele, acreditava que poderia ajudá-lo. Joana achou interessante a possibilidade de encontrar alguém que não via de longa data. Pensou em ligar imediatamente, mas depois achou melhor esperar o dia seguinte. Ouviu outra ligação. Era silenciosa. Alguém esperara a secretária atender, permanecera longamente junto ao aparelho, mas nada gravara, ouvia-se apenas sua leve respiração. Talvez fosse Júlio, mas por que não falara?
Joana levantou-se, deixou a bolsa e o livro sobre o local onde deitara e caminhou preguiçosa até o banheiro. Abriu a torneira e pôs-se a lavar o rosto. Quando acabou, olhou-se no espelho. Sua face molhada reluzia. Algumas gotas escorriam-lhe. Tomou a pequena toalha e tocou a pele com suavidade. Sentia calor. Entrou no quarto e ligou o ar-condicionado. Enquanto esperava o local esfriar, tentou ordenar as tarefas que faria pela manhã. Lembrou que não poderia deixar de correr no calçadão. Agora que conseguira superar sua própria marca, precisava a todo custo manter-se em forma. Quando ainda perdia-se em tais pensamentos, o telefone soou. Levantou-se e o atendeu após o terceiro toque. Era Marcelo.
- Joana? Tudo bem? Tenho-te procurado.
- Tudo bem, acabei de ouvir seu recado, ia ligar para você amanhã. Achei que estava tarde.
- Tens trabalhado muito?
- Mais ou menos. E a vida em São Paulo?
- Não é como aqui no Rio, mas dá para se viver.
- O que você veio fazer aqui na cidade?
- É sobre isso que eu desejo-te falar. Trabalho para uma editora. Preciso escrever sobre a cidade. Como estudamos juntos, sempre fomos amigos, resolvi procurar-te. És a pessoa certa para me dar algumas informações.
- Olha que São Paulo é a terra do dinheiro, vou cobrar caro, viu?
- Há, há, Joana, não sabia que te tinhas tornado consultora.
- Não é o que você precisa?
- É sério o que estás falando?
- Brincadeira. A gente se encontra, você marca e conversamos.
Marcaram encontro para o dia seguinte, depois das nove da noite. O local era a Letras e Expressões, em Ipanema. Marcelo ficou satisfeito pelo encontro se dar numa livraria. Sempre admirara os modos cultos dos cariocas. Gostam desses lugares para conversar.
Joana, depois de desligar, deitou-se e apoiou a cabeça na almofada que ficava sobre a cama. Tomou nas mãos o livro de poemas que carregara durante boa parte do dia. O autor era um amigo. O livro fora lançado há duas semanas. Voltou a reler alguns poemas. Júlio lhe dissera que ali não havia nada de novo, apesar de os poemas serem bem construídos e apresentar imagens fortes. O importante é que ela, Joana, gostara. Às vezes, elogiavam algum livro novo, ela lia e não conseguia concordar com as opiniões gerais. Aquele, porém, segundo ela, era bom, e despertava em cheio seus sentimentos.
***
A Visconde de Pirajá à noite é uma rua interessante. O tráfego é intenso, mas as calçadas largas permitem o caminhar despreocupado e a apreciação das vitrines das diversas lojas. Dentre o comércio local, encontram-se as livrarias. São quatro ou cinco numa distância não muito longa. E sempre bem freqüentadas Dizem que o público leitor carioca se encontra na zona sul da cidade e que Ipanema e Leblon são bairros onde a compra de livros acontece quase como no primeiro mundo. Segundo os habitantes locais, os dois bairros são de primeiro mundo. O amigo paulista já folheara alguns livros e revistas, quando Joana cruzou a porta da livraria. Uma quantidade grande de leitores e curiosos compunham a cena.
Joana beijou Marcelo e falou:
- Puxa, você está diferente, quase não o reconheço.
- E tu continuas linda - ele aproveitou para elogiá-la.
Ela cumprimentou alguns funcionários, que eram seus velhos conhecidos, e apontou a escada. Foram para o café, no segundo andar. Marcelo não conhecia o local e parecia admirado.
- Em São Paulo, vocês devem ter locais semelhantes ou melhores, me surpreende que você esteja tão interessado assim.
- Lá há lugares bons, mas somente vocês, com esse jeito tão peculiar, conseguem dar colorido todo especial que não existe em outros locais.
- Veja bem, Marcelo, você não veio aqui pra me sacanear...
Ele ainda era jovem - apesar de estar em torno dos quarenta anos e ser gordo. Olhou para Joana como que surpreso e ofendido:
- Claro que não, nunca falei tão sério. E não me lembro desta livraria na época em que vivi aqui na cidade.
- Está bem, peço desculpas - disse Joana.
Marcelo olhou o cardápio demoradamente. Parecia deslumbrado. Mostrava-se muito contagiado pelos pequenos arranjos alimentares enumerados naquelas páginas. Olhou a carta de bebidas.
- Servem meia garra de vinho, que bom!
Chamou o garçom e disse o que desejava. Joana pediu café com leite e algumas torradas.
- Fala, então, Marcelo. Qual é a história?
- Tu sabes, não é mesmo? Tenho dois livros publicados. A editora quer lançar uma coletânea. Obra de encomenda, vários autores. Recebi a incumbência de escrever um conto ambientado aqui na cidade.
- É mesmo? Que legal! Então você veio com tudo pago pela editora?
