domingo, fevereiro 10, 2013


Resenha de 'O explorador de abimos - Vilém Flusser e o pós-humanismo'

Erick Felinto e Lucia Santaella partem do pensamento de Vilém Flusser para debater o impacto da tecnologia sobre a vida contemporânea

Por Haron Gamal*

Partindo de premissas do pensamento de Vilém Flusser, Erick Felinto e Lucia Santaella discutem a presença avassaladora da tecnologia e suas consequências sobre a contemporaneidade, no livro “O explorador de abismos — Vilém Flusser e o pós-humanismo” (Editora Paulus).

Flusser é um pensador que foge às amarras da filosofia tradicional, tendo adotado a visão transdisciplinar sobre a realidade muito antes de esta entrar em voga. Sua reflexão se entrega ao risco e ao fascínio com a multiplicidade do mundo, não se fixando em parte alguma. O problema que os autores do livro enfrentam, no entanto, é conciliar o pensamento nômade de Flusser, que não abandona o humanismo e navega até certo ponto nas mesmas águas de Heidegger, com o que chamam de pós-humano, isto é, a perda da centralidade do homem e o fim dos humanismos clássicos num mundo que passou a ser regido pela tecnologia.

O pós-humanismo abordado por Felinto e Santaella traz em muitos momentos a perspectiva da supremacia do maquínico sobre o humano, o que é sugerido pelos autores como o apagamento das fronteiras entre as instâncias da natureza e do artifício. Num futuro universo pós-humano, a tecnologia não apenas dividiria essa preponderância com o humano, mas estaria prestes a superá-lo. Em certas passagens, os autores não veem a questão como malefício, mas sim como um avanço.

Em meio à quantidade de informações disponíveis nos dias de hoje, quem seria capaz de organizá-la e acessá-la sem dispositivos? A partir dessa perspectiva, as subjetividades se veriam diminuídas em proporção à capacidade de atuação dos sistemas e do armazenamento de dados nos computadores. 

A obra desenvolve-se em sete capítulos. O primeiro apresenta “O mistério de Vilém Flusser”, investigando sua produção intelectual e a apropriação de sua filosofia pela teoria da mídia. O segundo, “O nascimento do pós-humano na cibernética”, estabelece como ponto de partida a complexidade e a prevalência dos sistemas de informação como base para a decadência do humanismo clássico, fase em que, pelo menos teoricamente, era o homem o centro do saber e do universo. O capítulo 6, polêmico mas necessário até para quem deseja contestar a obra, aborda a dissolvência dos humanismos.

Interessante nessa discussão é a conclusão de que os humanismos clássicos já não conseguem trazer à Humanidade soluções para problemas pontuais nem existenciais. Portanto, segundo os autores, há a perspectiva do maquínico assegurar um futuro em que, apesar do apagamento das fronteiras entre o humano e o tecnológico, os agenciamentos tornem-se mais eficazes.

Ainda segundo eles, um bom exemplo estaria no livro “Filosofia da caixa preta”, obra em que o pensador tcheco utiliza a máquina fotográfica como metonímia de toda tecnologia: “Na caixa preta de Flusser, manifesta-se uma espécie de dialética do senhor e do escravo. O fotógrafo domina o input e o output da máquina, sem todavia conhecer suas entranhas, sem entender realmente os processos que se efetivam no interior do aparato. Por desconhecer o seu funcionamento, é por ele dominado.”

O título, “o explorador de abismos”, revela o fascínio de Flusser pela reflexão sobre temas prementes e de difíceis soluções. Mas o filósofo aponta que a própria reflexão ainda é a contrapartida mais adequada para a sobrevivência do humano.

*Haron Gamal é professor de literatura e doutor em literatura brasileira pela UFRJ
Matéria publicada no Jornal O Globo, Caderno Prosa e Verso, em 09/02/13.