sexta-feira, novembro 17, 2006

Kempt
O Knopt fluía tranqüilo naquela tarde de domingo. O frio era intenso, mas ainda insuficiente para congelar as águas cinzentas do rio. Na margem oposta ao ancoradouro de Humpt, uma velha embarcação permanecia amarrada junto a toras. Não se via pessoa alguma. Virei-me para a straat Kourbuse e continuei caminhando cidade adentro. A taberna Kaiser permanecia fechada. O velho Greend, seu proprietário, sempre desaparecia no início da tarde para dormitar durante uma ou duas horas. A antiga tabuleta, junto ao postigo, dependurada a uma marquise tão antiga quanto ela, além de identificar o local, trazia logo abaixo o nome de Greend. A primeira transversal, seguindo pelo estreito passeio, era a Tair Anderson, pequena viela que ligava a rua onde eu me encontrava à Deigth Lusckern, uma rua maior, que também permanecia totalmente deserta. Ergui um pouco o rosto logo que entrei na Deigth e pude observar os sobrados que se enfileiravam. Serviam como depósitos, muitos estavam abandonados, eram mais que centenários e percebiam-se várias alterações na construção original. A arquitetura sofrera modificações conforme as necessidades de cada época. A Tair dera-me consciência de minha solidão, na Deight essa consciência se ampliou. Inspirei com mais vigor e ao soltar o ar me senti gelado. Grandes latas de lixo ainda se encontravam junto a portas de alguns estabelecimentos comerciais que funcionaram até tarde na noite anterior. A limpeza pública as havia esvaziado, mas a presença delas tornava o local um tanto inóspito. Tentei perceber a presença de alguém, porém não consegui descobrir sequer uma alma. Um ruído, inicialmente distante, fez-se ouvir; gradativamente foi crescendo até se transformar num pequeno ônibus que saiu da Liev Kroubin. Esta rua serve de ligação aos bairros populares da zona oeste. O veículo vinha em marcha lenta. O condutor usava um boné azul marinho inclinado para o lado esquerdo. Ele olhou-me como perguntando se eu subiria. Fiz um pequeno sinal com o braço direito. Ele parou. Entrei fazendo um aceno silencioso com a cabeça. O ônibus partiu vagarosamente. Pertencia a uma linha que circulava no centro velho da cidade, seguindo até a margem direita do Knopt. Não atravessava a ponte que ligava aquele setor da cidade aos bairros mais nobres. Dali ele voltava e trafegava novamente o centro velho até se perder na periferia de Kempt, bairro antes proletário, próximo às antigas e extintas indústrias da zona central, que agora se tornara pleno de bares e bodegas, habitado por homens e mulheres que tentavam sobreviver de pequenos serviços autônomos. Aos domingos a empresa reservava àquela linha apenas um veículo. Não havia praticamente pessoa alguma que transitasse para o centro velho e para as margens do rio, principalmente devido ao tempo frio. Dentro do veículo ia apenas, além do motorista, uma mulher. Era uma senhora. Usava a cabeça coberta por um pequeno lenço à holandesa. Seus cabelos castanhos podiam ser observados porque escorriam até abaixo dos ombros. Usava óculos. Fingi não tê-la percebido. Ela me olhou de soslaio e continuou mergulhada em si. Íamos aos solavancos, enquanto eu me surpreendia com a cidade desabitada. O ônibus enfiou-se por mais ruas desertas, senti-me deprimido. Pensei um tanto absurdamente que uma bomba de gás poderia ter explodido. Apenas eu o motorista e aquela mulher seríamos os sobreviventes.
- O senhor ouviu cair uma moeda?
A voz da mulher cortou a tarde silenciosa desviando-me os pensamentos. Pareceu soar numa língua estranha Assustei-me. Depois me virei. Só então entendi o que ela perguntava. Recolhi uma pequena moeda sob um dos bancos, entregando-lhe a seguir.
- Obrigada – retribuiu lançando-me um curto sorriso. Fiz apenas uma leve menção com a cabeça, voltando-me à rua em que agora íamos. Estávamos já beirando o campanário de Kempt. O veículo começava a retornar em direção ao centro velho. Reparei que a mulher não descera. Permaneceria ali fazendo novamente todo o percurso. Voltaria, absorta, pelas mesmas ruas até o outro extremo da linha. Senti vontade de perguntar aonde ia. Mas depois conclui que eu fazia o mesmo. Entrara no ônibus por entrar, sem rumo, apenas para passar o tempo e me esquivar do frio. Ninguém adentrara durante todo aquele percurso.
- O senhor também faz como eu... - iniciou a frase e a interrompeu subitamente me dirigindo o rosto, como que ouvindo minhas anteriores conjecturas. Tentava iniciar um breve diálogo.
- Como a senhora? - demonstrei não ter entendido.
- É, como eu - continuou -, fujo todas as tardes de domingo, não agüento ficar em casa. É uma desolação.
- Sim - acrescentei sem ter mais o que dizer. Demonstrei desânimo em relação à conversa que se iniciava.
- Às vezes fico no ônibus a tarde inteira. Quando começam aparecer os primeiros moradores de Kempt, vou para casa.
- ...
Ela notou que eu não correspondia, mas continuou:
- Quase sempre não há ninguém. Hoje o senhor apareceu...
- É... - proferi mais um vez, me desculpando pelo longo silêncio.
- Na semana passada o motorista me deixou às margens do Knopt. Atravessei a ponte às quatro da tarde e me dirigi ao setor leste, mas me decepcionei.
- Por quê? - animei-me em perguntá-la.
- Os bebedores de cervejas de Kempt são mais interessantes. Às vezes fazem barulho. Isso me diverte.
- E os do setor leste?
- Lá não há ninguém. As ruas são ainda mais desertas e as bodegas comuns não existem. Me arrependi. É sempre mais animado em Kempt.
Estávamos novamente na straat Korbuse. Olhei o velho Greend na porta de sua bodega. Fiz menção em me levantar para descer. Ela deteve-me.
- O velho Greend cheira mal. Vou levar você a um lugar melhor. Não desça.
Permaneci indeciso. Um desconforto abateu-me. Mas perguntei:
- Aonde?
- A Kempt. Lá sempre é melhor. E hoje à noite há uma pequena comemoração no Buderwais.
- No Buderwais?
O Buderwais era uma espelunca que se destacava das outras devido à sua parca iluminação. Pequenas lâmpadas azuis e vermelhas tremeluziam durante a noite, criando uma atmosfera bruxuleante. Vez ou outra algum artista local se apresentava no estreito palco improvisado, à direita da entrada principal.
- Não se preocupe, venha comigo, é por conta da casa.
Concordei emitindo um monossílabo, enquanto observava a fumaça que saía de minha boca em direção à fresta de uma das janelas recém aberta.
As luzes brancas e frias da avenida se acenderam. O condutor não se surpreendeu porque continuávamos no veículo. Fez o contorno na Tair Anderson; novamente trafegava na Deigth Lusckern, em direção a Kempt. Agora, sob as primeiras sombras da noite.

