segunda-feira, dezembro 28, 2009

Clique no link abaixo para ter acesso à tese de doutorado defendida por mim, com sucesso, em 4 de dezembro de 2009, orientada por Antonio Carlos Secchin, tendo como integrantes da banca: Flávia Vieira da Silva do Amparo; Godofredo de Oliveira Neto; José Luís Jobim; Sérgio Fuzeira Martagão Gesteira.
http://www.letras.ufrj.br/posverna/doutorado/GamalHJ.pdf

sexta-feira, dezembro 11, 2009

Chinua Achebe lança no Brasil livro mais de 50 anos depois de escrito

Haron Gamal, JB Online

RIO - No fim de outubro morreu Claude Lévis-Strauss, antropólogo que mudou o entendimento do homem ocidental a respeito de sociedades tidas como diferentes da matriz europeia. Através dele, passamos a compreender que não existem grupos humanos superiores ou inferiores. Todas as sociedades possuem capacidade de explicar o seu estar no mundo, ainda que de modo mítico, e de solucionar os próprios problemas, a menos que sejam externos as suas origens. Após a leitura de O mundo se despedaça, do nigeriano Chinua Achebe, livro publicado pela primeira vez em 1958 pelo escritor que viria a se tornar detentor em 2007 do prestigioso prêmio Man Booker International, é possível perceber claramente a impetuosa violência exercida pelo homem branco, ainda que sob a capa do cristianismo, no contato e na evangelização promovida em África, a partir de sua chegada nas sociedades locais.

Things fall apart – nome original do livro, já que Achebe é escritor africano de língua inglesa – inicia-se descrevendo a fama de Okonkwo, personagem que trouxera orgulho à sua aldeia ibo, em Umuófia, “onde tudo se tinha por perfeitamente regulado e imutável”, palavras de Alberto da Costa e Silva, no prefácio à narrativa. A comunidade ainda vivia seus dias de liberdade, não imaginando o que estaria por vir. Embora imperfeita, como qualquer outra sociedade, e até mesmo possuidora de idiossincrasias incompreensíveis àqueles fora de seu círculo, vemos um mundo em que vigoram os valores locais, o respeito aos deuses, e uma hierarquia não muito distinta daquela a que estamos acostumados a observar nas sociedades de origem europeia, baseada na acumulação de riqueza. A fratura que se apresenta entre Okonkwo e sua sociedade surge já no primeiro capítulo, na imagem do pai do personagem, uma vez que entre os ibos, como entre quase todos os povos semelhantes, valorizam-se os guerreiros, os lutadores e aqueles que enriquecem por esforço próprio. Seu pai, Unoka, desconversava quando o assunto eram as guerras e o trabalho na lavoura. Gostava de música, era exímio na flauta, mas devia muitos cauris (moeda local) a quase todos da aldeia. Como consequência, vivia com a família na mais profunda pobreza. Okonkwo, para fugir ao estigma paterno, preenche os requisitos. Desde cedo se destaca nas artes marciais, vencendo o lutador mais forte do povoado vizinho; é o mais bravo dos guerreiros; enriquece desde cedo com o trabalho e recebe ajuda de seu chi (o deus de cada pessoa, mais do que um anjo da guarda), conquistando posições e tornando-se um dos mais importantes membros do clã.

Chinua Achebe, ao escrever o romance, parte de uma situação que o põe em ligeira vantagem. O mundo que desfila nas páginas de sua narrativa já não existe há pelo menos 200 anos. O autor recria a vida em Umuófia, seus costumes, os títulos que os mais importantes obtinham, como os conseguiam, como eram as casas habitadas pela população, as negociações para os casamentos, as festas, uma sociedade em que deuses e homens estão quase que irmanados; até os mortos encontram um meio de permanecer entre os vivos, no cotidiano da aldeia, através dos egwugwu, mascarados que encarnam os antepassados dos integrantes dos clãs. O narrador tenta não tomar partido, pois há cerimônias de sacrifícios, como o assassinato de um jovem chamado Ikemefuna, entregue à aldeia ibo como pagamento por danos que alguns dos integrantes da aldeia vizinha causaram a Umuófia. Há também costumes totalmente estranhos a quem não pertence a essa sociedade africana, como o abandono de crianças na Floresta Maldita, quando nascem gêmeos. Enfim, as fissuras da narrativa e os titubeios daquele que nos conta a história nada mais são do que elementos premonitórios.

A menção ao homem branco acontece diretamente apenas após a primeira metade da narrativa. O fato, no entanto, está presente durante todo o tempo no subtexto. O narrador, apesar de ainda não descrever o futuro invasor, não consegue esconder que este está à espreita. Advirá a decadência e a destruição.

