sexta-feira, novembro 09, 2012

"Matéria de memória"


Livro lançado pela primeira vez em 1962 mantém força visceral

Às vezes, no afã de procurar novidades em matéria de literatura, perdemos a oportunidade de ler o que se convencionou chamar de clássico. É o que pode acontecer caso deixemos de lado o romance de um ótimo autor que, apesar da idade avançada (86 anos), ainda se mantém ativo tanto escrevendo crônicas para a Folha de São Paulo, como fazendo comentários para a rádio CBN. Falo de Carlos Heitor Cony. Trato aqui de Matéria de Memória, sucesso editorial desde os anos 1960, que hoje se encontra na sexta edição.

Podemos perguntar: por que um livro torna-se clássico? Talvez a resposta não seja apenas porque conta uma boa história, mas por estabelecer e tentar responder questões que muitos outros não conseguiram.

Lançado pela primeira vez em 1962, a obra imediatamente alcançou sucesso de público e de crítica, fazendo Gilberto Amado comentar: “trata-se de um momento especial na nossa literatura”, levando-o a comparar o romance com A náusea, de Sartre. Só que com vantagem para o livro de Cony.

O enredo em especial resume-se à vida de três personagens. O pintor de quadros Tino, alcoólico inveterado; Selma, mulher independente que, durante o voo de volta da Europa para o Brasil, faz o balanço de sua vida; e João, membro disciplinado do Partido Comunista, a quem a esposa desprezou por considerá-lo homossexual.

Os três mantêm laços entre si, mas é bom que o próprio leitor descubra que ligações são essas. Apesar de o romance ser ambientado no Rio de Janeiro, durante a maior parte do tempo na zona sul carioca, a história poderia ter acontecido em qualquer grande cidade do Ocidente.

Num momento em que a literatura acomodou-se à forma consagrada do best-seller e que muitos autores já não tentam inovação alguma, Cony estabelece uma narrativa dividida em três partes, onde cada um dos personagens assume a narração fazendo transparecer seus desejos, suas frustrações e também suas idiossincrasias.

Começando por Tino, passando à Selma, a João, e por fim voltando ao primeiro personagem, a narração desenvolve-se com os personagens falando, sobretudo, da solidão e do abandono em que vivem. Apesar dos subterfúgios que a sociedade sempre pôde oferecer para que os problemas sejam esquecidos, os personagens, mesmo quando abastados, batem-se contra certa náusea de viver. Podemos aproveitar o famoso axioma do psicanalista Jaques Lacan: “a relação sexual não existe”. Isto é, as pessoas são incomunicáveis, não sendo possível nenhum tipo de relação.

Tino é considerado pela crítica especializada um pintor em decadência. Sheila foge de seus fantasmas viajando para o exterior, permanecendo três anos longe de todos. João esconde-se, de modo medíocre, em meio às fileiras de um partido político que, na verdade, já não apresenta nada de novo, pois ambos, o partido e ele, tornaram-se verdadeiros burocratas.

Quem se salva, talvez, conseguindo uma ponta de felicidade, é a empregada doméstica Enedina. Contratada por Tino para trabalhar apenas no período da manhã, acaba aceitando, a princípio em troca de dinheiro e depois por afeto, tornar-se sua amante.

Apesar de o romance dissecar o lado psicológico de cada personagem, eles transitam pelas ruas de um Rio de Janeiro de meados do século 20. Paira no ar certa expectativa do que a vida na cidade é capaz de oferecer como solução existencial e material para cada um. No fundo, o que sobressai, no entanto, é um profundo mal-estar. Nem mesmo dinheiro, bebidas, automóveis, sexo, viagens – ou qualquer outro artefato que a sociedade dos bem sucedidos oferece – podem lhes tirar o travo amargo da existência e do abandono.

É interessante ler esse romance no atual momento em que a intensa tecnologia se propõe como solução para muitos dos problemas dos seres humanos, mas esbarra na mesma náusea em que os personagens de Cony vivem submersos.

Deve-se prestar muita atenção às primeiras frases do livro, principalmente quando Tino afirma: “Não tenho mais nada. A rigor, talvez nunca tenha tido realmente coisa alguma”. Frases emblemáticas que apontam a trajetória fugaz não só do pintor, mas de cada um dos personagens retratados no romance. Por mais que se pense nos bens materiais, ou mesmo na possibilidade de alguém ser suprido pelo afeto, a narrativa de Cony desmente.

Para essa trajetória travada, há a ligeira insinuação de que pode haver uma saída. Ela estaria entre os humildes empregados e empregadas, que ainda acreditam na amizade, no afeto, enfim, no amor. A matéria de memória estaria, assim, não apenas na lembrança do que se poderia ter vivido, mas também nesse sentimento sutil e ao mesmo tempo visceral, que é capaz de manter no ser humano o gosto pela vida.

Matéria de Memória
Carlos Heitor Cony
Ed. Alfaguara, 195 páginas