- Vim.
- Está no Othon ou no Copacabana Palace?
- Que isso? Não dá pra tanto. Estou num hotel pequeno, no Flamengo. Nada de gastos excessivos, não é coisa de governo.
- Há, há! Essa é boa, coisa de governo, gostei. Realmente, o governo gasta demais.
- Acho que tu podes-me ajudar. Não conheço a cidade o suficiente para escrever uma história ambientada aqui. Na época da faculdade, nós saíamos muito, lembras? Mas o tempo passou, e acho que, naquela época, freqüentávamos sempre os mesmos lugares, não?
- Sobre o que você deseja escrever?
- Ainda não sei ao certo. O Rio é um local fascinante para muitas histórias.
- Espero que seja uma história legal.
- Vai ser, com certeza.
- Olha, Marcelo, nada de traficantes e tiroteios. Aqui já não agüentamos mais esse assunto.
- Queres-me ditar o tema? Preciso de ajuda apenas a respeito do ambiente. O crime e a violência é a realidade, não?
- Nem tanto. Acho que para escrever sobre isso, você poderia ter ficado em São Paulo.
- Mas o editor quer uma história ambientada no Rio. Sobre o assunto, pensei em outra coisa.
O garçom chegara com o vinho. Abriu a garrafa, colocou uma pequena quantidade na taça. Marcelo experimentou e aprovou a bebida. O garçom completou a taça.
- Na verdade, eu desejo escrever uma história de amor.
- De amor?
- Isso, de amor.
- Nada de tiros nem cocaína?
- Não.
- Então concordo em ajudar-te – forçou Joana a pronúncia, o que não passou despercebido ao escritor.
- Você anda romântica, hein? Pensei que vocês daqui se tivessem tornado intelectuais em excesso.
- Que nada, Marcelo. Nunca se amou tanto nesta cidade. Todos, de uma forma ou de outra, amam. E amam muito!

XIV
- Júlio, espere aí!
Joana jogava vôlei na praia, pediu para que alguém ocupasse seu lugar e correu até o calçadão, onde eu andava.
- Você hoje não pode deixar de encontrar comigo, por favor - foi logo dizendo.
- Assim, em cima da hora, hoje? Não sei se vai dar.
- Júlio, é importante. Tem um amigo meu aqui no Rio. Ele é de São Paulo. Estudou comigo. Acho que já falei com você sobre ele. Veio ao Rio escrever um conto. É escritor.
- Porra, Joana, escritor? Já não agüento esses caras.
- Mas ele é legal. Quer que a gente ouça o conto que ele escreveu. É para a 34, vai sair numa coletânea. Você certamente já leu algum livro dele. Encontra comigo, vai? Será uma noite boa.
- E onde você marcou?
- Na Letras e Expressões, de Ipanema, ele adorou o lugar.
Aproveitei para olhar Joana da cabeça aos pés. Ela vestia apenas um minúsculo biquíni. Estava mais bonita do que nunca. Voltei-me novamente a ela e afirmei:
- Vou.
- É, seu engraçadinho! Já sei quais são suas intenções, mas não tem problema, você sabe que gosto de você. Depois, se você quiser, pode ir lá pra casa. Mas nada de bebedeira, viu?
- Você sabe que eu não bebo.
- Sei, não bebe outra coisa além de genebra gelada.
Rimos. Ela estava toda suada e ainda ofegante. Mesmo assim a abracei e beijei-lhe a boca. Ela permaneceu agarrada a mim durante alguns segundos. Quando me soltou, sorriu e passou uma das mãos na minha cabeça. Voltou correndo para junto da rede.
- Joana, a que horas? - gritei.
- Me pega às nove.
***
Chegamos adiantados ao café da livraria. Pedi um expresso, e ela, café com leite. Era quinta-feira, mesmo assim, àquela hora, quase todas as outras mesas mantinham-se ocupadas. Marcelo não demorou a chegar. Joana levantou-se e o beijou no rosto. A seguir, apresentou-me.
- Fico contente por saber que alguém de São Paulo vem ao Rio escrever sobre a cidade - eu disse amistosamente.
- O prazer é todo meu. A estadia nesta cidade foi muito boa e interessante. Joana me levou a muitos lugares e creio que consegui cumprir minha tarefa.
- Joana me disse que você vai ler o conto para nós.
- Vou, mas me deixa beber alguma coisa. Preciso tomar coragem.
- Já li um de seus livros - falou Joana -, creio que você nada teme. Parece não dever nada a ninguém.
- Calma, minha querida, literatura é literatura, a vida real é um pouco mais complexa.
- Se você disser que o castelo é de Hamlet, ele se torna fabuloso - interferi sem que Joana entendesse.
Marcelo riu. Entendeu a pilhéria. Na verdade, eu não o dissera em tom de deboche. O escritor aproveitou a proximidade do garçom para pedir uma taça de vinho.
- Você vai embora amanhã? Por que não fica mais um pouco? - perguntou Joana.
- Vontade eu tenho, mas não posso. Pretendo voltar ao Rio assim que tiver uma folga. Tenho compromisso depois de amanhã em São Paulo.
- Um escritor atualmente tem muitos compromissos... - atalhei.
- Exatamente. Vocês sabem que vivo de minha profissão. Sempre há alguma encomenda da editora. Apreciação de originais, resenhas para jornais, palestra em alguma universidade.