O herói, Okonkwo, cai em desgraça ao agredir uma de suas mulheres na Semana da Paz, período em que todos deveriam manter-se em vigília. Acaba também por matar acidentalmente um jovem durante a cerimônia fúnebre do membro mais idoso de Umuófia. É condenado a sete anos de exílio.

Retira-se com a família para a terra de sua mãe. Após ser acolhido pelos parentes dela, permanece todo o período de exílio trabalhando para enriquecer novamente e planejando sua volta. Deseja retomar o prestígio e as honras que possuía. Mas os deuses já não estão a seu favor. Ou melhor, talvez já estivessem em retirada. É época de um novo deus, fora das tradições ibo.

Ao voltar, o herói se depara com outra realidade. O local já fora tomado pela religião e, sobretudo, pelo tribunal do homem branco. O que resta ao habitante original e a sua família? Resta outra espécie de exílio: vive na aldeia em que nasceu, permanece entre os seus, mas o mundo tornara-se outro. A Ibolândia nunca será a mesma.

“O regresso de Okonkwo à terra natal não fora tão memorável quando desejara. Verdade que as suas belas filhas despertaram grande interesse entre os pretendentes e que, pouco depois, desatavam-se as negociações para os casamentos. Mas, à parte disso, Umuófia não parecia ter dado nenhuma atenção especial ao retorno do guerreiro. O clã sofrera tão profundas mudanças durante seu exílio, que estava quase irreconhecível. O povo só tinha olhos para a nova religião, o novo governo e os novos entrepostos. Ainda havia muita gente que considerava as novas instituições malignas, mas mesmo essa gente não pensava nem falava outro assunto e, sem dúvida alguma, não estava interessada no retorno de Okonkwo.”

Hoje, após a destruição de praticamente todas as sociedades que não seguiam o pensamento europeu, tanto através da força militar, como da econômica e ideológica, tenta-se preservar o que delas restou. Entre outras ações, criam-se leis para que as pessoas estudem suas origens africanas e as valorizem. Mas, como se pode observar, a história é contada pelos vencedores. Pior ainda (ou será melhor?), um livro lançado há 51 anos só agora chega-nos traduzido ao português, num tempo em que cresce o número de pessoas que agem como os primeiros missionários que chegaram a Unuófia, impondo governo e religião.

Que a arte e, sobretudo, a literatura consigam cumprir sua "missão". Cito, mais uma vez, o prefaciador da obra: “Este livro só existe porque Umuófia ingressou num império. Porque seus valores puderam ser descritos e traduzidos na língua do conquistador e, assim, tirar uma impressentida desforra.”

