terça-feira, outubro 12, 2010


Casamento
Marta desceu a escada da varanda de casa. Estava quase junto às areias da praia. Era costume seu todo dia ainda permanecer um quarto de hora na cama. Depois vestia o biquíni e descia para a beira do mar. Caso o sol já estivesse quente, ou já o sentisse na pele mesmo de modo brando, sentava-se diante do mar e admirava o horizonte. Pensava qual seria a distância em que céu e mar aparentemente se tocavam. No verão, aproveitava para mergulhar logo cedo, sentir a temperatura da água a estimular-lhe a pulsação.


O dia era especial para ela, sorriu ao lembrar-se. Aliás, toda mulher estaria feliz por viver a perspectiva de um dia como o de Marta. Como sempre, deu os passos costumeiros e foi quase até à beira d'água. Sentou e se espreguiçou. Recostou diretamente na areia sem se preocupar com os pequenos grãos que lhe grudavam na pele. Olhou para o céu. Depois de alguns segundos fechou os olhos para ouvir melhor o estouro da arrebentação. Aquela praia era um refúgio onde quase ninguém aparecia. O barulho de um vento brando e o marulhar lhe faziam constante companhia. Um ruído diferente, no entanto, atraiu sua atenção. Era um som que vinha de uma certa altura. Abriu os olhos e viu no céu uma enorme pipa. Reparou que o ruído era provocado pela resistência das as asas do objeto contra o ar. Seguiu o grosso fio que sustentava a pipa, acompanhou seu peso através de uma espécie de barriga que o cordão fazia no ar. Pela altitude, quem a conduzia não devia estar longe. Marta não quis voltar-se, gostava de estar sozinha aquela hora, preferia não dar pelo inoportuno, que pouco a pouco se aproximava.
Não demorou e surgiu-lhe o homem às costas. O condutor do enorme objeto voador era um senhor, isso mesmo, alguém de meia idade. Passou ao lado dela, a uns dez metros, não deixou de lhe desejar um sonoro "bom dia", e continuou seus passos lentos até molhar os pés e tornozelos dentro do mar.


Marta teve vontade de dar as costas e voltar para casa. Ainda não tinha feito o café, e ansiava por uma xícara. O homem, porém, tinha os cabelos grisalhos, e eram fartos. Não deixou de observá-los. Surpreendeu-se com a quantidade de cabelos para alguém que já devia ter passado dos quarenta, ou mesmo dos cinquenta. Quando ainda não resolvera levantar-se, ouviu o homem:


"Bonito, não?" Após as duas palavras, olhou na direção da pipa, fazendo de conta que apresentava o objeto à mulher. Continuou: "Custou-me dois dias de trabalho", virou-se mais uma vez para ela e sorriu.


Marta não quis ser indelicada. O homem parecia simpático. Não era um intruso qualquer, seu único interesse parecia ser suas asas voadoras.


"Belo lugar, não o conhecia, você vem sempre aqui?", sua voz límpida não levou em conta que ambos eram desconhecidos.


"Mais ou menos", foi a resposta de Marta.


Ele sorriu mais uma vez, sempre com a atenção voltada para a pipa. "Sou de Blumenau, estou viajando a trabalho, mas você não imagina como sou apaixonado por praias e pipas."


Foi a vez de Marta sorrir. Parecia sincero: apaixonado por praias e pipas. Ela achou sonora a expressão. Pelo menos não viera importuná-la como faziam os rapazes que apareciam na praia um pouco mais tarde. Aquele papagaio segurado pelo grosso cordão, aproveitando o vento que não cessava, era a verdadeira intenção do homem de meia idade.


"Carlos Alberto, desculpe-me, acordei indelicado hoje, nem me apresentei. Deve ser por causa desse mar maravilhoso e dessa pipa monstruosa", acabou de falar e Marta pode reparar seus dentes muito brancos. Parecia realmente um homem muito bem cuidado, alguém que se preocupava com os detalhes. Sim, para ela, os detalhes sempre foram o mais importante.


"Marta", pronunciou seu nome, sua voz não soou alta, mas no tom suficiente para que pudesse ouvir.


"Você é dessa região?"


"Sim e não."


"Suas respostas são interessantes: 'mais ou menos, sim e não'."


"É que não nasci aqui, mas vivo aqui desde criança."


"Agora, sim, agora você foi clara como o céu, como a luz desse imenso sol."


Marta gostou daquelas palavras. Pareciam as palavras de alguém muito feliz. Ela olhou mais uma vez para a pipa, para o longo cordão e para o homem, prestou atenção ao seu esforço de empiná-la cada vez de modo mais elegante.


"Você me dá licença, mas tenho de ir", disse a mulher. "Adeus."


Ele deixou a pipa no ar, cuidada apenas pelo vento. Segurava o cordão, mas já não olhava na sua direção.


