quinta-feira, junho 23, 2011

Quem não quer ver um político corrupto "voar" pelos ares?

Em Todo terrorista é sentimental, livro de estreia do jornalista Márcio Menezes, dois amigos, indignados com o traiçoeiro sistema político, decidem fazer justiça com as próprias mãos

Jornal do Brasil - Haron Gamal

Sobre determinados livros, não se deveriam escrever resenhas. Não pelo fato de serem maus e não merecerem justa apreciação. Mas porque perderia alguma graça falar sobre eles. Todo terrorista é sentimental, de Márcio Menezes, é um livro desse tipo. Qualquer comentário mais extenso pode colocar a perder a boa leitura. Mas o que se há de fazer? Vamos com cuidado, tocando num ponto ou noutro e tentando manter a curiosidade pela leitura, não da resenha mas do próprio romance.

A narrativa é ambientada na década de 90 do século passado. Dois amigos, estudantes de jornalismo, sentem-se indignados quando uma vendedora de biscoitos tem um enfarte e morre em seus braços. Os dois, no entanto, não demoram a descobrir que a causa da morte da mulher é outra, fruto do “Escândalo da Amarelinha, caso em que a máfia dos laboratórios revendia ao Estado remédios falsificados por preços acessíveis”.

Estão envolvidos um deputado federal e alguns vereadores da Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Uma vez que estamos num período em que as pessoas se indignam mas não tomam atitude alguma e as CPIs nunca dão em nada, Gonzáles e Cito, os dois amigos, decidem fazer justiça com as próprias mãos. Criam uma organização cujo nome é: Comando Terrorista Anticorrupção.

Não vamos dizer que se trata de romantismo adolescente ou juvenil. O tal comando vai se municiar de muita dinamite. Quase ao acaso, seus dois únicos integrantes (ao menos no início, porque depois se juntará a eles uma mulher fatal) travam relações com dois veteranos do ETA, um vive clandestinamente no Rio de Janeiro, o outro está apenas de passagem. Eles tornam-se úteis ao Comando, sobretudo quando a necessidade é o conhecimento e manuseio de explosivos. Acabam colaborando sem segundas intenções, e até mesmo ignorando o que os jovens almejam. A partir daí, nos tornamos todos terroristas. Quem não quer ver um político corrupto "voar" pelos ares?

Muito corajoso o escritor ao discutir a questão do terrorismo num período pós-11 de Setembro. É digna de louvor a iniciativa da editora Record, que possibilitou a publicação. Habitássemos um país de caça às bruxas, dir-se-ia que o romance faz apologia à luta armada. Mas nada disso. A literatura não tem esse poder e, ao mesmo tempo, não pode negligenciar qualquer assunto.

O romance é composto de prólogo e três partes. Ambientado no Rio de janeiro, em sua maior parte nos bairros de Botafogo, Ipanema, Leblon e Gávea, onde seus personagens transitam entre bebedeiras, sexo, drogas, muito rock’n’roll, alguns clássicos da MPB, jazz e também Chico Science.

Desfilam mulheres esculturais, gays, lésbicas, um policial corrupto e trupes de teatro. Não faltam cenas vividas nos bares do baixo Gávea e filmes do circuito Estação. O futebol também dá o ar de sua graça com jogos do Botafogo no Maracanã, já que os dois protagonistas são botafoguenses doentes.

Contando em primeira pessoa, o narrador, ao antecipar alguns acontecimentos, cria um artifício que faz o leitor não querer abandonar o livro. No final, ao se descobrir onde esse narrador se encontra, percebe-se, porém, um ligeiro problema. Ele, por pelo menos duas vezes, não poderia saber, num espaço tão curto de tempo, tanta coisa que não presenciou.

A intromissão de Crime e castigo, de Dostoievski, lido pelo personagem Cito e base teórica da ação do Comando, também é problemática, porque ao leitor que não conhece a obra do escritor russo fica a impressão errônea de que ele incentiva o terror. Como, no entanto, a literatura não tem grandes compromissos com a realidade, pode-se olhar tudo como farsa.

Apesar de ser o primeiro romance de Márcio Menezes, o livro tem grandes chances de se tornar um best-seller. Surpreende que as livrarias não o apresentem nos estandes de entrada nem a editora se preocupe em fazer uma divulgação mais intensa da obra. Afinal, quem tem medo da literatura?



