terça-feira, dezembro 06, 2011

Angústia, de Graciliano Ramos, comemora 75 anos

Há livros que, publicados, não se apresentam como o autor pretendia, mas acabam saindo do jeito que os leitores gostam. Foi o que aconteceu com Angústia, de Graciliano Ramos. O autor tinha a intenção de revisar os originais mais uma vez e achava necessário eliminar pelo menos um terço da narrativa. Mas as circunstâncias não permitiram, Graciliano estava encarcerado como preso político nos porões do Estado Novo.

Para a comemoração dos 75 anos de lançamento do romance, a editora Record traz a público nova edição deste que é o terceiro livro do autor de São Bernardo, acrescido de sua fortuna crítica. Resenhas e textos contemporâneos ao lançamento ou mesmo matérias sobre o livro, que apareceram no decorrer do século 20, fazem parte de um apêndice, no final da edição.

Participam autores do porte de Otávio Tarquinio de Souza, Adonias Filho, Nelson Werneck Sodré, Otávio Dias Leite, Jorge Amado, Peregrino Junior, Rachel de Queiroz, Álvaro Lins, Ferreira Gullar etc., incluído Nicolao Montezuma, pseudônimo atribuído a Carlos Lacerda. Dentre todos esses textos, destaca-se o de Jorge Amado. O autor baiano afirma: “Esse romancista nordestino sabe bem o que quer fazer. Porque a impressão inicial que Angústia nos dá é de livro onde nada é inútil, nada é forçado e onde também nada falta.” Adiante, continua: “Sei de alguém que não conseguiu passar da página 30 desse romance com medo de enlouquecer.” Há também referência a um texto de Antonio Cândido, que classifica o livro como: “romance excessivo [que], de certo modo, contrasta com a discrição e o despojamento dos demais, o mais ambicioso e espetacular.” Dois posfácios, um de Otto Maria Carpeaux e outro de Silviano Santiago, fecham o livro.

Angústia reflete o drama de todo artista marcado pelo destino, alguém que prevê o próprio futuro grandioso mas, para sobreviver, precisa sucumbir ao ridículo e comezinho do dia a dia, vendo-se obrigado a emprestar seu talento a escritores de repartição, ou mesmo alugar sua pena àqueles que desejam rascunhar algum elogio fútil a seus superiores. Na verdade, o grande drama de Luís da Silva, protagonista e narrador do romance, não é a perda da mulher, que nem chegou a amar, nem o crime que cometeu contra Julião Tavares, esnobe filho de comerciantes abastados. Sua tragédia pessoal é a própria obra que se avizinha, disfarçada de simples relato, fazendo crer que o narrador é o escritor, como é comum às narrativas em primeira pessoa. Por isso, não é à toa que a história possa ser percebida, já nas primeiras páginas, como tentativa literária de um autor fracassado. A angústia acaba se tornando a perspectiva de não saber empreender o próprio talento, sempre urdido (nos grandes autores) em meio a intenso sofrimento e à vida trágica. Graciliano Ramos soube captar bem este lastro do seu tempo e viveu na pele a própria tragédia.

Outro aspecto que pode ser observado, como bem salienta Elizabeth Ramos na introdução, matéria também de uma revista norte-americana sobre o livro, é o seguinte: trata-se da “crônica da condição do intelectual nos países subdesenvolvidos da América Latina.” Questão premente, porque todo intelectual que se pretende livre, que não pertence aos círculos universitários nem aos círculos do poder, se vê condenado à solidão e ao silêncio.

O livro tem estrutura circular, começa pelo final. Luís da Silva já está se recuperando e relembra o último ano de sua vida, quando tudo parecia ir bem até conhecer Marina, uma moça que se mudou para a casa ao lado da sua. O narrador conta sobre sua vida de funcionário público, sobre os tipos locais, a luta política, o avanço do autoritarismo, a hipocrisia do meio intelectual em que está inserido, a vida nos cafés, o cinema local e o bordel. Também é assaltado por lembranças da infância. Aqui comparece a característica pela qual Graciliano Ramos se tornou mais conhecido, e que, neste romance, ocupa espaço periférico: a vida do sertanejo nordestino.

Angústia, no entanto, mostra um Graciliano totalmente compatível com a vida na capital, privilegiando a introspecção muito antes de ela virar moda e ter sido explorada até as últimas consequências por uma escritora como Clarice Lispector.