- A ocupação é tanta que quase não há tempo para escrever, não é mesmo? - insisti.
- Exato, o escritor atual precisa ter boa organização, caso contrário ocorre exatamente isso.
- Eu acho que sempre foi assim - interferiu Joana. - Já conversei sobre isso com Júlio várias vezes. O escritor recluso, que vive produzindo histórias fantásticas como se fosse um ser misterioso, não mais existe. O profissional precisa aproveitar todas as frentes.
- Sabe, Marcelo - reiniciei -, dizem que aqui no Rio, atualmente, há um escritor em cada esquina.
Marcelo riu. Reparou que o garçom chegava com a taça de vinho. Depois de colocada sobre a mesa, ele a levantou saudando-nos e tomou o primeiro gole. Sua face demonstrou aprovação pela bebida.
Acabei de tomar o café. Pedi uma água com gás e dei prosseguimento ao que falara:
- É verdade. Um escritor em cada esquina. Você está rindo? Quando nós sairmos daqui, podemos fazer uma aposta. Vamos até a próxima transversal, perguntemos a no mínimo três pessoas, logo descobriremos outro escritor, você verá.
Marcelo ria com gosto.
- Vocês cariocas são muito engraçados. Tudo é motivo para piada.
- Já conheço a continuação do que Júlio está falando. Por favor, deixa que eu termino - agora era a vez de Joana que falava com ar divertido. - Como é mesmo? Ah, já sei: Em cada esquina há um escritor, mas estão todos embriagados, nos bares. Repare, Marcelo, aqui no Rio quase todos os bares ficam nas esquinas; ficcionistas e poetas, completamente bêbados, porque só há escritores, não há leitores. Não é isso, Júlio, ou me enganei?
Rimos os três intensamente.
- Engraçado, sempre me disseram lá em São Paulo que no Rio há um bom público leitor.
- E sempre me disseram que o que se fala em São Paulo não deve ser ouvido aqui no Rio... - pilheriei mais uma vez.
Marcelo achava a conversa engraçada. Voltou-se a Joana e falou:
- Creio que se tivesse conhecido seu amigo antes, escreveria sobre outra coisa, ele é muito divertido.
Joana olhou-me com ar de reprovação.
- Vamos agora ouvir o que nosso amigo escreveu. Olha que deve ser coisa boa, muito especial - Joana tentava mudar a direção da conversa.
Enchi o copo com o restante da pequena garrafa de água mineral, tomei um longo gole, depois falei:
- O nosso amigo Marcelo não vai levar a mal o que acabamos de conversar, não é mesmo? Ele tem razão, nós cariocas gostamos de brincar, de nos divertir e vez ou outra lemos também alguma coisa!
Não houve jeito de esconder outra sonora gargalhada. Dessa vez também por parte de Joana.
Marcelo abriu a pequena pasta de couro, tirou algumas folhas impressas por computador e disse:
- Chegou o grande momento, pessoal, desculpas antecipadas, vou ler a história prometida.

XV
Talvez uma representação
Os degraus de madeira da escada antiga rangiam ruidosamente sob nossos passos. À meia luz, parecíamos entrar em um túnel misterioso e fantasmagórico. O odor de mofo misturado com excreções de sexo produzia uma volúpia lúgubre. Às vezes, uma das mulheres cruzava comigo, ainda ajeitando-se. Vinha seguida do último cliente. Quem subia tinha que se encostar e roçar as nádegas nas paredes úmidas, enquanto dava passagem a quem descia. Chegávamos a nos tocar frente a frente. Quando galgava o último degrau, tive de dividir a passagem com Isaura. Ela chegou-me ao ouvido e sussurrou raivosamente: - o filho da puta levou minha calcinha.
O que me intrigava naqueles quartos eram as manchas e riscos traçados pelo envelhecimento da pintura nas paredes. Enquanto me despia, olhava com desconfiança aquelas manchas. Pareciam possuir algum significado antigo, alguma marca codificada que tentava transmitir mensagem difícil de ser decifrada.
Ao voltar ao passeio, após a saída do cliente, reparei a paisagem escura. O vulto dos antigos sobrados acentuava o aspecto decadente daquele lugar. Um automóvel passou lentamente, tentei divisar a fisionomia que vinha ao volante, mas me deparei com o rosto de uma mulher. Pensei conhecê-la de outrora, mas logo a imagem dissipou-se, precisava fazer mais um programa para ganhar a noite e mulheres não me dariam lucro.
Em torno de três da madrugada, divisei com uma desconhecida. Meu destino naquela noite seria as mulheres? Ela não parecia ser uma prostituta. Era estranha no local. Eu estava sozinha, as outras ou se haviam dispersado ou ainda tinham clientes. Aproximou-se e me pediu um favor:
- Estou fugida de Copacabana, não posso aparecer por lá, querem me matar.
- Mas o que você aprontou?
- É uma história complicada.
- O que você quer aqui?
Preciso de ajuda para um ponto. Sei que as meninas não gostam de gente nova, mas não sou nova. Preciso apenas ficar um tempo por aqui.
- Não sei se posso ajudar. Aqui já tem gente demais. As outras não vão gostar.
- É só por uns dias, depois me viro.
- Vou ver - ainda resisti.
Eu não acreditava em ninguém, e além de tudo, a mulher, se fugia, nos poderia trazer complicações.
- Eu te pago - ainda me falou - você não vai se arrepender.