"Ei, espere, a manhã está tão bonita, fique mais um pouco."


Marta percebeu que o rosto dele se franziu, que aguardava ansioso por uma resposta. Desejava sua permanência, mesmo que precária.


Ela voltou-se, chegou a dar uns passos, estacou e disse:


"Sabe, é que hoje é um dia especial para mim."


"Especial? Que bom saber disso! Então me conte, quero saber por quê."


Ela deu um longo suspiro, piscou os olhos, viu que uma onda maior se desfazia em espuma e vinha desordenada em direção à areia.


"Está vendo aquela casa logo ali?", apontou a ele, "é onde moro; acordei e saí imediatamente, nem tomei café. Estou seca por um café. Espere então um pouco que eu volto. Volto e prometo que lhe conto porque hoje é um dia especial para mim."


Caminhou de volta até a escadinha que levava à varanda. No meio do caminho teve a intenção de olhar trás. Queria saber se o homem a apreciava. Sua seminudez provocava. Mas seguiu. Não se deixou tomar pela curiosidade.


Quando voltou, ele estava voltado para o mar. A pipa, segura no ar; o cordão a sustentava e estava amarrado a uma pedra. O homem parecia um Buda a meditar, os olhos cerrados, alheio ao mundo à sua volta.


"Café?", sua mão direita estendia a ele uma caneca.


Alberto abriu os olhos sem se mexer. Apreciou Marta de rabo de olho. Depois, ainda vagaroso, desfez-se da posição e segurou o café.


"Obrigado!"


"Me desculpe se despertei você do seu transe..."


"Oh, nada disso, sua presença é mais importante."


"Desinteressou-se da pipa?"


"Não, claro que não. Ela é capaz de voar sozinha. Ela e o vento", levantou o rosto e a admirou. "Seu café está delicioso."


"Sou péssima cozinheira."


"Não diga? Você está sendo modesta. Gosto de café forte. Conseguiu me satisfazer. E, olhe, sou exigente."


"Os homens são exigentes, você tem razão. Muitos aceitam qualquer coisa no começo, mas depois se tornam exigentes."


"Não acredito. A única coisa que eu exijo é saber por que hoje é um dia especial para você. É seu aniversário?"


"Ah, sim, já ia me esquecendo. Prometi dizer o motivo. Não, não é meu aniversário. Hoje, vou me casar."


"Sério?", deu uma imensa gargalhada. "Não pense que estou debochando, não. Quero lhe dar meus parabéns! Que bom! Você se casa hoje? Que ótima notícia."


"Você acha mesmo ótima?"


"Claro que sim. Por que pensaria de modo diferente?"


"Geralmente as pessoas viram a cara quando uma mulher fala em casamento.
Muitos até mesmo desaconselham que se case."


"Não os ouçam. Case-se. Você será muito feliz?"


"Jura?"


"Claro que juro."


"Mas como você sabe que vou ser feliz?", Marta parecia ter dúvidas quanto ao futuro.


"Pela sua fisionomia, tenho certeza de que você vai ser feliz. Você possui uma face luminosa."


"Obrigada. Nunca conheci alguém que tivesse me dito isso."


"Fala sério? As pessoas por aqui não conseguem adivinhar quando alguém vai ser feliz?"


"Ah, acho que não. Muitas nem querem a felicidade dos outros."


"Fale-me sobre seu futuro marido. Como ele é?"


"É uma pessoa boa, interessante; é muito atencioso."


"Então, não há o que temer."


"Acho que não. Mas às vezes penso que o problema sou eu, sabe? Sou um tanto temerária."


"Não se preocupe. Ele saberá mantê-la. Os homens adoram temeridades."


Ele riu. Ela também. Permaneceram em silêncio por um longo tempo. Depois, ele tomou nas mãos a pedra que segurava o cordão da pipa. Pegou o cordão e fez alguns movimentos. O enorme papagaio mexeu-se no ar, pareceu que ia mergulhar, mas logo voltou à posição anterior.


"Já segurou uma pipa, alguma vez?"


"Quando era criança, acho."


"Segure, agora. Volte no tempo. Às vezes em alguns aspectos somos sempre crianças."


Marta segurou o cordão, tentou alguns movimentos. Ele a ajudou. Moveram juntos a pipa. Ela pode sentir o arfar do peito dele às suas costas. O homem era peludo. Ela sentiu uma grande vontade de abraçá-lo. Depois deixou novamente o cordão nas mãos dele, virou de frente, olhou diretamente seu rosto e sorriu.


"Dizem que os homens na noite anterior ao casamento fazem uma despedida de solteiro. É verdade?", ela.


"Os homens e também as mulheres, por que não?"


"Não me despedi. Tenho apenas duas amigas e elas estão viajando."


"Creio não haver problema. Você também pode se despedir da sua vida de solteira sozinha, pode namorar este mar, este céu, o sol."


"É, acho que posso."