O que se pode concluir é que Angústia não perdeu nem ameaça perder tão cedo a atualidade. Lido 75 anos depois de lançado, o romance também parece abordar, até de modo mais acurado, uma entre as principais questões dos dias de hoje: as doenças psíquicas, ou mesmo a loucura. Sem conhecimento profundo de Freud e de seus seguidores, ausente ainda Focault, o autor constrói um narrador que mergulha nas sutilezas da alma ao descrever sua “doença”, e consegue dissecar aquela espécie de mal que ronda o homem moderno, a solidão e a melancolia.

Angústia, Graciliano Ramos
Editora Record
382 páginas
 

domingo, novembro 13, 2011

Resenha de: O duplo, de Fiódor Dostoiévski

Publicada no Jornal do Brasil em 26/10/2011

O duplo, segundo livro de Dostoiévski, publicado agora pela Editora 34, traz a questão que permeia toda grande literatura, a metáfora. Embora o gênero romance tenha características referenciais, nas mãos de escritores como o consagrado autor de Irmãos Karamázov, torna-se verdadeiro poema. Não é à toa que tenha como subtítulo: “Poema petersburguense”.

O romance se inicia com o despertar do protagonista: “Faltava pouco para as oito da manhã quando o conselheiro titular Yákov Pietróvitch Golyádkin despertou de um longo sono, bocejou, espreguiçou-se e por fim abriu inteiramente os olhos.” Na verdade, Golyádkin desperta para uma inesperada realidade: não demorará a encontrar o seu duplo, alguém que possui exatamente o seu nome e que, pouco a pouco, lhe vai roubar o lugar.

Dostoiévski, neste romance, introduz outro forte componente: o fluxo da consciência. Seu personagem principal estará a todo momento, desde que se descobre ludibriado e substituído, remoendo-se num diálogo interior que ocupará grande parte da narrativa. Há páginas e páginas que se mantém no mesmo parágrafo. E estamos ainda em 1846, ano em que o romance é publicado. James Joyce nem sonhava em vir ao mundo.

O universo dostoievskiano, onde impera uma terrível solidão, já está presente neste romance, classificado pelos críticos como romance de sua “primeira fase”. Considero, no entanto, errônea essa posição. Muitos críticos brasileiros fizeram semelhante afirmação sobre Machado de Assis a respeito dos seus quatro primeiros romances: Ressurreição, A mão e a luva, Helena e Iaiá Garcia. O Dosotiévski de O duplo já possui todos os componentes do escritor das obras consideradas da “maturidade”, como Crime e castigo, O idiota, Os demônios e Irmãos Karamázov.

O universo humano de São Petersburgo se apresenta como opressor. O ar é sufocante. Tanto entre os ricos, como entre os funcionários subalternos e criados, reina a desconfiança. Os subalternos colocam-se num espantoso servilismo, cada ser humano busca obter, a qualquer preço, as benesses da alta sociedade.

A perspectiva de um amor impossível por uma mulher, já que ela pertence à nobreza, também é mais uma das frustrações do senhor Golyádikin.

O livro, dividido em treze capítulos, relata em ordem cronológica, desde o despertar do personagem, sua saída numa carruagem alugada para ir a uma festa a que supostamente fora convidado, uma visita a seu médico, o dia a dia de trabalho, os personagens que tramam contra ele, a chegada de seu duplo até, como é prenunciado desde o começo, sua total derrocada.

Uma questão, no entanto, que não pode ser descartada na narrativa é a loucura. Tudo que Yákov Pietróvitch Golyádkin pensa e vivencia na verdade não deixa de ser um desdobramento de sua mente. O autor russo se interessou, como muitos de seus contemporâneos, pelos transtornos psíquicos. No caso deste romance, porém, o louco não é apenas o martirizado protagonista, mas todos os outros personagens. Esta ressalva é feita não propriamente ao autor, mas à grande parte da crítica, que atribui a presença desse duplo apenas como decorrência do embate interno do personagem. O seu aparecimento, entretanto, não se dá somente a Golyádkin, mas a todos aqueles que o circundam. Estes nem mesmo se surpreendem que o duplo tenha o mesmo nome e provenha da mesma região do protagonista. Mais uma vez é fácil perceber a questão principal que Dostoiévski nos coloca: o adoecimento de todo um contingente humano sufocado sem piedade alguma pelo “século industrial” (palavras do narrador), e pelas consequências advindas desse novo tipo de vida em sociedade, marcado pela falta de sentido, pelas disputas e pleno de traições.