sábado, novembro 04, 2006

Baudelaire

Eu estava sentado à mesa de um bar. No lado oposto, havia uma mulher loura, de cabelos compridos. Fumava um cigarro longo, desses raros, que os jovens já não procuram. Aspirava-o sôfrega, retinha a fumaça durante algum tempo, depois a soltava natural, de modo que esta subia e se perdia no ar. O cigarro entre os dois dedos e o sorriso constante atraíram-me. Esperei. Queria me certificar de que ela estava só. Entre desejos intempestivos de lhe enviar um bilhete, consegui aquietar-me: "você é linda", escreveria "e o cigarro lhe dá um charme terrível". Mas aguardei. Não queria quebrar-lhe o encanto. Sua idade? Não sei, nem importa. Levei o copo de chope à boca, mas não desisti de acompanhá-la a distância. Meus olhos eram lanternas inseguras em noite de desacertos. Ela também bebia, mas era algo que beirava o rubro, e havia uma colherinha dentro do copo. Uma mulher feliz, pensei. O garçom chegou-se a ela, ouviu-lhe silencioso palavras mágicas e se retirou solícito. Sobre minha mesa, segurei uma das rodelas de chope e a girei sobre a toalha quadriculada. Já havia bebido demais, mas não perdera a lucidez. Quando o garçom voltou, sussurrou-lhe algo que a tornou fada encantada. Desisti de interpelá-la. Não a tocaria nem que me sobrassem versos de um Camões ensandecido, ou mesmo de um Bocage perdido nas trevas da contemporaneidade. O relógio luzia-me duas da madrugada. Horas dos boêmios cônscios de que sempre foram sós e de que aos sós não existe remédio. Não sei se sua presença lançava-me em mar de velas abertas e enfunadas ou de vagas irregulares sob céu sem estrelas, intempérie das horas tardias.