quarta-feira, julho 06, 2011

O cronista, de Bolívar Torres

Jornal do Brasil - Haron Gamal

Um texto torna-se literário, na maioria das vezes, ao refletir o estranhamento em que o ser humano se encontra. O ato de contar uma história não é necessariamente literatura. Mas quando nessa mesma história comparece algo inesperado, inusitado, quando essa estranheza torna-se contraponto e, a partir dela, se estabelece um outro texto, pleno de variantes e muitas vezes polissêmico, aí está a literatura.

O cronista, primeiro livro de Bolívar Torres, tem essa característica. São seis contos de extensão média, que prendem o leitor, sobretudo devido a soluções inesperadas para situações banais. É o que não nos deixa esquecer suas histórias. O autor além de, como todo aquele que se pretende a escritor, narrar e descrever situações diversas com muita habilidade, nos propõe personagens profundamente cindidos.

Na quarta capa do livro, alguns conhecidos especialistas em ficção elogiam em Bolívar o desconcerto que as situações, apesar de banais, apresentam. Flávio Braga chega a falar em Kafka e Nabokov. Estão corretos em suas avaliações. Mas há algo além. A originalidade do autor também está na construção desses personagens divididos, em conflito consigo mesmo, seres que, a todo momento, monologam nas entrelinhas, demonstrando a impossibilidade senão de uma ética, ao menos de uma inteireza.

Não é que se vá aqui retomar a tradição que a modernidade instaurou ao inaugurar o personagem fragmentado. A fragmentação do sujeito está presente na cultura ocidental desde a tradição helênica. Os personagens homéricos dialogam o tempo todo consigo mesmo, vivendo uma espécie de autopolêmica ao demonstrar a impossibilidade do sujeito ante o imponderável destino. Daí o conhecido culto à tragicidade. Como a cultura helênica não é unívoca, em Eurípedes, no entanto, o humano apresenta-se como insurgente ante a inexorabilidade da existência. O autor de Medeia irá mais longe ao retratar o herói na tentativa de deixar essa subserviência. O herói euripidiano quer, desesperadamente, transformar-se em senhor do próprio destino. Não é à toa que Eurípides tornou-se um desconforto dentro da tradição clássica (quase apolínea), tradição esta submissa a inexorável moira.

Os contos de O cronista esbarram nessas características insurgentes. São homens e mulheres que não desejam submeter-se. Mas, devido à intensa luta interior, acabam profundamente marcados. É impossível ver neles algum tipo de vitória. Sobressaem-se com mais destaque as cicatrizes.

Em “Aborto”, primeiro conto do livro, acompanhamos uma adolescente levada pela mãe a uma clínica onde fará a asséptica cirurgia que a livrará da gravidez indesejada. Mas a tal gravidez incomoda mais a mãe do que a ela. A jovem apaga ao ser anestesiada e sonha com a prima a lhe oferecer um berço que flutua numa pequena lagoa. Maria, assim chama-se a personagem, tenta chegar ao bebê, mas a corrente de água é mais forte.

Em “O Cronista”, conto que dá título ao livro, um famoso colunista social frequenta festas de casamento povoadas por “famílias” bem sucedidas que desejam aparecer nas suas páginas festivas. Mas o personagem pede licença para ir ao toalete, e lá, devido à urina empedrada, sua diante do mictório. Urina e toalete acabam metáfora da hipócrita vida social para a qual ele precisa sorrir e da qual não consegue se livrar.

“Debutantes” focaliza o mundo festivo das patricinhas prestes a estrear na vida social. São tutoradas por senhoras tipo a tal Meneghetti, sempre a lhes lembrar que o sucesso depende delas e que um futuro cor de rosa as aguarda, basta que não desistam. Numa espécie de “country club”, experimentam o vestido da futura festa e agrupam-se para tirar fotos. Mas a pseudoplasticidade da imagem juvenil é maculada por duas jovens: uma se sente estranha e tenta escapar à artificialidade reinante correndo através do clube; a outra foge para fumar maconha e diz à primeira já ter lido Nietsche.

“Homem de Jaqueta”, ao contrário da beleza resplandecente da alta sociedade, retrata a vida dos motoristas e cobradores de ônibus. Num final de domingo, durante a última viagem, enquanto seu time está perdendo, um cobrador luta para conter a ansiedade de chegar em casa para comer um bife preparado pela esposa que o aguarda, enquanto observa um passageiro desfocado, diferente dos outros, o próprio homem de jaqueta. De quem é a distorção, do cobrador que tem como perspectiva apenas o estômago e vê as cores do domingo se esvaindo ou do assustado personagem que irrompe ônibus adentro e salta no ponto final para desaparecer misterioso dentro da noite?

“Estrada do Mar” narra a viagem de um bem sucedido empresário no seu automóvel através do Rio Grande do Sul. Ele vê uma jovem à beira da rodovia, para o automóvel e lhe oferece carona. Daí em diante, numa rememoração proustiana, vai viver sentimentos que transitam entre o êxtase e o nojo.

No último conto, “Dona Eva”, uma senhora idosa, mostra um álbum que retrata toda a sua vida a uma criança cujos pais a visitam com o objetivo de ver o terreno que está à venda. Ele, o menino que a escuta e ainda não tem dez anos, virá a se tornar o narrador da trágica história desta mulher, uma colecionadora de perdas. O álbum apresenta o diálogo entre razão e paixão, mostrando que as pessoas são impotentes diante da ameaça de arrebatamento a que sempre estão sujeitas.

No final, chegamos à conclusão de que se ao ser humano não é permitido aproximar-se dos deuses, como já tinham constatado os gregos da antiguidade, ao menos lhe será tolerado experimentar – ainda que apenas através da literatura – algum tipo de imortalidade. Então, ao cronista e a seu fotógrafo, não caberia a missão de retratar as festas dos novos ricos e a destreza destes no mercado financeiro, mas a resistência humana, tendo como espelho a arte, ainda que fugaz, eterna enquanto dure.

Parodiando a frase presente no final da página em que aparece a ficha catalográfica desta bela edição de capa dura e com criativas gravuras de Carolina Veiga: que a literatura dure até antes do fim do mundo.

O cronista, de Bolívar Torres. Editora Oficina Raquel. Páginas: 115. R$ 35.