Várias vezes Golyádikin pede ao cocheiro que o leve até a ponte Izmáilovski. Quando é escorraçado da festa para a qual não fora convidado, corre “para o cais da Fontanka, ao lado da ponte Izmáilovski”, ali se depara pela primeira vez com o seu duplo. Talvez na obra do autor russo, a presença constante de pontes seja a tentativa de junção entre dois mundos absolutamente impossíveis. Como conciliar a razão, ou mesmo a verdade, com o lado mais sombrio de cada ser humano? Como compatibilizar os valores cristãos, tão caros a Dostoiévski, com os interesses cada vez mais mesquinhos da nova ordem econômica e social? A obra do autor russo já sinaliza o caos que está por vir: a vida contemporânea com sua perspectiva de deslumbramento e inviabilidade.

Há de se louvar o projeto da Editora 34 em traduzir e publicar praticamente toda a obra de Dostoiévski diretamente do russo, com bastante empenho e meticulosidade. É digno de nota o posfácio, escrito pelo próprio tradutor, Paulo Bezerra. As ilustrações de Alfred Kubin acentuam o caráter expressionista dos personagens dostoievskianos. 

Haron Gamal – doutor em literatura brasileira pela UFRJ

terça-feira, novembro 01, 2011

Vim apenas para lhe dar um beijo

Luísa segurou a xícara de café e a levou à boca. Enquanto saboreava o primeiro gole, olhou o vasto salão do segundo andar do aeroporto Santos Dumont. A funcionária que verificava os bilhetes junto à entrada da sala de embarque mantinha-se concentrada no trabalho. Olhando o lado esquerdo era possível ver a revistaria, uma loja de material esportivo, uma de souvenires e a Kopenhagen. Do lado direito havia uma charutaria e uma loja que exibia artesanato brasileiro. Luísa repousou a xícara sobre o pires e pegou uma das torradas. A manhã de terça-feira ainda estava tranquila no aeroporto, ao menos no salão próximo ao embarque, sobravam algumas mesas no café, até mesmo uma garçonete vinha perguntar aos clientes se desejavam mais alguma coisa, fato incomum em dias de grande tumulto. Através dos grandes vidros à direita, era possível observar a parte externa do aeroporto. As pistas do aterro tinham movimento intenso, mas o tráfego fluía com rapidez; mais adiante, via-se o Museu de Arte Moderna; ao fundo, o Pão de Açúcar; do lado oposto à baía, os prédios altos compunham a paisagem daquele pedaço do Centro que surpreende quem chega ao Rio pelo Santos Dumont.

Um homem alto e de porte atlético, que deveria estar na casa dos trinta anos, acenou ainda de longe quando percebeu Luísa em uma das mesas. Ela terminava o café, mas levantou a mão esquerda e correspondeu ao aceno. Ele aproximou-se, beijou-a no rosto e sentou ao seu lado.

“Querida, você sabia que eu não ia deixar que embarcasse sem uma despedida.”

“Não queria incomodar, viajo toda semana, vamos estar juntos de novo na sexta-feira.”

“Não é incômodo algum, e para mim nunca é demais estar com você.”

“Amor,  você precisa se acostumar, depois que nos casarmos minha vida não vai mudar em nada, preciso trabalhar, e, além disso, você tem o escritório, não deve se atrasar, vir aqui para se despedir de mim custa tempo e dinheiro.”

“Querida, você sabe que quanto a isso não há problema algum, sou um dos sócios da empresa, logo estarei de volta, vim apenas para dar um beijo em você”, sorriu.

A garçonete se aproximou.

“Ainda temos tempo ou você já precisa ir?”, ele perguntou à Luísa.

“Tenho dez minutos.”

“Então há tempo para eu tomar um expresso”, olhou para a garçonete, que anotou o pedido.

“Mais alguma coisa, senhor?”

“Não, apenas o café.”

Voltou-se para a mulher:

“Você me ama, não? Me deseja sempre ao seu lado?”

“Amo, quero estar sempre ao seu lado, mas não posso deixar o meu trabalho, não devo jamais renunciar à minha vida profissional.”

“Querida, não estou pedindo isso a você, trabalhe, atue cada vez mais, vou ficar feliz por vê-la bem sucedida.”

“O sucesso será nosso.”

“Isso mesmo, nosso; não se preocupe, vim aqui apenas para lhe beijar”, aproximou o rosto ao da mulher e a beijou mais uma vez.

A garçonete apareceu com o café. Ele procurou o açúcar, rompeu o lacre e colocou o pozinho granulado dentro da xícara.

“Quando não havia o café expresso, colocava-se o açúcar primeiro”, ela falou e sorriu.

“Você viveu nesse tempo?”, ele mexia o café com a pequena colher.

