domingo, junho 27, 2010

Ensaio questiona a teoria freudiana da pulsão de morte

Haron Gamal, Jornal do Brasil

RIO - André Martins, em Pulsão de morte?, traz para o debate uma das questões fundamentais da psicanálise, que é a teoria das pulsões. Como se pode deduzir pelo próprio título do livro, o autor apresenta a tese de que esse conceito freudiano é perfeitamente dispensável, ou melhor, a pulsão de morte não existiria, e o que se apresenta na linguagem do inconsciente é uma pulsão originária, de onde sairiam as consequentes dualidades. A base teórica do autor trafega em meio a referências filosóficas que não são novas, remetendo a Parmênides, no mundo antigo, e a Leibniz, às portas da modernidade.

Ainda na introdução, Martins afirma que Freud tomou esse conceito, o da pulsão de morte, como hipótese, e assim insinua que esta foi uma solução momentânea encontrada pelo criador da psicanálise no que dizia respeito ao problema do conflito psíquico, detectado na clínica psicanalítica. O texto induz o leitor a não levar a sério tanto a teoria freudiana das pulsões nem a pulsão de morte. O autor também tratará a questão como hipótese. Partindo de pontos de vista de Spinoza e Nietzsche, sobretudo a partir deste último, privilegiará a concepção trágica da humanidade e invocará o amor fati, originário de uma perspectiva dionisíaca de vida, como pressuposto para uma psicanálise da potência.

Impasse sem resposta

A visão trágica da humanidade implicaria uma postura de vida desidealizada, preconizada e presente na obra do criador de Zaratustra. Mas como coadunar a clínica psicanalítica de potência a partir do ponto de vista trágico da vida, assim como está presente na arte grega, ante a precariedade da existência e a ameaça constante da morte? O impasse, Martins não responde. Os princípios da clínica psicanalítica desenvolvidos por Winnicott como resposta não convencem, porque estão relacionados a casos sintomáticos e pontuais.

A afirmação freudiana de que a cultura é um meio de impedir a ação da natureza, a qual estaria sempre agindo de modo a levar o ser humano ao inorgânico, isto é, à morte, é contestada pelo escritor. Martins tenta demonstrar uma afirmação também problemática: natureza e cultura não estariam em pares opostos, mas a cultura seria um modo da natureza, possuidora esta de uma espécie de linguagem, detectável na sua própria organização e desenvolvimento.

Na primeira parte do livro, o pesquisador apresenta vários textos de Sigmund Freud relacionados diretamente à teoria das pulsões. Martins afirma que fará a leitura desses textos preso à própria letra freudiana. Sabemos, no entanto, que uma leitura totalmente pura, sem contaminação do pensamento e das teorias de quem escreve, é questionável. Ao contestar em Freud os conceitos duais como cultura versus natureza, pulsão de morte versus pulsão de vida, o autor implica num arcabouço teórico que acomodaria o ser humano numa perspectiva de vida em que o conflito não compareceria. Isso geraria dois problemas. O primeiro seria o de que estaria completamente ignorada a tese de que a inscrição do homem no mundo da linguagem o distinguiria dos outros seres da natureza. O segundo problema é que a teoria de uma clínica psicanalítica da potência não levaria em conta o conflito existente dentro do próprio universo da cultura – ou se não se deseja usar essa palavra, para evitar a distinção natureza/cultura – dentro da organização humana com código próprio de linguagem. Tal ponto de vista talvez seja consequência do caráter excessivamente hedonista e politicamente correto da contemporaneidade, em que o “prazer” é incentivado e, ao mesmo tempo, é estimulada a aceitação aparente dos considerados “diferentes”. A forte presença da mídia corroboraria tal concepção, porque induziria as pessoas à opinião de que se vive num mundo sem conflitos e de que todos, inclusive os aparelhos de poder, estão voltados para o bem estar do cidadão e da sociedade, isto é, da cultura.

Sistema único

Uma vez que a bipolaridade política esmaeceu e que foi imposto um sistema econômico único com seu consequente e também único modo de vida – o da felicidade que o consumo possibilita (pelo menos esses é um dos atuais disfarces da ideologia) – não é difícil perceber o caráter falacioso de um princípio que não distingue natureza de cultura. Talvez possamos exemplificar com o seguinte argumento: caso não mais exista conflito entre e indivíduo e cultura – ou mesmo entre natureza e cultura – será devido ao aniquilamento da subjetividade. A não ser que se queira atribuir à natureza uma subjetividade que substitua a subjetividade humana. Em termos psicanalíticos seria o mesmo que constatar o adoecimento de todos. Talvez por isso, Freud se preocupou tanto em explicar a origem da agressividade e buscar uma saída para a questão na pulsão de morte. Portanto, tamanha complexidade não poderia ser deixada de lado por quem descobriu (ou inventou) o inconsciente.

Freud também é acusado pelo autor de Pulsão de morte? de ser um pensador fortemente influenciado pelo romantismo e pelo germanismo, estando na filosofia de Schopenhauer a origem de sua visão negativa em relação ao homem. Após a exposição da argumentação de Martins, caso tivesse razão, sobraria muito pouco da teoria psicanalítica. A proliferação, porém, tanto da clínica como de escolas de psicanálise de exegese freudiana nos permite pôr em dúvida muitos dos argumentos utilizados no livro.

No final, com a proposta de que a pulsão não seja adjetivada como pulsão de morte ou de vida, mas que seja afirmada apenas como originária, permitindo abertura para as possíveis dualidades, não estaria o autor voltando aos princípios preconizados pelo criador da psicanálise?

*Haron Gamal é professor e doutor em literatura brasileira pela UFRJ