Ela vestia uma saia preta muito curta. Desconfiei. Aquele tipo de roupa não era comum ali. As prostitutas já não se vestem assim. No passado, talvez, mas agora o costume não era pouca roupa. Ainda perguntei:
- Com essa roupa você está mais para travesti, olhe lá, hein?
- Quer que eu levante a saia?
- Acredito em você
Ela não trazia blusa, mas um top minúsculo. Nas pernas, as botas negras subiam até os joelhos. Quando virou, ainda observei a saia curta e semi transparente, arrisquei:
- Há homens que te batem se te descobrem sem calcinha...
- Quem está sem calcinha? - ainda perguntou.
Acreditei e acabei por ajudá-la, ao menos naquela noite. Ainda mencionei:
- Pelo andar da hora, acho que você vai ter que deixar pra outro dia.
Ao acabar de pronunciar aquelas palavras, um automóvel antigo parou junto a nós.
- Vai - acenei a ela.
Hesitou a princípio, mas acabou encostando-se à janela do carro.
Depois disso, enquanto o homem estacionava, ela perguntou-me:
- Como é o preço do hotel?
Vou subir antes. Eles não conhecem você. O pagamento é adiantado, vinte cada vez. Eles vão lhe dar a chave, você entra direto. Mais uma coisa.
- Qual?
Não deixe o homem perceber que é a primeira vez que você faz programa aqui.
Subi na frente e acertei a situação com o funcionário da recepção. Ele só me pediu que eu evitasse complicações, já tinha problemas demais. Quando a recém chegada passou seguida do cliente, uma chave já esperava por eles sobre o balcão. Ela a apanhou e prosseguiu. Ainda tive tempo de sussurrar:
- É o último quarto à esquerda.
Quando voltou, encontrou-me encostada à direita da entrada do hotel. O homem seguiu em frente sem virar-se, entrou mecanicamente no automóvel que deixara sobre a calçada e partiu anônimo. Eu fumava. Dei mais um trago, enquanto ela se chegou a mim. Também acendeu um cigarro, sorveu-o algumas vezes, tinha o olhar distante e estava voltada em direção à rua.
- Vamos ver se aparece mais alguém - ainda falou.
- Você não vai querer outra moleza dessa, não é? O próximo deixa comigo.
Ainda parou um fusca antigo. Vinha com dois sujeitos. Conversamos. Eles regateavam. Queriam sexo quase de graça. Acabaram partindo.
Deixei a ela ainda o último que apareceu. Nunca fui pelas aparências, mas a fisionomia dele me embrulhou o estômago.
Eles subiram. Demoraram. A demora me causou certa apreensão. Quando escutei passos na escada, me senti aliviada. Era ela. Vinha seguida do homem. Aproximou-se de mim, enquanto ele deixava o local sem olhar para trás. Reparei que ela chorara. Nada me falou.
Perto do amanhecer, ela aproximou-se e segurou-me pelo braço. Agradeceu. Ainda tentou me dar um beijo. Quase desviei o rosto, mas acabei por aceitá-lo. Lembrei que não lhe perguntara o nome. Um táxi subitamente parou. Ela entrou e partiu.
Alguns minutos depois, também decidi ir embora. Apressei-me, da mesma forma, por um táxi. E quando já ia longe, sentada no banco traseiro, reparei minha bolsa aberta. "Filha da puta, deve ter me roubado", foi o que pensei num primeiro impulso. Olhei apressada em meio à escuridão, tentava me dar conta do que perdera. Minha surpresa, porém, foi outra. Encontrei, bastante dobrado e amassado, talvez todo o dinheiro que ela ganhara nos dois programas. Era um valor maior do que eu teria conseguido com os mesmos homens.
Até hoje não entendi aquele fim de madrugada. Também nunca mais a encontrei.

XVI
O Espaço Unibanco de Cinema não estava muito freqüentado naquela tarde de quarta-feira. Silvia acabara de ver um filme. Tinha um encontro com Júlio, mas ainda era cedo. Tomou um expresso, entre senhoras que conversavam nas outras mesas, e depois entrou no pequeno sebo. Dirigiu-se à prateleiras onde se lia: ficção estrangeira. Tomou nas mãos alguns volumes e se surpreendeu com um romance de Durrel, que lera recentemente. Segurou-o, olhou-o com carinho, chegou a folheá-lo. Deparou-se com um nome de mulher na folha de rosto. Alguém que, no passado, possuíra o livro. Reparou a data: 76. O que ela, Silvia, fazia em 76? Não conseguiu lembrar. Fazia tanto tempo... Depois avistou Melville: Moby Dick. Lera-o aos treze anos. Num canto havia Henry Miller: Sexus. Livro antes difícil, proibido. Agora estava ali, a seu alcance e por preço razoável. Lembrou que havia nas livrarias uma tradução recente, por preço exorbitante. Mais alguns passos e pôde percorrer com os olhos as estantes de teatro. Eram duas apenas. Avistou um Teatro completo, de Gonçalves Dias, depois, um texto de Arthur Azevedo. Pensou em adquirir Qorpo Santo, caso o encontrasse. Não conseguiu. Qorpo Santo era difícil nas livrarias sebo. Ouviu som de modinhas antigas, carnaval de outros tempos. Também vendiam discos e CDs usados. Na banqueta próxima à entrada, diante de um grande cartaz de Marilyn Monroe, viam-se os livros mais recentes e consequentemente mais caros. Havia a biografia de Freud, de Gay. Lacan, com seus Escritos, se enfileirava junto a livros de filosofia e sociologia. A biografia de Hitler destoava naquela série de obras em que o pensamento resistia bravamente a qualquer tipo de intempérie. Virou-se, deu-se com uma foto antiga de James Dean. Ele sorria, sua expressão juvenil desafiava todo o porvir. E, quando voltou-se para sair, reparou Ecce homo, de Nietzche.