“Que tempo?”

“O tempo em que o café expresso ainda não existia.”

“Não”, ela falou e olhou o relógio, “minha mãe é que diz isso, quando faz café fala para colocarmos antes o açúcar; caso não seja assim, o café não terá o mesmo gosto nem a mesma temperatura.”

“Isso são coisas de antigamente.”

“Minha mãe não é velha, você sabe, tem apenas cinqüenta e três anos.”

“Sei, a mãe é jovem como a filha, e a filha é bonita como a mãe, mas só que não tem as mesmas ideias.”

“Que idéias, amor?”

“Sua mãe é caseira”, afirmou titubeante.

“Você com essa história de novo, sei que não está nada satisfeito com a minha profissão,  me quer ao seu lado todos os dias, precisamos conversar melhor quando eu voltar.”

“Desculpe, querida, não foi isso o que quis dizer.”

“Foi sim, você sempre se trai, na verdade não aceita a minha profissão, não quer que eu viaje toda semana, preferia que eu ficasse em casa, como fica a minha mãe.”

“Não, por favor, não é isso, não vamos discutir, vim ao aeroporto apenas para dar um beijo em você.”

“Sei, agradeço o seu beijo, mas quando eu voltar precisamos conversar melhor sobre o seu pedido de casamento, tenho sérias dúvidas...”

“Não, querida, por favor, você sabe que eu te amo.”

Ela se levantou, segurou a bagagem de mão que estava sobre a outra cadeira.

“Tenho que ir, depois conversamos.”

“Querida, espere, vou com você até a entrada do embarque.”

“Não precisa, acabe o seu café, você ainda tem que pedir a conta, até logo.”

“Querida, telefono à noite.”

“Não, não telefone, vou trabalhar até muito tarde.”

“Querida, quero lhe dar mais um beijo...”

Luísa já ia longe. Apenas após passar pela funcionária da entrada da sala de embarque foi que se virou para dar um aceno, mas ele se embaralhou com o dinheiro que tirara da carteira para pagar à garçonete. Luísa deu as costas, a porta automática se fechou e ela desapareceu.

sexta-feira, outubro 07, 2011

Resenha de: Guerra aérea e literatura, de W. G. Sebald

Matéria publicada por Haron Gamal no Jornal do Brasil e Folha Carioca

Em Guerra aérea e literatura (Companhia das Letras, tradução de Carlos Abbenseth), W. G. Sebald, ao contrário do que estamos acostumados a ler em seus livros – que na maioria das vezes tratam de memória e ficção –, apresenta dois ensaios, tendo um deles o mesmo nome do livro acrescido do subtítulo: “Conferências de Zurique”; o outro, “O escritor Alfred Andersch”, reprodução de um artigo que publicou nos anos 1990 na revista Lettre, em que faz a revisão da vida e obra deste autor alemão.

Em ambos os textos, Sebald, que adotou a Inglaterra para viver e trabalhar até à sua trágica morte em 2001, questiona o exercício da literatura em períodos-limite, como durante a Segunda Guerra Mundial.

O terreno explosivo e de escombros que ele vai trilhar pode ser pincelado com suas próprias palavras: “A queixa sempre repetida de que até hoje não foi escrita a grande epopeia alemã da guerra e do pós-guerra tem algo a ver com esse fracasso (de certo modo inteiramente compreensível) diante da violência que representa a absoluta contingência gerada por nossas cabeças obsessivamente metódicas.” Em outras palavras: para a razão, torna-se incompreensível e indizível a indústria da guerra e da destruição.

Aqui, sob minha análise, arriscaria insinuar que essa incapacidade de absorver o real se aproxima da posição lacaniana, segundo a qual este mesmo real só pode ser captado e expresso pelo simbólico, sempre temerário e vacilante, muitas vezes incapaz de traduzir a experiência traumática, mostrando-se, consequentemente, em colapso.

No primeiro ensaio, Sebald questiona o silêncio dos escritores alemães tanto durante a guerra quanto no pós-guerra, tornando a referência ao período em que as cidades da Alemanha foram quase totalmente arrasadas verdadeiro tabu. Entre aqueles que ficaram no país, como Walter Von Molo e Frank Thiess, diz-se que “se abstiveram de qualquer comentário a respeito do processo e do resultado da destruição porque temiam cair em desprestígio junto às autoridades de ocupação no caso de uma descrição próxima da realidade.”

