terça-feira, agosto 16, 2011

Jornalista haitiano lança ficção sobre seu exílio durante a ditadura de Baby Doc

Jornal do Brasil - Haron Gamal

Nada melhor do que uma ilha do Caribe, que só não foi esquecida devido às várias tragédias recentes, para fazer refletir sobre o hibridismo cultural de nosso tempo. Sobretudo se essa ilha-país obrigou os seus filhos – escritores, jornalistas e intelectuais – a partirem para o exílio num passado não muito distante.

A vida em terra estrangeira, ao mesmo tempo em que provoca o distanciamento geográfico do exilado em relação ao seu local de origem, permite sua aproximação à cultura “perdida”, através da imaginação e do pensamento. Volta-se de modo mais intenso à infância, às lembranças queridas, aos amigos que ficaram. É o que acontece com a prosa de Dany Laferrière, em País sem chapéu.

Não que o livro seja uma espécie de “em busca do tempo perdido” no universo haitiano. Mas a reflexão de um homem que retorna ao seu país vinte anos depois de ter partido, redescobrindo em cada objeto uma espécie de sabor primitivo que mesmo a passagem do tempo e a convivência com os costumes adquiridos, na sua peregrinação pelo mundo, não conseguiram fazer esquecer. Ainda que os problemas de seu país natal tenham se multiplicado por dez e o sofrimento seja tamanho a ponto de ele dizer que no Haiti todos estão mortos, como afirma ao explicar o porquê do nome do livro: “país sem chapéu, é assim que se chama o lado de lá no Haiti, porque nunca ninguém foi enterrado com o seu chapéu.”

Laferrière, nascido em 1953, foi obrigado deixar o Haiti, aos 23 anos de idade – exercia a profissão de jornalista – e exilar-se no Canadá, devido à ditadura de Duvalier (Baby Doc, 1971-86). Caminho semelhante já havia trilhado seu pai, também exilado, mas por Duvalier pai (Papa Doc, 1957-71). Essas passagens são muito bem retratadas no livro, que, apesar de se dizer ficção, tem muitos trechos com experiências da vida do próprio autor: “Aos dezenove anos, tornei-me jornalista, em plena ditadura dos Duvalier. Meu pai, também jornalista, foi expulso do país por François Duvalier. O filho deste, Jean Claude, levou-me ao exílio. Pai e filho, presidentes. Pai e filho, exilados. Mesmo destino.”

Trecho pungente acrescenta-se quando o narrador relembra a fala de seu pai, procurado por ele uma única vez na vida, no Brooklin, em Nova York: “– Quem está aí? – Teu filho – respondi. – Não tenho filhos, todos os meus filhos morreram. – Sou eu, pai, vim ver você. – Volte para o lugar de onde veio, todos os meus filhos morreram no Haiti. – Mas eu estou vivo, pai. – Não, só há mortos no Haiti, mortos ou zumbis.”

A literatura híbrida, ou anfíbia, caracteriza-se pelo desenraizamento ora geográfico, ora cultural, ora provocado pela loucura. E essa questão é urgente na narrativa de País sem chapéu. O autor, que pinta com cores fortes o país sonhado, não esquece de mostrar uma legião de deserdados, mais mortos do que vivos, no país real.

Dany Laferrière surge como escritor propriamente no exterior. Expressa-se numa língua que não é a sua (a língua materna do autor é o créole), e vive num país estrangeiro. Momento certo para descobrir que a escrita seria a única forma de o manter vivo, de manter viva a cultura de onde viera, de mostrar que vida pode significar o registro do amor e da dor, e a morte pode ser o completo esquecimento.

Enfim, o que são países, como o Haiti, com homens e mulheres oriundos da África e destinados a serem escravos no ocidente, que serviram como força de trabalho para que potências europeias promovessem a exploração e o colonialismo para depois abandoná- los ao deus-dará no momento em que tal empreitada já não era lucrativa? Ainda assim a herança deixada no país pela França serve como instrumento de inserção cultural no mundo “civilizado”, uma tentativa empreendida pelos intelectuais haitianos de resgatar, igual por igual, o que lhes foi tirado. A escrita em francês de Dany Laferrière não seria uma opção pela francofonia, pois essa palavra tem raízes políticas (como diz o autor), mas um modo de afirmar que a língua absorvida pelo colonizado tem, muitas vezes, o vigor primitivo que a do colonizador já não possui.

Embora o narrador, neste retorno, reconheça o seu país, seu olhar é cindido, percebe que algo se rompeu, sente-se como se já não fizesse parte daquela paisagem humana. Assim pode observar melhor e tirar suas conclusões quase como um estrangeiro.