14:28 - 04/12/2009

terça-feira, dezembro 08, 2009

Logo ali, em Copacabana

Dani, escuta, é rápido. Sei que de repente você está esperando outra ligação, quero falar só mais uma coisa. É que domingo, na praia, arranjei um namorado. Nada sério, tu sabes, mas pude me divertir. E o homem é bem mais velho. Pode ser que tenha a idade do meu pai. Mas acho que deve ser um pouquinho mais jovem. Aconteceu assim, perguntei: você sabe me dizer em qual estação tenho que saltar para ir à praia no ponto tal? Ele me ensinou direitinho. Quando saltei e caminhei em direção à superfície, encontrei o homem de novo, dei um sorrisinho e segui. Ao chegar ao ponto da praia que desejava, o local estava repleto de pessoas. Mas sempre há espaço para uma moça bonita, não é mesmo? Tanto mais para uma jovem de biquíni mínimo, como o meu. Não te contei? Comprei um biquíni novo. E menor. Lindo. Não falta homem a me olhar. E lá caminhava eu, com o bumbum de fora, chamando de todos a atenção. Logo encontrei alguns conhecidos naquele pedaço da praia. Um moreno bonitão veio conversar comigo. Mora aqui perto, me reconheceu. Depois veio uma amiga dele. Ficamos juntos os três. Mas tudo na maior liberdade. Passei o protetor e entrei no mar uma vez. Tomei duas latas de cerveja. Ah, que arrepio, tanto o mar como, depois, a cerveja. Foi então que percebi o homem a quem pedira informação. Me acenou do quiosque. Ficou olhando pra mim um tempão. Fez sinal para que eu fosse até ele. Reparei que me convidava para acompanhá-lo no quiosque. Mas eu é que acabei fazendo que se aproximasse. Naquele momento, estava sozinha. Ele demorou um pouco, mas veio. Sentou-se ao meu lado e desfiamos uma conversa de que já nem sei qual o assunto. O homem parecia não se dar conta do meu corpo nem da minha nudez. Cheguei a pensar: o que ele está querendo? “Não entra n’água?”, instiguei. Entramos. Dentro d’água, pude senti-lo melhor. Mais uma vez fui eu que tomei a iniciativa: puxei-o pra mais perto. Agarrei o homem pela cintura. Ele envolveu meu corpo, percorreu, suave, os meus quadris. Desceu um pouco as mãos até tocar o meu biquíni. No momento pensei: “pena que não estou com um biquíni de lacinho!”. Você está rindo, Dani? Me acha maluca? Já sei, você pensa que sou tarada. Mas nada disso, só queria me divertir um pouco. Ele é tímido, sabe, muito tímido. Não tentou nada além das duas mãos na minha cintura, no máximo nos meus quadris. Eu quis que me desse um beijo. Mas lógico que nada falei. Seria demais, não? Um beijo, ainda mais dado por mim. Duvidas que não beijei o homem? Não, não beijei. Você sabe que sou atirada, mas não tive coragem. Tudo porque ele é bem mais velho do que eu. Caso fosse da minha idade, ou mesmo apenas um pouco mais velho, eu não o perdoaria. Agarraria o coitado ali mesmo. Após sairmos d’água, fui com ele ao quiosque. Disse que eu podia pedir o que quisesse. Sabes que não sou interesseira. Sou até bastante modesta. Acompanhei-o na cerveja, num tira-gosto simples, acho que batatas fritas. Antes de ir embora, peguei o número dele. Da casa e do celular. Ele mora ali mesmo, em Copacabana. Educadamente me convidou pra vir um dia de semana, jantarmos num restaurante de minha escolha, depois passearmos um pouco. O que achas, Dani? Não acreditas? Pensas que sou mentirosa? Não ficaria esse tempo todo no telefone pra falar bobagem. Mas não vou, não, Dani. Foi apenas um flerte de praia. Acho que deve ser ótimo ter um caso com ele. Mas prefiro ficar por aqui com o meu pessoal, neste bairro distante, longe da praia, longe do Rio que aparece na TV. Você iria, Dani? E logo no primeiro dia? Lembras que a tarada sou eu? Não se importaria em deixar que ele lhe tirasse o biquíni? Não sei, Dani. Tenho consciência de que teria muita vantagem, sei também que por aqui há muitas meninas que desejariam uma facilidade dessas. Você diz que sou sortuda, que não sei aproveitar as oportunidades e que meu negócio é trabalhar de garçonete, não é mesmo? Mas, Dani, o que tiver de ser vai ser. Caso meu destino seja esse homem, ele vai aparecer por aqui. Ou mesmo vou encontrá-lo novamente, ao acaso. Aí, quem sabe, me atiro nos braços dele.

sábado, dezembro 05, 2009

Livro sobre Deleuze mostra como a filosofia resiste à dominação

Haron Gamal, Jornal do Brasil

RIO - Há um momento em Deleuze, a arte e a filosofia no qual Roberto Machado afirma: “E quando Deleuze diz que numa linha de fuga há sempre traição, isso significa trair as potências fixas, as significações dominantes, a ordem estabelecida – o que exige ser criador”. Talvez, neste trecho, o professor titular de filosofia do IFCS e da UFRJ tenha ressaltado de modo genial um dos pontos mais importantes na obra do pensador francês. Devido à complexidade dos temas abordados e às novas nomenclaturas usadas para captar e expressar o real, Gilles Deleuze tenha-se tornado um dos filósofos de mais difícil assimilação na contemporaneidade. A colocação de Machado, no entanto, não deixa de ser bastante esclarecedora.

Costuma-se dizer que Deleuze é o filósofo da diferença. Ele tentou durante toda a vida desvincular sua reflexão de qualquer tipo de filosofia de identidade ou de representação, chegou a utilizar parte de teorias de filósofos aos quais se opõe, como Platão, para elaborar um modo de reflexão sutil, que não se situa em função de signos cristalizados, imagens ou outros sistemas de significação. A filosofia teria linguagem própria, não estaria submetida a qualquer tipo de representação, seja ela imagística ou vocabular. Daí a dificuldade de penetrar no universo do pensador, já que sua linguagem necessita de novos signos, de nova instrumentalidade, isto é, de nova sintaxe – para Deleuze, filosofia é criação – e, quando se utiliza da existente, torna outros os seus sentidos e significados.

Roberto Machado apresenta uma arqueologia da formação do pensamento e dos conceitos deleuzianos, desde Platão, Aristóteles, Espinosa, Kant e Nietzsche. Parte da filosofia como representação, desenvolvendo o pensamento do filósofo francês, um pensar oposto à representação e à identidade, e vai mostrar “o ápice da diferença”, que é o objeto talvez fundamental da filosofia de Deleuze. Machado transita pela história da filosofia não só com o objetivo de discutir a contestação do pensador à tradição, mas, sobretudo, para dimensionar as questões que este traz à tona para tornar a filosofia um tipo de arte, a qual, independentemente de modelos e referências, desenvolve linguagem própria e escapa dos instrumentos de dominação.