O escritor constata que, mesmo finda a guerra, com a chegada de escritores que estavam no exterior ou nas frentes de batalha, o silêncio persistiu, tendo sido poucos os que decidiram escrever sobre o período, e mesmo assim quando o fizeram foi com uma escrita bastante pálida. Até mesmo Heinrich Böll, que teve como programa a Literatura dos Escombros, “mostra-se sintonizado com a amnésia individual e coletiva, e guiado por processos pré-conscientes de autocensura.” Seu livro O anjo silencioso, que dá uma idéia aproximada da dimensão do horror, apesar de pronto na década de 1940 só foi publicado em 1992. Além de Böll, apenas poucos autores trataram do assunto, como Hermann Kasack, Hans Erich Nossack, Arno Schmidt e Peter de Mendelssohn. Sebald analisa, em detalhes, o que cada um escreveu.

No segundo ensaio, “O escritor Alfred Andersch”, o autor faz um balanço da obra e, sobretudo, da imagem que Andersch tentou criar durante e após o nazismo. Chamado ironicamente de littérateur por Sebald, em momento algum o ensaísta o poupa, mostrando não apenas os pontos falhos de sua obra, mas também – citando estudiosos contemporâneos ao escritor em questão – a falsificação que ele efetivou para obter benefícios durante o período do nacional socialismo e depois a modificação que tentou empreender em sua biografia para se mostrar vítima do nazismo.

Embora o autor de Emigrantes e Austerlitz enumere as baixas provocadas pela guerra aérea em território alemão, cite políticos e estrategistas aliados que discutiram a necessidade ou não de empreitada de tal envergadura (apenas a Royal Air Force lançou 1 milhão de toneladas de bombas sobre a zona inimiga; 131 cidades foram atingidas, sendo que algumas foram totalmente arrasadas; a guerra aérea deixou 600 mil vítimas civis na Alemanha; 3,5 milhões de residências foram destruídas; no final da guerra havia 7,5 milhões de desabrigados), o escritor não apela para o sentimento de autocomiseração nem coloca a nação alemã como vítima, inclusive afirmando que um país que promovera tamanhas atrocidades, com os campos de extermínio, não estava em posição de reclamar nem exigir qualquer reparação após o conflito. A questão principal, como já mencionei, é a incapacidade de os escritores discutirem, principalmente no universo da ficção, a Alemanha durante a guerra e no período conhecido como de reconstrução.

Como conclusão, podemos dizer que as colocações de Sebald nos levam a especular sobre pelo menos dois pontos. O primeiro deles é a possibilidade de a literatura (e por extensão qualquer tipo arte) se desarticular como linguagem em períodos altamente traumáticos. O segundo, caso o anterior não seja verdadeiro, é o seguinte: se poesia, ficção, teatro e crítica não possuem o poder de convencer o ser humano a se manter afastado das guerras, poderiam ter como objetivo promover um real inventário das perdas, impedindo que as bombas, além de destruírem fisicamente as cidades, levassem também de rodo a tradição e a memória.

quinta-feira, outubro 06, 2011

Resenha de: O romance histórico, de George Lukács

A partir da tentativa de criação de uma estética marxista, George Lukács (1885-1971), em O romance histórico (Boitempo Editorial, tradução de Rubens Enderle), livro escrito em seus anos de exílio na Rússia stalinista, aborda como as revoluções interferiram no gênero e como este serviu de instrumento para a reflexão sobre cada momento histórico

O autor húngaro desde cedo se dedicou ao gênero romance, tendo escrito ainda na juventude A teoria do romance, livro polêmico, mas que o marcaria como um teórico da cultura por toda a vida. Lukács, na época, partia de posições hegelianas que remontavam ao platonismo, descrevendo o romance como a epopéia da era moderna. Nesse livro, o autor defendia a polêmica tese que situava o mundo clássico como cultura fechada, local em que havia respostas para todas as perguntas, mesmo para as não formuladas. O romance, a partir de seu surgimento ainda no século 17, seria a tentativa de resgatar essa totalidade perdida, já que o ser humano se encontrava ao desamparo, abandonado pelos deuses e em vias de fragmentação espiritual. A tentativa de dar conta de uma completude, como sugere a narrativa romanesca, seria uma ação fracassada, porque a opção pela modernidade introduziu o homem no universo da experiência, local partido, de impasse, onde não prevalece a subjetividade nem qualquer tipo de metafísica e suas consequentes explicações sobre a origem e a razão da própria existência.