Retornou a uma das mesas do bistrô. Grandes cartazes de filmes que estavam em exibição e daqueles que, em breve, entrariam no circuito coloriam todo o Espaço. Fazia sucesso um filme francês, filmado na Geórgia, ex-soviética, falado em russo. Anunciava-se, entre outros, um filme alemão, falado em turco. Quando sentou-se junto a uma mesa vazia, reparou que Júlio vinha a seu encontro. Ele trazia uma pequena xícara de café. Cumprimentou-a. Perguntou se ela queria. Aceitou. Ele voltou ao balcão para pedir outra, desta vez para si.
- Você viu alguma filme? – perguntou voltando com a segunda xícara.
- Vi.
- Qual?
- O da Lilia.
- Ah, sei, parece que é bom o filme. É sueco.
- Vi, mas não gostei. O assunto é muito pesado. Só gostei das músicas.
- O filme está bem recebido pela crítica. – afirmou ele.
- Sei que algumas pessoas o acharam bom, mas, para mim, no atual momento, não me fez bem. Vim ao cinema para me distrair e acabei vendo algo que me deprimiu.
Júlio olhou para ela e reparou que suas pálpebras estavam escuras. Parecia ter olheiras.
- Você não tem dormido? – perguntou.
- Mais ou menos.
- Sabe, tenho pensado em você, podíamos ficar mais juntos, acho que conseguiríamos viver juntos.
- Não sei – respondeu -, tenho muitas dúvidas sobre isso, acho que não me acostumo.
Um casal de idosos se aproximava. O homem, carregando uma grande bandeja com sanduíche, tigela de salada, suco e café com leite tentava avistar uma mesa vaga. A mulher apontou a do lado de Silvia e Júlio. O senhor, quase equilibrando a bandeja, passou à direita deles, com muito cuidado. Não queria esbarrar em alguém nem entornar o que carregava. Júlio acompanhou todos os movimentos do homem, desde a expressão facial até os pequenos tremores dos braços. Quando pousou a bandeja sobre a mesa, Silvia também olhava naquela direção e, ao voltar a si, seus olhos encontraram os de Júlio.
- Os idosos não deixam de se divertir – reparou ele.
Silvia não respondeu, mas assentiu com um pequeno sorriso.
- O que vamos fazer hoje? – acabou por perguntar a ela.
- Não sei, você tem alguma idéia?
- Ao cinema você já foi, não vai querer ir de novo, não é mesmo?
- Claro que não.
- Então vamos jantar em algum lugar?
- Não estou com fome, e ainda é cedo.
Ia responder que o convite era para mais tarde, porém nada falou. Observou que ela pegava o pequeno óculos na bolsa. Colocou-o no rosto e começou a folhear o jornal que apanhara junto ao balcão de informações quando entrara.
- Interessantes esses jornais, sempre há algo sobre poesia.
Ele olhou de onde estava.
- É um jornal cultural, sai uma vez por mês, já li esse número.
Continuou a folheá-lo até que leu um poema em voz alta. Júlio pareceu aprová-lo.
- Estou cansada, ando deprimida, não tenho vontade de sair ultimamente, acho que estou ficando velha – disse, sorrindo no final da frase.
- Você não parece uma pessoa deprimida. Gosta tanto de música. Quando vejo você ouvindo algum CD, até desejo sentir a mesma alegria que você sente, mas não consigo.
- É, realmente, gosto muito de música. Talvez seja uma das poucas coisas que me colocam de pé. Quer dizer, às vezes também escuto meus CDs deitada - nesse ponto deixou transparecer um breve sorriso.
- Silvia, sei que estou batendo na mesma tecla, mas gostaria de morar com você, ou você morar comigo, sei lá...
- Não sei, Júlio, mas acho que não agüento. Você me conhece.
- Você não quer ir até lá em casa? Estou trabalhando numa tradução nova. Queria ler para você.
- Vamos, então.
- Mais tarde a gente sai para jantar.
Os dois se levantaram e foram andando de mãos dadas pela Voluntários. Atravessaram a pequena rua situada ao lado da estação do metrô. Júlio não viera de carro. Desceram as escadas e esperaram na plataforma a composição que vinha em direção a Copacabana.

XVII
São onze da noite, quarta-feira. Não acho Sílvia em casa. Não há como saber onde ela se encontra. Resolvo ir até o calçadão. Logo ao chegar, avisto algumas pessoas caminhando, apesar da hora. Nos quiosques alguns bebem, outros apenas conversam. Faz calor. Tomo a direção do Posto 6. Aprecio a noite, que está clara. Lembro as palavras de um amigo: "Copacabana é uma baleia branca, que durante o dia esguicha água e diverte as crianças; mas, à noite, nos consome a todos, sorrateira e sedutora". Quando alcanço o trecho que fica em torno do Othon, ouço alguém me chamar. Olho para uma das mesas ao lado esquerdo do segundo quiosque após o hotel. É Mirna. Paro e me dirijo a ela.
