domingo, janeiro 10, 2010

República dos sonhos

Um romance interessante, que não é recente, mas merecedor de atenta leitura é República dos Sonhos, de Nélida Piñon. A autora, que já presidiu a Academia Brasileira de Letras, faz nesse livro um inventário do percurso de dois personagens oriundos da Espanha que se conhecem no mesmo navio que os traz, no início do século XX, ao Brasil. Desde cedo, eles percebem as duas faces do que significa terem deixado para trás a terra de origem e partido em busca do sonho.

Um desses personagens logo se mostra empreendedor e próspero. Após alguns anos, volta à terra de origem para pedir a mão da futura esposa, retorna com ela ao Brasil e tem numerosa prole, tornando-se, por fim, um rico e respeitado empresário. Enquanto o segundo permanece imerso no sonho e, na maior parte da história, na melancolia; continua fiel ao companheiro bem sucedido, frequenta-lhe a casa aos domingos, mas prefere manter a reserva do imigrante que não veio “fazer a América”, mas sim tentar valores morais ligados à satisfação da alma, como a admiração à cultura local, e a identidade aos despossuídos. Na verdade, descobre-se no decorrer da narrativa que esse último é um refugiado, remanescente de um povo tornado ilegal num passado não muito distante pelo decreto de um rei espanhol.

Madruga, o que enriquece, é oriundo da Galícia, terra violentada pelos reis de Castela, local a que foram impostos língua e costumes estrangeiros. A proibição de falar a língua materna, o galego, deixa o idioma à sombra, quase clandestino. Esse personagem percebe a violência que vigora sobre os povos minoritários na península ibérica, mas sua ânsia pelo sucesso o faz esquecer as frustrações, partindo para o Brasil em busca de amealhar fortuna que não conseguiria na terra natal. Deixa a casa paterna ainda adolescente, às escondidas, sem que os pais saibam de suas verdadeiras intenções, e viaja com dinheiro emprestado de um tio, que fracassara em tentativa semelhante. Sua determinação e vontade, no entanto, são tamanhas, que nada o impedirá de progredir. Venâncio, seu companheiro, não tem a mesma determinação, mas sua busca é outra, uma espécie de poesia, que só é permitida àqueles que se perderam em terra estrangeira, ou se tornaram para sempre estrangeiros. Talvez esse seja o personagem mais complexo. Sua dúvida e dor são pungentes, o amor que traz dentro de si é intenso, mas torna-se incapaz de manifestá-lo, a não ser pelo flanco da dor.

A questão principal do livro inicia-se com o diálogo e a camaradagem entre os dois imigrantes que aportaram em terra brasileira, ora expandindo-se ora contraindo-se nos descendentes de Madruga, em suas características pessoais, sucessos, fracassos e conflitos surgidos pela disputa da gerência do império estabelecido pelo pai, entrando no jogo um genro. Muitas vezes se percebe que o lucro empresarial não paga a dor e a melancolia daqueles que se sentem sempre estrangeiros.

A narrativa atravessa praticamente todo o século XX, estando seus personagens a acompanhar tanto os acontecimentos mais importantes do Brasil, como a Revolução de 1930, o Estado Novo, a redemocratização, a morte de Getúlio, a construção de Brasília, a fermentação política dos anos de 1960, o golpe militar e a resistência a ele; e, a nível mundial, a Guerra Civil Espanhola e a Segunda Guerra Mundial. Mas o principal não se encontra nesses fatos, a essência do livro se mostra no interior de cada personagem, podendo ser ele Venâncio, Madruga e a esposa Eulália, os vários filhos e filhas nascidos no Brasil, a neta Breta e até mesmo a criada e companheira da esposa por toda a vida, Odete.

Nas 748 páginas que compõe o livro, experimentam-se várias vozes. Madruga, já aposentado, o império econômico estabelecido, e em meio à briga entre os filhos, a filha e o genro pela direção dos negócios, é um dos narradores. Percebe-se, já na velhice, o ressentimento do personagem relativo à constante indagação sobre a validade do percurso escolhido. O conflito de interesses entre os descendentes, que não experimentaram as mesmas dificuldades vividas por ele, afligi-lhe a alma.

A narrativa se inicia com o casal já na velhice; a mulher se encontra às portas da morte, momento em que acontece o processo de reflexão sobre todo o passado da família. A neta, Breta, criada desde menina na casa do avô, é outra narradora, seu relato soa como extensão da descendência, e também como inventariante de todos esses sonhos. Parece ser a pessoa que herdou a arte de contar histórias do velho Xan, avô de Madruga, só que dessa vez será quem dará voz aos familiares que a antecederam e aos contemporâneos a ela. Simpatizante da resistência aos militares nos anos de chumbo, acaba exilada e, por isso, torna-se companheira de infortúnio do próprio Madruga, que também na verdade deixara a terra de origem, embora ele, premido pela pobreza e pela falta de perspectivas quanto à vida de camponês.

A grande habilidade de Nélida Piñon em conduzir essa saga de imigrantes e sua ramificação no Brasil está em dominar o tempo da narrativa, percorrendo com destreza diversas fases da vida de Madruga e da família, um percurso que foge à cronologia habitual, mas que não arremessa o leitor em vazios que o deixem perdido. Uma lembrança torna-se sempre motivo para que a narrativa mergulhe num outro segmento de tempo, permitindo o conhecimento necessário sobre a vida pregressa dos personagens, seus sentimentos e sofrimentos. O retorno ao momento em que a história havia mudado de curso ocorre sem prejuízo para a economia total do romance.

Talvez não tenhamos na literatura brasileira um romance tão ousado, no sentido de reconstruir a vida de várias gerações, tanto na terra de origem, Sobreira, na Galícia, como no Brasil. Uma falta que se preenche em termos de discussão multicultural, num país formado pela constante vinda de imigrantes de todas as partes do mundo e que prima pela mestiçagem.

Quem sai ganhando, no entanto, é a literatura, por se tornar uma espécie de guardiã da memória e recuperar um passado que reflete ora a luz ora a sombra do que é viver – bem sucedido materialmente ou não – em terra estrangeira.

A república dos sonhos
Nélida Piñon
Ed. Record, 748 páginas.