sábado, agosto 31, 2013

Ensaio e memorialismo: os livros de Pedro Nava

Michel de Montaigne viveu no século 16. Ao escrever seus famosos ensaios, não tinha a pretensão de angariar um grande público leitor. Pois como se sabe, a literatura da época era divida entre os escritos religiosos, que na verdade tentavam preservar a Igreja Católica dos reformistas, os primeiros lampejos do que mais tarde se viria a chamar de ciência, e o que sempre se costumou nomear literatura e filosofia, na verdade uma herança da antiguidade clássica. O escritor francês, com seus textos, inaugurou um novo gênero que ainda não possuía nem nome nem leitores, o ensaio. Alguém há de perguntar: por que então Montaigne escrevia? Segundo ele, para satisfazer a si próprio, para que pudesse entender melhor a vida e para acostumar-se à ideia de que era impossível escapar à morte. E assim viveu o autor. Sua escrita traz tal sensualidade, que talvez tenha inspirado Roland Barthes quatro séculos depois a escrever “O prazer do texto”. Montaigne viveu a liberdade (que sempre se quis como um direito humano) por meio da exposição de suas ideias e da construção de sua literatura. Em meio a um período crítico da história da humanidade, fins da Idade Média e começo da era moderna, o escritor talvez se tenha tornado o primeiro intelectual até certo ponto independente, um não especialista que, com erudição, disserta sobre os mais variados assuntos e, ainda que se sentisse cristão, fundamenta suas ideias não no que a religião prega, mas na dúvida que todo leigo traz dentro de si, o desamparo a que o homem está submetido, e o inevitável fim que, mais cedo ou mais tarde, teremos de enfrentar.

Assim como os textos do clássico francês, a literatura sempre necessitou daqueles que a utilizassem para discutir não apenas a condição humana, mas também para preservar a memória. Nessa linha de filiação, situa-se o memorialismo, gênero que resgata o passado e o guarda da perspectiva de desaparecimento. O homem de carne e osso está fadado à morte, mas suas obras não. Enquanto houver um humano sobre a face da terra, este deverá saber que é herdeiro de tudo que aqui foi produzido, sobretudo quando se trata de ideias e arte.

Guardadas as devidas proporções, nossa literatura apresenta um herdeiro clássico dessa tradição que, no Ocidente, começou com Montaigne, realizou-se plenamente no século 20 com Marcel Proust, e tem Barthes como espectador e estudioso privilegiado. Na literatura brasileira, esse herdeiro, pouco conhecido principalmente entre os leitores mais jovens, chama-se Pedro Nava (1903-1984). Sua obra, em grande parte memorialista, traz no bojo a discussão da condição humana, ensaística que permeia os livros de todo escritor que sobrevive ao seu tempo. Filho de médico, nascido em Juiz de Fora Nava tornou-se cedo também médico famoso e reconhecido, tendo ocupado importantes cargos na administração da saúde pública. Mas a medicina não lhe foi suficiente. Quando ninguém esperava, já em tempo de aposentadoria, despontou como escritor requintado trazendo à tona o passado não só em que aparece como protagonista, mas também o da intelectualidade brasileira. Seu primeiro livro, “Baú de ossos”, resgata não apenas o tempo perdido de sua família e de parentes próximos que remontam ao século 19, mas traz muitas reflexões sobre o período. Desde cedo o autor privou da convivência com pessoas que vieram atuar como atores principais na vida cultural, intelectual e política do país, como o escritor e poeta, seu tio, Antônio Salles (amigo de Machado de Assis, recusou candidatura à Academia Brasileira de Letras) e entre muitos outros com os irmãos Afrânio e Afonso Arinos, e Prudente de Morais Neto.

Em “Balão cativo” o autor remonta à sua infância em Juiz de Fora, cidade para onde voltou logo após a morte do pai. Rememora a vida provinciana local, as pessoas famosas que desfilavam na rua principal da cidade, homens e mulheres que na verdade também frequentavam a sua casa. Depois relata a mudança com a mãe e os irmãos para a casa do avô materno, em Belo Horizonte. Na recente capital mineira, ingressa no internato do Colégio Anglo-Mineiro, instituição dirigida por ingleses que fez fama à época porque abria mão do latim, do catecismo e primava pela prática de esportes, principalmente do recém-introduzido futebol. Depois, muda-se para o Rio onde passa a morar com os tios, no Engenho Velho. Na verdade, sua vinda para a capital da república acontece devido à necessidade de continuar os estudos ingressando, já adolescente, no internato do Colégio Pedro II, em São Cristóvão. Há toda uma pintura da sociedade carioca da segunda década do século 20, dos passeios pelos arredores, de sua assídua frequência ao cinema Velo, na rua Haddock Lobo, das idas de bonde ao centro da cidade acompanhando o tio Salles, onde visitavam o que havia de mais importante, inclusive a livraria Garnier, na rua do Ouvidor. Ali, ainda menino, foi apresentado a vários escritores famosos à época, como Coelho Neto, João do Rio, Gilka Machado, Silva Ramos, João Ribeiro, Alberto de Oliveira, Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac e até a um Lima Barreto “todo ardido e suado de vir rolando de seus subúrbios”.

A obra memorialista de Nava é composta por seis volumes: “Baú de Ossos”, “Balão Cativo”, “Chão de Ferro”, “Beira-Mar”, “Galo-das-trevas” e “Círio perfeito”.

É interessante constatar que, ao contrário do que se diz por aí, o Brasil não é um país de memória curta. Houve um escritor como Pedro Nava, alguém que se preocupou em preservar não apenas a memória da vida familiar, mas também a memória física e espiritual dos lugares por onde andou, não deixando de lado a reflexão.