Em O romance histórico, embora Lukács já aderira ao marxismo, suas posições não abandonam de todo o que desenvolveu em seu livro de juventude, mostrando desta vez os conflitos históricos como motor de todas as mudanças, um modo de dar sentido ao mundo e de explicar como estas mudanças gestariam o fato literário, mesmo sabendo que ao abrir mão de qualquer metafísica estaria renunciando ao principal componente da literatura, a tentativa limite de comunicabilidade, simbolizada pela metáfora.

A grande questão que distingue este O romance histórico de A teoria do romance é a seguinte: aqui, Lukács propõe como parâmetro a vida em sociedade com todas as suas forças e contradições. Deste modo, numa situação de solidão, o ser humano não teria ao seu dispor nenhum artifício transcendental para superá-la, mas, como diz Arlenice Almeida da Silva na esclarecedora introdução ao livro, “o essencial acontece no interior da própria sociedade.”

O livro é composto de quatro grandes partes. Na primeira, “A forma clássica do romance histórico”, uma das mais importantes, o autor tenta situar a fase clássica do romance histórico como uma exigência do período pós-revolucionário. Não só a Revolução Francesa, mas as guerras revolucionárias e o período napoleônico serviram para transformar a história em uma experiência de massa, criando nos homens a concepção de sujeitos da história.

Para mostrar a força do romance histórico, o pensador húngaro escolherá Walter Scott, porque percebe nele um dos únicos escritores que fizeram prevalecer “o elemento especificamente histórico de seu tempo”, privilegiando como personagem o homem mediano, suas lutas e paixões, mostrando que este é capaz de figurar não o tempo que passa, mas a mudança de um tempo. O passado será visto como pré-história do presente.

Na segunda parte, o escritor discute a confluência dos gêneros, apresentando mais uma vez questões sobre o gênero épico, que classifica como a narrativa do "inteiramente passado", enquanto o gênero dramático apresentaria o "inteiramente presente". Ao apontar como uma das características do romance histórico o predomínio do dramático-dialógico, Lukács potencializa, através das características do drama, o momento histórico, deixando nas mãos de seus pequenos e medianos personagens o reflexo das grandes mudanças de cada período.

Na terceira parte, denominada “O romance histórico e a crise do realismo burguês”, ele especula sobre o período em que a própria burguesia, ao abandonar o realismo, demonstra perder a capacidade de representar a si própria, tornado-se vítima do movimento revolucionário que havia pouco menos de um século protagonizara. Lukács vai separar realismo de naturalismo e apontará que tanto as vanguardas modernistas como o realismo socialista nada mais são do que prolongamentos do próprio naturalismo.

E, por fim, em “O romance histórico do humanismo democrático", quarta parte, o autor deixa transparecer uma de suas principais preocupações no momento em que escreve o livro (a segunda metade da década de 1930): a necessidade de deter a ascensão dos movimentos nazi-fascistas com a criação de uma frente democrática, composta de alianças dos estados socialistas com os governos democráticos que lutavam contra o autoritarismo.

Hoje muito criticada, a teoria literária de Lukács serve não como tentativa de criação de uma estética normativa a partir da crítica ao capitalismo, mas – além de demonstrar ser a arte uma das principais preocupações de um intelectual marxista – representa o esforço em verificar o fato literário e sua gestação em meio às contradições e aos interesses da luta de classes.

segunda-feira, outubro 03, 2011

Resenha de Ao anoitecer, de Michael Cunningham

“Mistake, o Erro, vem para ficar algum tempo”, assim começa o mais recente romance de Michael Cunningham, Ao anoitecer. Mistake nada mais é do que o apelido de um jovem cujo primeiro nome é Ethan, irmão de Rebecca, que por sua vez é esposa de Peter, o protagonista da história. O jovem e belo rapaz, muito mais novo do que a irmã, é assim chamado porque representa tudo o que deu errado numa família de classe média americana. Com o correr da leitura, no entanto, não é difícil perceber que este erro tem muito de sedutor.

Seria bom neste momento fazermos uma reflexão das muitas que o livro nos incita. Talvez, num departamento de antropologia de alguma universidade perdida pelo mundo, alguém esteja desenvolvendo uma pesquisa (digamos, uma tese de doutorado) sobre a ética em vários tipos de sociedade, desde a mais antiga sobre a qual se têm notícias até à contemporânea, mundializada, representada por este microcosmo nova-iorquino onde vivem e transitam os personagens de Cunnigham, com suas deformações e tentativas de adequação.

É bom levar em conta que ética – palavra muito usada nos dias de hoje – origina-se de “ethos”, termo que denominaria remotamente um lar e, por extensão, as leis e os costumes que norteariam toda a ramificação familiar, seus habitantes, parentes e contra-parentes, num período da Grécia antiga conhecido como pré-socrático.