"Onde vocês vão passar a lua de mel?"


"Vamos viajar para a Bahia."


"Que beleza, a Bahia. O melhor lugar do mundo. Sabia que houve um filósofo francês que sempre vinha à Bahia nas férias? Dizem que não saía de lá. Pena que ele morreu. Mas há outros estrangeiros que adoram a Bahia. Um longo e belo litoral. Muitas praias desertas, a água quente, sempre quente!"


"Vamos mergulhar?", perguntou Marta. "Não quero me despedir daqui porque vou voltar. Vamos continuar morando aqui por uns tempos."


"Ótimo. Entremos no mar", prendeu o cordão da pipa novamente na pedra, caminharam até à beira d'água e mergulharam. Nadaram mar adentro.
"Olhe", apontou ele à pipa, “está se movendo sozinha, de um lado a outro. Mas creio que continuará pairando acima de nós."


"Lembra que eu disse que sou temerária? Assim como sua pipa. Mas acho que vou conseguir ficar por cima. É sobre o casamento, sabe."


Nadaram mais um pouco. Ele ainda voltou-se para a pipa, observou que se mantinha aprumada. Sentiu então a mão de Marta a tocar-lhe o ombro, depois o peito. Voltou-se para ela. Ela sorria. Um sorriso luminoso.


Ambos se aprofundaram no mar bravio. Não pensaram que se distanciavam da costa. Preferiam aquelas águas agitadas. Talvez fosse mais fácil domá-las do que domar as intempéries provocadas pelo amor.


Naquela manhã se amaram. Ainda que apenas aquela vez.

sábado, outubro 09, 2010

Esqueça isso, sobre eleições

Desci para ir à banca de jornal. Era segunda de manhã. No meio do caminho, encontrei o Jofre.

“Oi”, falou quase me segurando por um dos braços, “já sabe o resultado das eleições?”

Fiz que não com a cabeça.

“Tanto sacrifício à toa, esses palhaços vão estar por cima por mais quatro anos.”

Eu não tinha visto a TV nem ouvido o rádio. Ia até a banca, mas também não era para saber sobre eleições. Até mesmo esqueci que tinha havido eleições.

“Lembra-se daquilo que lhe falei na última vez em que estivemos juntos?”

Não esperou que eu respondesse.

“Aconteceu exatamente o que eu temia.”

Fiz menção de continuar o meu caminho.

“Mas ouça, isso não pode ficar assim, são os mesmos que sofrem os que votam nesses caras. Acham que as coisas acontecem porque têm de acontecer.”

Fiz um movimento vago, que podia ser interpretado como concordância.

“Vai comprar o jornal?”, perguntou, “posso ir com você?”

“Fiquei vendo filmes até muito tarde, me esqueci de tudo.”

“Que filmes você assistiu?”

“Alguns que estavam na casa de meu pai. Fui até lá, ontem. Encontrei-os e resolvi trazê-los.”

“Vou até a banca com você.”

“Tudo bem. Sabe quem me procurou, na sexta?”

“Não.”

“O Reinaldo.”

“O Reinaldo?”, surpreendeu-se. “Não o vejo faz tempo. Acho que não tem aparecido por aqui. E o que ele queria?”

“Disse que ia fazer uma viagem, ficar fora por uns meses, não sei. Não acreditei muito na história dele.”

“O Reinaldo é uma pessoa estranha. Ninguém consegue entendê-lo. Certa vez, pensei que fosse viciado em algum tipo de droga. Mas nem pra isso ele serve. Bebe um pouco, fala umas besteiras e desaparece por uns tempos.”

“Acho você muito exigente com ele. Todos têm seus problemas.”

Tínhamos chegado à banca de jornal.

“Olhe só a cara do palhaço. Já colocaram a foto na primeira página. Esses jornais subservientes apoiam todos que lhes dão algum trocado.”

Olhei uma revista. Não era sobre política. Futilidades. Mas era o que me interessava. Peguei um exemplar e paguei ao dono da banca. Jofre me olhou enviesado. Mas nada falou.

“Vou tomar um café, em casa não tenho mais açúcar”, eu disse.

Atravessamos a rua e entramos no bar. Acabou me acompanhando. Em um canto, dois homens ainda conversavam sobre as eleições. Notei que Jofre esforçou-se para ouvi-los, mas logo desistiu. Bebemos nossos cafés. Pagou o dele e o meu.

“Vamos até lá em casa”, falei.

Tomei-o pelo braço e seguimos de volta. Pareceu animar-se, esboçou um ligeiro sorriso.

Quando entramos, abracei-o.

“Esqueça isso, sobre eleições, eles não vão conseguir reger nossas vidas”, terminei a última palavra e o beijei na boca.

Falou, quase em surdina:

“Não sei, Joana. Mas talvez você tenha razão.”

Recostamo-nos no sofá, ainda abraçados um ao outro.