- Quanto tempo, Júlio! Você sumiu.
- Eu? Estou sempre por aqui. Você é que desapareceu.
- E como vão as coisas?
- Quer saber com sinceridade? - pergunto sem esperar resposta. - Por um lado vão bem, mas por outro há alguns problemas.
- Então você está melhor do que eu! - Mirna responde emendando um sorriso e, forçando a voz, tenta imitar-me: - Por um lado vão bem , mas por outro... e desata numa sonora gargalhada. -Você parece executivo de empresa estrangeira.
- Você continua alegre e sacana como sempre - atalho.
Olho em seus olhos. O cabelo dela é curto. Faz estilo. Suas invenções dão certo.
- Já que a coisa não vai tão mal assim, que tal fazermos um programa? - pergunta.
Sento ao lado dela. O empregado do quiosque me pergunta se desejo alguma coisa. Peço uma garrafa de água com gás.
- Você ainda com essa mania de água com gás...
Não respondo.
- E aí, vai ficar ao meu lado para fazermos o programa ou vai me empatar?
Outra vez explode em risos. Mirna é uma artista. Ou seria. Sempre senti prazer em estar com ela. Respondo:
- Você me chamou como amigo ou cliente?
Mirna é uma mulher que vive de encontros profissionais. Não tem ponto fixo. Não paga proteção, certa vez me segredou. Não pode ficar muito tempo no mesmo lugar devido às prostitutas da área e devido à presença da polícia. A polícia tolera a prostituição, mas não as putas independentes.
- Vou fazer um desconto pra você. Você é meu amigo.
- Não sei se quero um programa, mas, para não lhe prejudicar, eu pago.
- O que você quer, então? Conversar? Conversa não leva a nada. Tudo por uma boa trepada.
Sorrio de suas palavras e de sua expressão debochada.
- Você sabe viver, não é mesmo?
- Nem tanto, nem tanto, - responde.
- Onde você está morando?
- É segredo.
- E onde você faz os programas?
- Certamente não é lá em casa. O meu prédio é familiar.
Sorrio novamente, dessa vez junto com ela.
- Você está muito bonita.
- Obrigada. Se você quiser, fico ainda mais linda. Basta ir comigo ao Rio Sul e deixar sua carteira ou cartão de crédito durante alguns minutos na minha mão.
- Qualquer dia faço isso. Chamo você e vamos até lá. Enquanto tomo café, deixo minha carteira com você.
- Espero que ela não esteja vazia...
- Claro que não vai estar, sou um homem de palavra.
- Muitos são. São homens de muitas palavras...
- Não nesse sentido. Se fosse mais cedo iríamos hoje mesmo...
- Acredito. Só não vou marcar porque creio nas conjunções astrais. Qualquer dia desses nos encontramos e vamos até lá.
- O que você já bebeu até agora?
- Água de coco.
- Peça o que quiser, Mirna, é por minha conta.
- Não bebo em serviço, e também não estou com vontade. Você sabe que faço tudo que tenho vontade. Compro tudo que desejo. Sempre dou um jeito. Mas agora não quero nada. Estou contente por ter encontrado você. E digo mais, não precisa me pagar nada. Vale a nossa amizade. Vamos dar uma volta. Mesmo que você me leve pra cama, hoje não precisa pagar. Mas vamos andar um pouco.
Mirna se levanta, dirijo-me ao empregado do quiosque e pago a conta. Começamos a caminhar juntos, ainda em direção ao Posto 6. Ela me dá o braço e se aproxima mais um pouco.
- Sabe de uma coisa? Dinheiro resolve qualquer problema - continua -, basta você entrar em boas lojas, comprar coisas bonitas, que tudo se resolve. Não há nada melhor do que coisas bonitas. Se todos pudessem praticar isso, não precisariam de remédios, drogas ou terapia. Aliás, esta última está muito na moda ultimamente. Tenho um cliente que volta e meia está em depressão. Vai à terapia não sei quantas vezes por semana. Já contou a mesma história para o médico ou sei lá pra quem umas duzentas vezes. Gasta uma fortuna. Eu disse então a ele: "pega esse dinheiro todo que você gasta em terapia e comece a comprar tudo que você gosta. Garanto que em poucos dias você estará bom, estará curado." Mas o infeliz não acredita. Às vezes paga para sair comigo, mas acaba só conversando. Eu disse a ele na última vez que o vi: "vou tirar diploma de terapeuta, acho que vou me dar melhor do que na cama". Ele ri e continua contar suas pirações.
- E o que você faz?
- Nada. Absolutamente nada. A única coisa que falo é o que acabei de contar.
Mirna é mais velha do que eu. Dá para notar. Mas tem seu charme. Está de salto alto, caminha, porém, com muita naturalidade. Quando se expande em algum momento da conversa e ri, encosta o rosto ao meu. É uma pessoa feliz. Se pergunto algo sobre sua vida pessoal, ela desconversa.
- Por que você está me perguntando isso? Não está feliz por estarmos juntos neste momento? - diz sem esperar resposta.
Em certo momento, falo:
- Precisamos nos encontrar mais.
- Você já vai embora? - pergunta.
- Não, claro que não.
- Então por que está falando isso? Vamos aproveitar este momento. Nem sabemos se estaremos vivos amanhã.
