quinta-feira, setembro 18, 2008

Ainda bem que escritores não morrem

Um livro editado recentemente em português, que merece a atenção do leitor brasileiro, é o romance Senhor das almas, de Irène Némirovsky. A trama, ambientada entre as duas grandes guerras mundiais, apresenta um problema que ainda é preocupação constante nos países onde a perspectiva de prosperidade parece ter-se estabelecido: a rejeição ao imigrante. Dario Asfar é proveniente do leste da Europa, instala-se na França e consegue estudar medicina. Diploma-se; sua vida, no entanto, torna-se um constante perambular em busca de clientela. Como sua aparência e sotaque revelam-no estrangeiro, os franceses não lhe dão crédito. O médico passa a atender apenas emigrados e outras pessoas pobres, que mal lhe pagam para o sustento diário. Casado, com um filho pequeno, sobrevive em meio a dívidas e a ameaças de despejo.
A autora talvez tenha desejado retratar neste livro uma parte de sua própria vida. Ela, nascida em Kiev no ano de 1903, emigrou ainda adolescente com os pais, que fogem da revolução russa. A família se estabelece na França onde o pai, após algumas dificuldades, retoma seus negócios e pouco a pouco volta a proporcionar a todos uma vida tão confortável como usufruíam na antiga pátria. Irène adota o francês como o idioma em que escreverá toda a sua obra.
A questão principal tanto em relação ao protagonista do romance como à autora não é apenas financeira. O que conta é que o lugar do exilado jamais será um lugar seguro.
Dario, o personagem criado por ela em Senhor das almas, consegue dar uma guinada na própria vida, tornando-se um homem de sucesso. De maneira inescrupulosa, em conluio com a amante de um milionário – personagem este construído a partir de algumas grandes personalidades francesas da primeira metade do século XX – passa a tratar as “almas” angustiadas e insones. A psicanálise, ainda dando os seus primeiros passos, é utilizada por ele de modo “eficaz” e enriquecedor. Embora se possam perceber algumas alfinetadas nessa prática terapêutica, a crítica à psicanálise é questão adjacente no livro. Dario tem contra si toda a escola de Viena e grande parte dos médicos franceses. Mas não se dá por vencido. Ele passa a freqüentar a alta sociedade parisiense; tem, à própria mesa, políticos influentes e milionários franceses. Seu espírito, porém, já não possui o idealismo dos primeiros anos de juventude, quando iniciou a prática médica e procurava a sobrevivência respeitando princípios morais. A palavra ética ainda não estava tão em voga como nos dias de hoje.
O romance apareceu inicialmente em forma de folhetim, no semanário Gringoire, no ano de 1939. Sua estrutura é simples: com trinta e seis capítulos pequenos, a narrativa se desenvolve em ordem cronológica; a trama inicia-se em 1920 e termina às vésperas da Segunda Grande Guerra. Não se pode negar alguma influência naturalista e a presença de personagens até certo ponto caricaturais. Mas a autora não nos poupa de um mergulho a fundo na natureza humana, mostrando-nos de que o homem é capaz em meio a situações limites. Eis algumas palavras de Dario a Elinor, a amante de Wardes, homem rico e proprietário de uma fábrica de motores, que virá a ser tratado pelo médico: “o que preciso não é de um doente, mas de uma clientela. Todos os seus amigos, esses aí, são uma presa de primeira categoria. Você não quer fazer propaganda de mim? Não quer dizer que descobriu um médico ainda desconhecido, jovem, pobre, mas genial? Essas doenças nervosas, esses distúrbios funcionais, essas fobias extraordinárias que nenhum médico, com toda certeza, seria incapaz de curar, é um campo de sucesso vasto, ilimitado, mas é preciso ter um fiador! Preciso de alguém que diga: ’Ele me curou... me salvou! Vá vê-lo, escute-o’. Você ficará com cinqüenta por cento de cada paciente rico que me enviar, assim que eu tiver recebido os honorários.”
Irène Némirovsky foi aclamada pela crítica com o lançamento do seu primeiro livro: David Golem, em 1929; escreveu vários romances, mas com o correr dos anos, por ser judia, começou a encontrar dificuldades para publicar, tendo que apelar para a utilização de pseudônimos. Enquanto viveu também não conseguiu manter relações harmoniosas com a comunidade judaica. Muitas de suas histórias não poupam nem mesmo os da mesma origem. Foi redescoberta em 2004, devido à publicação póstuma do romance Suíte Francesa, livro que ganhou o Prêmio Renaudot, sessenta e dois anos depois do desaparecimento da escritora em Auschwitz, vitima das leis raciais francesas da época, deportada pelo governo pró-nazista de Vichy.

O senhor das almas
Irène Némirovsky. Trad. : Rosa Freire D’Aguiar.
Companhia das Letras, 231 páginas.


Haron Gamal