Como, porém, escrever um romance que estabeleça questões prementes e ressalte o artista não como um mero repetidor de narrativas esgotadas, mas como alguém que nos aponte o difícil limite entre o que muitos filósofos conceituaram como sentido, ou mesmo falta de sentido? Em O mundo como vontade e como representação, Schopenhauer salva apenas a arte como a única possibilidade de espelhamento e crítica da existência. Isso é o que consegue nos mostrar o autor norte-americano Michael Cunningham.

Assim como em seus romances anteriores, mesmo no mais conhecido As horas (1996), verifica-se uma ficção em que há a perda total desse “ethos”, gerando, consequentemente, personagens perdidos, deformados, fazendo que estas mesmas deformações não ameacem estabelecer uma ética às avessas, mas gerem seres e relacionamentos altamente destrutivos.

Nova York, plena de contradições, sobretudo seu universo e mercado das artes plásticas, serve como pano de fundo para a narrativa. Peter Harris já passa dos quarenta anos e, até certo ponto, é um marchand bem sucedido, embora do segundo time. Organiza exposições de artistas que se mostram promissores, e representa outros que se tornaram conhecidos mas não mais conseguem avançar em suas propostas. Ao mesmo tempo, vende arte para alguns ricaços da cidade, estes sempre imersos na falta de cultura e de senso estético. Mas o casamento de Harris mergulha numa profunda crise com a chegada de seu cunhado, Mistake.

Único homem em uma família cujo predomínio é das mulheres, Ethan recebe ajuda da irmã, que acredita poder mantê-lo longe das drogas. Certo dia, entretanto, ele confessa a Harris, que seus anos mais férteis e de maior produção foram aqueles em que usava drogas e estudava em Yale. Ao mesmo tempo, Mistake é jovem e belo, o que fascina Peter, já que ele procura a plena realização estética. Ethan acaba por se tornar, para o marchand, uma espécie de arte pura.

A questão das drogas é aprofundada a partir do momento em que o irmão de Rebecca, acreditando estar sozinho em casa, encomenda cristal (uma nova febre nos EUA) de um narcotraficante que entrega em domicílio. Descobre depois que seu cunhado voltara do trabalho por motivo de doença, entrara em casa em silêncio, refugiando-se num dos quartos, e percebera tudo. Peter, em contrapartida, ingere em quase todas madrugadas, quando costumeiramente tem insônia, dois comprimidos de Rivotril com um copo de vodca, enquanto sua mulher mergulha em garrafas de vinho e martínis. Ela é editora de uma revista de arte que está sendo vendida para um milionário de um estado distante e precisa relaxar quando chega em casa.

O leitor também poderá experimentar as perplexidades do circuito artístico de Nova York, um mundo em que tudo pode ser arte, até mesmo uma bola de piche com crinas de cavalo, passando por bronzes de estilo grego clássico com pegadores pós-modernos. Há citações de galerias locais, museus, exposições famosas, a surpresa que experimentam seus frequentadores, o universo dos colecionadores e outros mercadores, também ricos, mas que, na maioria das vezes, naufragam na doença e na futilidade.

Um livro que, para o bem da literatura, não tem a pretensão de virar filme, pois o autor usa e abusa de um narrador que inclui as constantes reflexões e desespero de todos os personagens, proporcionando ao texto alta tensão psicológica. Após o término da leitura, constata-se que “Mistake, o Erro” – o personagem ou qualquer julgamento sobre as artes e/ou sobre a ética contemporâneas – é apenas uma questão de ponto de vista.

sábado, setembro 10, 2011

Resenha do livro: Ensaios de poética e hermenêutica, de Ronaldes de Melo e Souza

À literatura compete a visão múltipla do real, este que muitas vezes não se apresenta ou mesmo se mostra furtivo e de forma fraturada. A tradição filosófica, a partir do momento em que abandona as narrativas de cunho mítico, tentativas de explicação de mundo através de fatos e personagens plenos de alegoria, ricos em sentidos outros, furtará do ser a eternidade e a multiplicidade, instaurando uma visão de mundo unívoca, que se cristalizará com o apogeu do racionalismo, nos meados da idade moderna. Por falar em ser, é bom afirmar a dificuldade de se conceituá-lo devido à premência de apenas se poder pensá-lo e percebê-lo a partir, tão somente, de sua própria constatação. Refletir sobre o ser levando-se em consideração o não-ser, o jamais experimentado por nenhum ente, torna-se absolutamente inviável.