Talvez seja isso que a faça mulher vibrante e feliz. Ela vive o momento. Vive no fio da navalha. Enquanto continua feliz a meu lado, penso que estarei só daqui a alguns instantes, penso que jamais terei a mesma alegria de Mirna, penso no abismo intransponível que há entre os seres humanos. É impossível imaginar esta mulher infeliz, mesmo sozinha. A alegria que possui parece envolvê-la durante todo o tempo. E ela não tem filosofia alguma, ou, quem sabe?, tem toda a filosofia do mundo.

XVIII
- Mirna, foi bom ter ficado esse tempo todo com você.
- O prazer foi meu.
- Você tem certeza de que não precisa de nada?
- Não, meu amor.
- Não mesmo?
- Sou uma mulher rica. Tenho tudo quanto quero, não tenho nada que não quero.
- Você quase recitou o Manuel.
- Que Manuel?
- O Bandeira.
- Júlio, esse negócio de poesia não é comigo.
- Você é poesia desde Baudelaire, Mirna. Mas deixemos isso de lado. Quer dizer então que nada falta a você?
- Nada, absolutamente nada.
- Mas você não acha que é a falta que move o ser humano?
- O quê?
- É mais ou menos o seguinte: se lhe falta amor, você vai em busca dele...
- Quem disse que me falta amor? Tenho todo o amor do mundo dentro de mim.
Mirna me abraça e permanece muito tempo assim. Depois me beija. Lembro-me de ter ouvido de alguém que as prostitutas não beijam. Ledo engano. Mirna me beija. Na boca. E um beijo longo.

XIX
- Alô, Silvia?
- Oi, quem é?
- Joana.
- Oi, Joana, tudo bem?
- Mais ou menos. Você soube do Júlio?
- O que houve com ele?
- Foi preso.
- Preso? O que foi que ele fez?
- Nada, ou melhor, foi por causa daquela briga com o Armando.
- Armando? Que Armando?
- O Armando, poeta. Você não soube? Foi há algumas semanas. Eu estava com o Júlio naquela noite, no Bar Luiz. O motivo foi a resenha do Júlio sobre o último livro do Armando. A matéria nem chegou a ser publicada, mas o Armando teve acesso ao conteúdo. Logo que entrou no bar fez uma provocação. O Júlio não quis saber de conversa. Partiu pra briga. O Armando registrou queixa, alega que está com seqüelas.
- Ai, meu deus, o Júlio com essas histórias. Eu sabia que isso não ia acabar bem. Briga por literatura. É um absurdo! E agora, o que vamos fazer?
- Eu estou indo pra delegacia. Há um pessoal amigo que já foi pra lá. Você não quer ir comigo?
- Vou.
***
- Vamos tomar este táxi. Por favor, o senhor nos leva a este endereço?
- Pois não.
- Silvia, os jornais vão estampar o escândalo amanhã. Tenho alguns amigos jornalistas que me avisaram logo que souberam da prisão.
- Ai, meu deus, prisão, veja se isso é possível?
- Isso vai ajudar a vender o livro do Armando. Era tudo que o Júlio não queria. Por outro lado, existe algo positivo. Vão publicar, ao mesmo tempo, a resenha do Júlio. O Paulo da editora R. telefonou de São Paulo. Estará de volta ao Rio, à noite. Quer falar com o Júlio. Colocou os advogados da editora à disposição dele. Quer que ele escreva um livro sobre todo esse episódio. Garante a publicação.
- O Júlio vai gostar disso, mas não vai escrever uma linha, eu o conheço.
- Vai sim, Sílvia, ele tem talento para isso, vamos convencê-lo. E você tem muita influência sobre ele.

XX
A avenida Rio Branco é movimentada às doze horas. Vários veículos entram na Araújo Porto Alegre, mas logo em seguida encontram pequena retenção. Tento atravessar naquele trecho. Consultei há pouco alguns arquivos na Biblioteca Nacional e me encaminho à biblioteca do CCBB, na Primeiro de Março. Sigo em direção ao sinal luminoso da Araújo com a Rua México. Ali é mais fácil e aconselhável atravessar. À luz vermelha, os carros param antes da faixa e cruzo a rua junto a mais de duas dezenas de pessoas. Percorro a calçada que margeia o Museu Nacional de Belas Artes. Não deixo de apreciá-lo, embora pelos fundos. Gosto do prédio e do lugar. Após alguns metros, já alcanço a Almirante Barroso.
Agora, o número de pessoas é maior. Homens de terno e mulheres em roupas clássicas desfilam apressadamente. No centro, é difícil encontrar um amigo. Todos estão embotados. Olham de cima, sem dar importância alguma a quem quer que seja. Marcham sobre você como se marchassem sobre o inimigo. Pode-se dizer que não há quem encare alguém, e quando isto ao acaso acontece, a fisionomia é de suspeição. Não há doçura nem poesia nos olhares que transitam pelo centro do Rio.
Decido atravessar aquela praça - não tenho melhor nome para o local - onde há o prédio que um dia foi sede do Banco do Estado. Entro na Rodrigo Silva. O balcão de café do Gaúcho está cheio de gente. Ali servem um dos melhores cafezinhos da cidade. E do tradicional. Atravesso a Assembléia. Entro na Sete de Setembro e depois dobro a primeira rua, à esquerda. Não é bem uma rua, é uma travessa e tem o nome de Travessa do Ouvidor.
