quinta-feira, julho 16, 2009


Sob a luz e sobre a tela

Novo livro de Alexandre Brandão tem como foco o cinema e a literatura

A ditadura militar a gente não esquece. E é bom que seja assim. Melhor ainda é sempre ressaltar a face mais nefasta do regime que se instalou através de um golpe em primeiro de abril de 1964 e permaneceu no poder até meados dos anos de 1980. O livro de Alexandre Brandão cumpre a honrosa tarefa de não deixar a resistência aos militares passar em branco, não por tratar diretamente do assunto, mas devido ao fato de que a descoberta de um personagem colaboracionista causa desconforto e desagregação entre os integrantes de um grupo de amigos, na verdade escritores, no final de uma das narrativas.

A câmara e a pena, seu último livro, é constituído por duas novelas. A primeira tem como foco o cinema. Dividida em cinco partes, retrata o dia-a-dia de filmagem de um longa-metragem. A narrativa coloca sob suas luzes não propriamente a história a ser exibida nas telas, mas as feridas provocadas por um caldeirão de vaidades que flamam durante a própria filmagem. Os diversos profissionais sentem-se no direito de se colocar com ares de superioridade em relação aos companheiros. Qualquer tentativa de inovação é seriamente criticada e vista com muita desconfiança. Na verdade, a desculpa de que cada um tem um nome a zelar é útil apenas para bloquear a possibilidade de vôo maior daqueles que estão ao lado. Um diretor estreante, bem sucedido apenas com um curta-metragem, enfrenta toda a sorte de dificuldades, inclusive no espaço de sua vida particular. Vícios e frustrações vividos por membros da equipe também vem à tona, trazendo no bojo vários tipos de disputa, desde o desejo sexual pela moça bonita, assistente de produção, ou pela simpatia dos produtores.

Mas o que se pode perceber com mais intensidade não é o que vem à superfície, mas algo inerente a todo o ser humano: a doença, a decadência e a morte; mesmo que venha através de um suicídio. Uma atriz em fim de carreira é protagonista, não só do filme, mas também da narrativa. É ela quem determina o desfecho. A morte também trafega nas águas do jovem diretor, mas surge metaforicamente como perspectiva de fracasso profissional.

A segunda narrativa também é muito interessante: aborda um grupo de amigos, na verdade escritores, que se reúnem num café, todas as quintas, com a intenção de discutir seus textos e suas vidas.

Tendo como cenário o Rio, o grupo, que não deixa de trocar textos e mensagens eletrônicas durante a semana sempre visando ao encontro, reflete a fragilidade do ser humano numa cidade pulverizada pelo gigantismo, onde possibilidades culturais e criativas se apresentam diluídas. A novela tem como tema a solidão e o abandono a que todos estão submetidos. O grupo, apesar das diferenças, se mantém coeso até o aparecimento de um casal de idosos, que, sobretudo a mulher, deseja conviver entre os escritores. Uma coincidência acaba por colocar a todos diante da questão que não poderia passar em branco: a ditadura militar.

A câmera e a pena também pode ser visto como a tentativa de recuperar uma irmandade de escritores, numa época em que se multiplicam as oficinas literárias. Seus membros são dissidentes de uma delas. O autor não deixa incólumes os escribas profissionais que tiram seu sustento prometendo perspectivas de sucesso aos jovens que desejam ingressar no mercado editorial.

Outro aspecto de seu pequeno e muito bonito livro é trazer à lembrança fatos ocorridos em meados do século XX, quando, em Paris, grupos de escritores reuniam-se em cafés, para discutir filosofia e literatura. Tais episódios não são mencionados diretamente, mas aqueles que viveram o período ou estudaram sua importância sentem uma espécie de “busca do tempo perdido”.


A literatura brasileira atual não carece de bons e experientes escritores. Alexandre é um deles. Trata-se de seu terceiro livro, o que testemunha o bom momento do autor.

Eis um trecho, na segunda novela, que sela o destino do grupo:

“Teco foi pela escada para, com o tempo, pensar em alguma saída. O que fariam com Dona Rosário? Se arrependimento matasse, quem estaria descendo aquelas escadas seria um fantasma muito do mixuruca, cordato e obediente, assustado mais do que assustador. Não bastasse a fauna dos escritores – o senhor corneado por puta, a dona sabe tudo, o excelentíssimo gordo fujão, a gracinha da Clara, com essa não esculachava, e ele na pele do trouxa que acreditou na superioridade dos escribas –, o clube aceitou no quadro de sócios outro com tendência ao fracasso.”

É importante ressaltar que, apesar da possibilidade de “fracasso” desses seres, há segmentos de poemas e contos, atribuídos a eles, que atestam o ótimo trabalho artesanal com a linguagem saído das mãos de Alexandre Brandão.

A câmera e a pena – duas novelas
Alexandre Brandão
Editora Cais Pharoux, l56 páginas