terça-feira, janeiro 29, 2013

Doutor

O empregado do bar aproximou-se respeitoso da mesa onde se encontrava Arlindo.

– Doutor, tem uma moça aí querendo falar com o senhor.

– Que moça?

– Aquela – disse apontando para o fundo do bar –, que está perto do banheiro feminino.

O mercadão de Madureira começava o dia de terça-feira sem muito movimento. O local, que é visitado por todo tipo de gente e serve principalmente a quem procura mercadorias baratas, possui em seus pequenos boxes e lojas comércio bastante variado. Ali, vendem-se diversas bugigangas: material para festas, material de papelaria, artigos de armarinho, artigos religiosos, de cabeleireiro, flores, balas e doces (estes procurados por ambulantes que trabalham nas ruas e nos transportes coletivos), ferragens, pequenos animais, rações entre outras; ultimamente, já há até mesmo a presença de lan houses. Nas horas de movimento, lanchonetes e bares servem de refúgio àqueles que precisam de alguns minutos de descanso, desejam matar a fome ou saciar a sede através de um copo de refrigerante ou mesmo de uma cerveja.

Num desses bares, a presença de Arlindo, ou Doutor, como é mais conhecido, é diária. Sua mesa é forrada com uma toalha especial, toda quadriculada, e vez ou outra ele seca o suor da testa por meio de um guardanapo de pano, que, no local, é também exclusividade dele. Este senhor, um tanto gordo e vestido de terno de linho branco, controla o jogo no local. Dizem que a toalha quadriculada é para debochar dos policiais, já que estivera preso inúmeras vezes mas sempre se saíra bem, tornando-se cada vez mais próspero.

– Diga a ela que é pra vir aqui.

O empregado fez um leve movimento com a cabeça e se retirou. Instantes depois, a moça se aproximou.

– Bom dia – disse entre tímida e enigmática.

– Bom dia, sente-se, tenha a bondade.

– Obrigada.

– Está servida? – perguntou enquanto enchia meio copo, com água mineral.

– Não, não, obrigada – agradeceu mais uma vez.

– Em que posso lhe ser útil?

– Gostaria de pedir um favor ao senhor.

Arlindo assentiu num gesto largo e bonachão; repousou o copo sobre o mesmo lugar onde estivera e a mirou por cima dos óculos de leitura, que ele raramente retirava.

– Qual a sua graça?

– Lindimar.

– Lindimar, bonito nome. Lembra-me das vezes em que trabalhei em Niterói.

– Uma amiga indicou-me o senhor.

– A mim? – pareceu surpreso.

– Sim. Diz que o senhor é muito afetuoso e, cá entre nós, não resiste às mulheres bonitas.

Arlindo desfez a posse e se pôs a rir, alisou de modo automático um pequeno trecho do forro da mesa e a olhou de novo, voltando à seriedade anterior.

– Está calor, peça alguma coisa – dirigiu-se a ela como que para quebrar o constrangimento.

– Não, não desejo nada, obrigada.

– Então me fale, vai, qual é o favor que desejas de mim?

– Uma pulseira de ouro.

Doutor, que já passara por quase tudo na vida, não achou surpreendente o pedido. Ainda repetiu as duas últimas palavras da moça, só que em forma de pergunta:

– De ouro?

Ela meneou a cabeça afirmativamente e se fez de encabulada.

– Já que seu pedido é irrecusável, fechamos o negócio.
Sinalizou ao garçom e pediu mais uma garrafa de água.

***

A Estrada do Portela é avenida de tráfego intenso a qualquer hora do dia. O viaduto, que atravessa a linha férrea, tem como cenário quase permanente ônibus e automóveis, o que intensifica a paisagem urbana de modo irremediável. Imagine-se o local às duas horas da tarde, num dia de verão.

O dia era o seguinte ao encontro no bar do mercadão. Arlindo e Lindimar atravessaram pela passarela. De cima, puderam observar o fluxo de pessoas nas ruas principais e na própria estação de trens. Ao desceram no lado oposto, caminharam durante alguns minutos pela calçada estreita. Fazia muito calor. Doutor não abandonava o lenço branco, que trazia em uma das mãos; vez ou outro o usava para secar o suor. Seguiram por uma rua secundária, acompanharam o casario antigo e depois entraram num velho sobrado. No segundo andar, havia uma tabuleta: Jóias – ouro e prata – Irmãos Xavier.

O homem de terno de linho branco cumprimentou um rapaz, o único funcionário do local. Ao reparar o ilustre visitante, pediu que aguardasse e desabou numa assustada correria em busca de um dos sócios da loja. Alguns minutos depois, entrava Seu Moysés, um senhor de mais ou menos sessenta anos, corpo magro, cabelos brancos, óculos estreitos. Procurava sempre demonstrar muito interesse sobre tudo que vendia; agia como se cada objeto fosse verdadeira relíquia.

– Doutor, que grande prazer tê-lo aqui, quanto tempo! O senhor não vai ficar de pé, aí, entre, sente-se, aqui atrás do biombo há uma poltrona confortável, tenha a bondade.

– Não, obrigado. Agradeço a gentileza. Estou com pressa. Peço que atenda a moça. É gente minha. Ela quer uma pulseira. De ouro, seu Moysés, de ouro.

– Oh, claro, pode deixar, será um grande prazer tê-la como cliente.

Arlindo cumprimentou-o apenas com um breve gesto, depois sorriu para Lindimar e disse:

– Procure-me guando tiver tempo.

Ela agradeceu com ligeiro sorriso.

Depois, Arlindo desceu a escada, seus passos eram firmes e compassados;
esfregava o rosto com o pequeno lenço.

***

Alguns dias depois, recebeu de novo a visita de Lindimar.

– E, então, gostou da pulseira? – perguntou como que surpreso.

– É linda! Adorei. Vim pra mostrar a você.

– Oh, que beleza! – exclamou enquanto tomava nas mãos o braço da moça –, é realmente maravilhosa.

– Também vim até aqui para agradecer.

– Não há de quê. Sempre que desejar alguma coisa e isto estiver a meu alcance, pode contar comigo.

Lindimar parecia querer dizer algo mais, mas não se sentia à vontade. Depois ensaiou algumas palavras.

– Sabe o que é? Vim lhe fazer outro pedido.

– Outro? Tenha a bondade...

– Quero que compareça a uma festa que vou dar lá em casa.

– Oh, queira me desculpar, mas não sou homem de festas.

– Será algo bastante simples e reservado.

– Olha, sabe o que acontece?, as pessoas me aborrecem, todos me conhecem, sempre querem algum favor.

– Ninguém lhe pedirá coisa alguma, garanto. E a festa será bastante íntima.

– Íntima?

– Isso, íntima!

– Então, é de se pensar, é de se pensar...