A vitrine da Livraria da Travessa está linda. Predominam capas quase da mesma cor. Os livros abordam música e boêmia carioca. Não posso deixar de me lembrar de Júlio. Ele e seu embate constante: "o livro se tornou um produto como outro qualquer. E caro". Não resisto. Entro.
A primeira bancada comporta livros de literatura. Ou como diz Júlio: literatura de hoje, não se sabe se de amanhã. Mas como as capas são bonitas, observo. O design e as artes gráficas progrediram muito. Há capas de todos os tipos. Muitas ilustradas; outras, fruto de idéias geniais. Sentimos prazer em tocá-las, manusear os livros. A última coisa que desejamos é lê-los. Podem não ser tão bons como parecem. As pessoas que os arrumam também devem ser especializadas. Provavelmente estudaram em algum lugar a arte de arrumar livros em livrarias. Assim nós, que gostamos de livros e vez ou outra os compramos, podemos vê-los envolto em uma aura toda especial, que muitas vezes não mais existe quando saem dali.
Aproximo-me e tomo nas mãos Ulisses, de Joyce. Não se encontra na bancada principal, mas numa ao lado, acompanhado de Os dublinenses e Retrato do artista quando jovem. Joyce não precisa da bancada principal, tem um mundo só para ele.
Lembro-me de Júlio novamente. Certa vez disse: "a literatura brasileira não é original". Tal comentário surgiu porque projeto de pesquisa de um amigo dele, que tentava ingressar no doutorado de universidade pública, foi recusado por falta de originalidade, segundo a banca examinadora. Júlio gerou uma discussão absurda; disseram-lhe: "como você pode dizer tal coisa? Olhe quantos autores, você é analfabeto? E logo alguém que trabalha com traduções. Veja Guimarães Rosa, Clarice, Machado, Graciliano, Érico, e os poetas? Esqueceu de Bandeira, de Drummond, e de Cabral? Ferreira escreve até hoje, e há uma nova geração de prosadores e poetas a cada cinco anos". Respondeu: "a literatura brasileira não é original no sentido de dar origem, isto é, no sentido gerador. Ela não deixou sequer uma marcar na cultura universal. Esta pode existir tranqüila, sem a nossa presença. Mas se vocês querem um traço de nossa literatura - continuou -, apenas um traço dela, terão de recorrer a alguém desagradável a vocês... Terão de ir atrás do velho Nelson". E lá está ele, numa estante ao lado, com seu Teatro completo. Meu amigo adora uma polêmica. Mas aquela foi demais. Granjeou adversários em todas as frentes. "Júlio, como você pode ter dito uma coisa dessas? Há uma infinidade de escritores, academias, universidades, doutores, você está louco?". Ele me respondeu: "Joana, você eu sei que me compreende. Por acaso os escritores brasileiros influenciaram ou influenciam os de outras línguas? Veja apenas como exemplo Cortázar, Borges, Garcia Marques, Rulfo, Faulkner. É possível uma literatura ter deixado uma marca, ter influenciado autores de outras culturas, quando o maior escritor ainda é Machado de Assis, quase cem anos após sua morte?". "E Guimarães e Clarice?", indaguei. Ele me respondeu: "e Joyce?, e Virgínia?". "Joana, seu amigo é louco, é louco ou quer aparecer". Todos me disseram isso. Unanimidade. Júlio, então, teve de recorrer mais uma vez ao velho Nelson: "toda unanimidade...". Acho Júlio uma pessoa coerente. Ele gosta dos escritores brasileiros. Gosta muito. Mas conhece nossos limites. Certa vez falou que Guimarães Rosa era autor de um romance só. "E os contos?". "Contos?", indagou. "Contos, todos temos alguns, guardados no fundo de alguma gaveta". Júlio é divertido. Gosto dele. Sabe defender seus pontos de vista. Não desiste. Até briga pela literatura; literatura que ele diz que não existe, ou, sei lá, que não é original. "Temos uma literatura", acabou por concordar com seus opositores, um dia em que se encontrava em uma mesa de bar, em Copacabana. Começou a falar assim que viu entrar, no local, um autor. E o autor até era amigo dele. "Temos uma literatura", continuou dizendo, "uma ótima literatura secundária. E, antes que me critiquem, o que há de mal nisso?".
Num último olhar sobre a bancada de lançamentos, vejo O livro, de Júlio Cavallieri. Ele relutou em escrevê-lo, em publicá-lo, mas depois de receber em pessoa a visita do próprio editor da R., acabou cedendo. Ainda me disse com certo desânimo "Joana, eu também não vou acrescentar nada, vou ser apenas mais um 'a encher de vãs palavras muitas páginas e de mais confusões as prateleiras'". "Júlio, redargüi, se se pensar assim, ninguém há de escrever mais coisa alguma."
Quando chego ao CCBB, um jovem me aborda à entrada do prédio:
- Você gosta de poesia? - pergunta-me e estende em minha direção uma folha mimeografada.
Diz a seguir:
- Os poemas são de minha autoria, não quer dar uma olhada?
- Meu filho - falo de chofre; iria repreendê-lo, mas contenho-me.
A seguir, tomo nas mãos a folha. Leio alguns versos. Depois, desvio o olhar para o jovem poeta. Seus olhos brilham. Vejo que toda essa raça de bardos é indestrutível. Não importa se são bons ou não, se são principais ou secundários, se escrevem em verso ou em prosa. O que importa é que eles não desistem.