Já na introdução, que tem como título “A geografia do pensamento”, Machado privilegia o espaço, ou topos, em que a filosofia de Deleuze transita, em detrimento da história. Esse espaço apresenta uma espécie de zona de iluminação em que estariam confluentes, concomitantemente, conceitos de alguns filósofos canônicos que, mesmo tendo pontos contestados e desprezados pelo autor francês, intercedem na mesma geografia, permitindo a gestação de novos conceitos. Na verdade, uma espécie de “roubo” ou “apropriação”, palavras do próprio Deleuze, do pensamento alheio descontextualizado de sua natureza original a produzir novas potencialidades. O mesmo acontece na leitura que o filósofo faz de escritores, como Proust e Kafka, e de pintores e cineastas.

O livro é desenvolvido em oito partes, que tratam inicialmente de pensadores da tradição filosófica e dos diálogos possíveis a partir de suas obras com o próprio Deleuze. Mesmo que essa interlocução se dê, em relação a alguns desses pensadores, de modo negativo. Como exemplo, podemos citar a negação do platonismo, já que esse é situado como uma filosofia de representação e de identidade, inversão feita por Gilles Deleuze para afirmar uma filosofia que nega essa mesma representação e opta pela produção de conceitos.

A primeira parte aborda o “nascimento da representação”, onde são situados Platão e Aristóteles. A segunda, nomeada “O ápice da diferença”, culmina com o pensamento de Nietzsche – segundo Machado, o único filósofo a quem Deleuze não apresenta restrições.

As partes 3, 4 apresentam, respectivamente, “Kant, diferença e representação” e “A doutrina das faculdades”, que contém os pressupostos da representação e a diferença do empirismo em relação à abordagem deleuziana. A parte 5 tem como foco a relação filosófica entre Deleuze e Foucault, ressaltando a proximidade entre os dois pensadores.

Daí em diante, talvez uma das seções mais interessantes do livro, é abordado o instrumental teórico de Deleuze em relação às artes. Machado mostra como o filósofo, num diálogo com a literatura, a pintura e o cinema, elabora não uma reflexão sobre essas artes, mas utiliza-se delas como um novo modo de filosofar, situando filosofia e criação artística na mesma interseção geográfica. Tal empreitada não se daria apenas a favor do pensamento, mas tendo em vista que, para Deleuze, a filosofia visa a tornar linguagem o inefável e, até mesmo, o impensável. A prática filosófica teria a sua disposição um arcabouço conceitual em que arte e filosofia transitariam pela mesma via, a partir do momento em que ambas trabalham com a criação, coexistindo na mesma zona de luz ou sombra.

Vejamos uma passagem do livro em que Machado discute o que Deleuze apresenta sobre literatura. Inicialmente, utiliza uma pergunta do próprio filósofo: “O que se torna quem escreve?”. A seguir, o professor esclarece: “Sua resposta é que, se escrever é tornar-se, trata-se de se tornar outra coisa que não escritor, tornar-se estrangeiro em relação a si mesmo e a sua própria língua. E uma das maneiras como ele aborda a questão é pensando o processo de minoração do escritor através da relação entre literatura que ele chama de menor e o que também chama de 'povo menor'. Esse tema está no âmago da filosofia de Deleuze, explicitamente desde Kafka, por uma literatura menor. Ele aparece com clareza num pequeno artigo de 1978, 'Filosofia e minoria'. Esse texto opõe maioria e minoria qualitativamente e não quantitativamente. Maioria implica uma constante, um modelo, uma medida pela qual a maioria é avaliada. O que é ser maioria hoje? Ser homem, branco, ocidental, americano do norte ou europeu, masculino, adulto, racional, heterossexual, morador de cidade... O que é ser minoria? Desviar-se do modelo, ao mesmo tempo teórico e político. O minoritário é um devir potencial que se desvia do modelo. E Deleuze salienta que devir jamais é devir majoritário, que ser majoritário nunca resulta de um devir”.

Na verdade, pensar a diferença é possível quando a filosofia, mesmo se apropriando do cânone, destorça-o de modo a contestar modelos e representações quase sempre hegemônicos, em favor de um pensar que se situe numa zona de sombreamento, onde se dá uma espécie de resistência, cujo objetivo é contrapor-se a qualquer tipo de cristalização que redunde na perda da singularidade.

Por isso, para Gilles Deleuze, a arte se torna tão cara. Essa mesma arte que expressa questões aparentemente menores, mas que funciona como uma “máquina de guerra”, contrapondo-se ao “aparelhamento do estado”, este sempre se fazendo passar por hegemônico e fazendo-se crer preocupado com o bem-estar da maioria. Fato que não deixa de ser uma ficção.

13:07 - 13/11/2009