A hierofania, isto é, o caráter sagrado e extático (de êxtase) não do divino, mas do sensível e humano, permeará todos os ensaios deste livro de Ronaldes de Melo e Souza. O autor, ao contestar o antropocentrismo – que se inicia com Sócrates, continua em Platão e culminará com a filosofia de Aristóteles –, privilegia os filósofos erroneamente conhecidos como pré-socráticos, cujo pensar mítico se entremeia à razão e possibilita maior justeza à multiplicidade do ser, visão de mundo e da vida a partir do polissêmico, significando que nascimento e morte, ser e não-ser são unos e indissolúveis, não tornando o ser eterno, mas insistindo na eternidade do devir.

Ensaios de poética e hermenêutica, livro composto por nove ensaios, se estende em grande parte pela literatura e pensamento ocidentais.

O primeiro, “A forma ficcional do monodiálogo”, apresenta o drama do personagem cindido em polêmica consigo mesmo. Partindo de Homero, passando por Eurípedes, Virgílio, até chegar em Shakespeare, o texto conclui que a “identidade não se divorcia jamais da alteridade”. No segundo, “Poética da narrativa de primeira pessoa”, o autor demonstrará como uma narrativa na voz do próprio protagonista se torna literária, trazendo como exemplo, sobretudo, a Odisséia, de Homero. O ensaio, entre outros exemplos, não deixa à margem A Divina Comédia, de Dante, David Copperfield, de Dickens e Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis.

O terceiro, um dos ensaios de maior importância ao meu ver, tem como título: “A atualidade da tragédia grega”. O texto, tomando como base teórica “a descontrução höldeliniana e nietzschiana da metafísica”, desautoriza a tradição filosófica como estabelecedora da episteme, para transferir tal missão à tradição poética.

Em “A poética rilkiana da existência”, é possível observar como o autor de Sonetos a Orfeu transmuta, na sua obra poética, vida e morte de polos opostos a polos complementares da existência.

“O corpo de baile da linguagem e da vida” remonta, mais uma vez, à origem do mundo clássico, a Grécia, demonstrando a indivisibilidade entre música e linguagem e concebendo ambas como a expressão da vida em si mesma.

O sexto ensaio, importante para a compreensão da lírica moderna, discute “o intercâmbio dialógico da poesia e da filosofia no idealismo alemão vinculado à escola de Jena”, tendo o filósofo Fichte como interlocutor entre poetas e pensadores com seu idealismo crítico.

O sétimo e oitavo ensaios focalizam a literatura brasileira. O primeiro deles, “Agonia e morte em Autran Dourado”, aponta a obra do autor mineiro como teleotanática – “o drama agônico da vida sempre se representa como trama da morte.” Em “A ficção dramática de Graciliano Ramos”, observamos narrador e eventos completamente distanciados, estando este narrador mais para ator, que representa o seu papel, do que para um “eu” vitimizado, que estaria a narrar a própria história. O narrador de Memórias do cárcere se apresenta na posição de um “eu” coletivo, apontando e incluindo-se nas mazelas a que todos estão submetidos.

O último ensaio, “A hermenêutica de Gadamer”, questiona “a pretensão da epistemologia em se impor como modelo exclusivo de legitimação do verdadeiro conhecimento”. Princípios fundamentais de uma hermenêutica filosófica, subtítulo do trabalho de Gadamer, enunciado aparentemente paradoxal, aponta a fragilidade do método cartesiano ao determinar a verdade, tendo como implicações a impossibilidade da descrição objetiva de qualquer objeto, levando-se em consideração que há sempre um sujeito por trás de qualquer enunciado, o que revela o caráter falacioso do método.

Todos estes ensaios de Ronaldes de Melo e Souza tem um fio que os atravessa e mostra a preocupação do analista literário e do filósofo: a cristalização da espisteme como norma furtaria o caráter morfogenético da cultura. Ao seguir os passos dos poetas, deixando à deriva a tradição epistemológica, o professor da UFRJ aponta que, através da literatura, pode-se descobrir a força geradora da vida e que os contrários não necessariamente precisam estar em lados opostos, mas na maioria das vezes são complementares.

É digna de nota a preocupação do professor em tornar pesquisa de tal envergadura e erudição acessível a quem se mostra interessado pela crítica da cultura, público este que, muitas vezes, se apresenta  também numeroso fora dos muros universitários.  
 
Ensaios de poética e hermenêutica
Ronaldes de Melo e Souza
Série academia – Ed. Oficina Raquel