A maior marca de hibridismo cultural que esse livro comporta acontece, ao meu ver, na simbologia entre o mundo dos vivos e o dos mortos. Um personagem pergunta ao autor-narrador: “Desculpe a franqueza, mas gostaria de saber como o senhor pode escrever sobre os mortos se nunca morreu.” A mesma experiência de Ulisses (este também só retornou à sua ilha vinte anos depois) ao visitar o Hades e de lá voltar vivo, o narrador vivenciará, agora com o objetivo de restaurar a antiga cultura que os primeiros negros haitianos trouxeram da África, escrevê-la, para que, recuperando-a, talvez seja capaz de aproximar dos deuses um povo que não pode perder o seu passado.


terça-feira, agosto 02, 2011

Resenha de: O impostor, Damon Galgut

Haron Gamal - Jornal do Brasil

Damon Galgut, nascido em 1963, é escritor sul-africano de língua inglesa. Lançou seu primeiro livro, Sinless season, em 1984, mas tornou-se conhecido internacionalmente apenas em 2003 com o romance The good doctor, traduzido para o português pela Companhia das Letras como O bom médico. Ambientada no pós-Apartheid, a narrativa explora, num hospital de interior, a constrangedora amizade entre dois homens muito diferentes. Com esse livro, ele ganhou o Commonwealth Writers Prize de 2003 (melhor livro para a região da África), e foi finalista do Man Booker Prize (também em 2003) para ficção, e em 2005 do International Dublin Literary Award.

O impostor foi publicado em 2008 e é o segundo livro do autor traduzido para o português. Como The good doctor, também reflete as violentas tensões que permeiam o país após o longo período de segregação racial.

Galgut é escritor de origem europeia, mas descreve com detalhes a exploração e ganância tanto dos brancos como dos negros numa África do Sul em que todos querem levar a maior fatia de lucro, tudo mascarado por um falso desenvolvimentismo, que não perdoa nem a natureza nem as obras arquitetônicas remanescentes dos séculos anteriores.

O livro começa numa estrada, com uma cena muito familiar aos leitores brasileiros. Um policial escondido atrás de uma árvore multa um motorista que cometera uma infração de trânsito. Mas logo se percebe que o objetivo é outro. Por um quarto do valor da multa, o agente da lei diz: “podemos esquecer todo esse problema.”

Mas a questão vai muito além de um simples caso de corrupção policial. Adam, perdido o emprego e desiludido com o insensível progressismo de seu país, está deixando a cidade grande. Dirige-se ao interior, onde pretende construir uma nova vida. Ao mesmo tempo, deseja voltar a escrever, já que na juventude lançara um livro de poemas bem recebido pela crítica. Vamos testemunhar, daí para frente, um dos pontos que estará presente em todo o romance: o embate entre a sensibilidade e um pragmatismo desenfreado – alguém que busca na poesia um modo de fugir do salve-se quem puder econômico que vigora no país. Em contraponto, seu irmão Gavin, extremamente materialista e engajado em empreendimentos nem sempre éticos, insiste para que ele procure outro emprego e leve uma vida comum, como as outras pessoas. A mulher de Gavin, Charmaine, transita entre o conforto proporcionado pelo marido e um quê de misticismo, incluindo visões, leituras de aura e sensitismo para energias tanto positivas como negativas.

Ao se estabelecer no lugarejo almejado, Adam mora numa casa que simboliza a derrota do homem na luta contra as forças inóspitas da natureza. As ervas daninhas, sempre mais numerosas e presentes no quintal da casa, avançam continuamente apesar da luta constante do personagem contra elas.

Dois outros homens e uma mulher mudarão a vida do personagem. Um deles é um morador solitário. Adam se refere a ele como o homem do macacão azul, alguém que mora ao lado e pouco a pouco tenta uma infrutífera amizade com o recém-chegado. O outro é Canning, que se apresenta como seu ex-companheiro de escola dos tempos de adolescência, embora Adam não se lembre dele. Canning esbarra no amigo numa loja onde este fora comprar ferramentas para debelar as invencíveis ervas daninhas. Através do reestabelecimento da antiga amizade, Adan presenciará toda uma trama que envolve políticos, empresários, um imigrante mafioso do leste europeu, e até mesmo prostitutas. O título O impostor a princípio parece soar mal e apontar para uma narrativa de subliteratura, mas no final da narrativa percebe-se a sua justeza.

O que muitas vezes se cobra de escritores como Damon Galgut, oriundo de países onde vigorou (e ainda vigora) intensa luta política, racial e étnica, é o engajamento do artista nas questões subjacentes a todo esse conflito. O autor, de certa forma, consegue cumprir o seu papel, mas não deixa de apresentar a intensa luta interior de personagens que gostariam de cultivar a própria subjetividade em meio ao rolo compressor das ideologias e das máquinas que avançam por todos os lados na construção de hotéis, suntuosos edifícios e campos de golfe para os ricos, ou em empreendimentos imobiliários enganosos e de terceira classe, onde jorra o dinheiro público e as conseqüências são as que estamos acostumados de longa data.

Mas Galgut consegue se sair bem nesse embate entre o público e o privado, ressaltando quase sempre a lama que mancha esse privado, conquistado na maioria das vezes com uma robusta parcela do dinheiro público. O autor mostra que os ricos e os políticos parecem não se incomodar com todo esse lodaçal.

Outro ponto que merece destaque é o sentimento de culpa do qual Adam não consegue se libertar, apesar de suas atitudes sempre éticas. Talvez o autor queira nos dizer que o longo período de dominação e exploração empreendidas pelo colonizador europeu, no continente, criou raízes tão fortes que contaminou tanto os brancos descendentes como os nativos negros, e está muito distante o dia em que existirá algum tipo de perdão.