Todo terrorista é sentimental, de Márcio Menezes. Grupo Editorial Record. 352 páginas. R$ 42,90.

segunda-feira, junho 06, 2011




Pessoa, (quase) por ele mesmo



Na extensa biografia do poeta português, o autor pernambucano João Paulo Cavalcanti Filho deixa o escritor falar, citando frases ditas por ele e imitando o estilo



Jornal do Brasil
Haron Gamal

Escrever uma biografia envolve sérios riscos. O primeiro deles é a demasiada paixão pelo biografado, a ponto de fazer o pesquisador não se reservar o direito a certo distanciamento crítico. O segundo é que, na maioria das vezes, é preciso tomar decisões sobre o caminho a seguir, uma vez que ao biógrafo não são oferecidas as margens plácidas da neutralidade. João Paulo Cavalcanti Filho, ao escrever o extenso livro Fernando Pessoa – Uma quase autobiografia, conseguiu sair ileso de ambos os problemas.

Talvez o que tenha de mais original – e que deve ser elogiado – nesta nova biografia sobre o autor de Mensagem é a inserção de escritos de sua própria lavra, fazendo o livro parecer, como ressalta o subtítulo, “uma quase autobiografia”, permissões, quem sabe, da pós-modernidade. Cavalcanti deixa o escritor falar, e nos alerta: “Este livro, pois, não é o que Pessoa disse, ao tempo em que o disse; é o que quero dizer por palavras dele. Com aspas é ele, sem aspas sou eu”. E segue a obra. João Paulo confessa que constrói períodos com estrutura parecida aos do poeta, com o objetivo de imitar-lhe o estilo.

O biógrafo pernambucano demonstra ter feito vasta pesquisa não apenas bibliográfica, mas saiu a campo, como se pode observar nos minuciosos relatos sobre os lugares onde Pessoa viveu e transitou. Remanescentes que presenciaram os últimos anos do autor, sobretudo descendentes de seus tios, irmãos e amigos próximos, foram entrevistados, com o objetivo de se chegar sempre mais perto de sua figura e da Lisboa em que viveu. Mas percebe-se que Pessoa é sempre fugidio. O melhor dele ainda está na própria obra.


Vários – Fernando Pessoa, segundo a obra, teve 127 heterônimosO detalhado livro é dividido em quatro partes, nomeadas atos, como no teatro: Em que se conta dos seus primeiros passos e caminhos; Em que se conta da arte de fingir e de seus heterônimos; Em que se conta de seus muitos gostos e ofícios; Em que se conta do desassossego e do seu destino.

Na primeira parte, os fatos mais importantes na vida do futuro poeta são as marcas deixadas pela perda do pai e da pátria, com ele ainda criança. O novo casamento da mãe com um homem que assumiria na África do Sul a função de cônsul interino de Portugal obriga a família a viajar para longe, fixando-se no continente africano (África branca, como diz Cavalcanti Filho). Fernando Pessoa vive por lá o restante de sua infância e parte da adolescência.

Fica para trás Lisboa, uma espécie de paraíso perdido, e aflora a saudade, tema sempre presente na poesia portuguesa e em muitos dos poemas do autor: “Nunca voltarei./ Nunca voltarei porque nunca se volta. / O lugar a que se volta é sempre outro”. Nessa primeira parte também somos apresentados a Ophelia Queiroz, sua eterna namorada. Ela sempre teve esperança de se casar com o poeta, mas a aliança não se concretizou. A amizade com Mário de Sá-Carneiro também lhe é marcante, “seria a mais sólida e duradoura amizade, a única a que verdadeiramente se entregaria”. O suicídio de Mário em Paris, em 1916, o afeta profundamente.

Marca maior de originalidade em Fernando Pessoa é a criação dos heterônimos, tema estudado no segundo ato. Seu mais recente biógrafo chega a enumerar 127 deles, fazendo um levantamento do que escreveram e de suas biografias (quando tiveram).

É lógico que os de obras e biografias mais extensas são a de Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Alexander Search, Álvaro de Campos e Bernardo Soares. Mas há também heterônimos que só escreveram um fragmento de texto, ou mesmo alguns que são apenas citados mas nada escreveram.

Havia apenas planos para eles nos escritos deixados pelo poeta. Estes últimos não são contabilizados. Fernando Pessoa, ele mesmo, também é tratado como um heterônimo. “Você, quando escreveu em seu próprio nome, não foi menos heterônimo como qualquer um deles”, disse, numa ocasião, Jorge de Sena. Talvez muita gente não saiba, mas nos encontros com Ophelia, com outros escritores e com amigos mais próximos, o poeta muitas vezes se apresentava como Álvaro de Campos, ou mesmo como algum outro heterônimo.

Um capítulo de destaque ainda na segunda parte é O poeta é um fingidor. No trecho, o autor discorre sobre as características da obra de Pessoa, como a precisão da linguagem, o rigor da forma, a ironia, o discurso de contradições, o uso do oxímoro, e a arte de fingir como estética, o que permitiu a existência de tantos heterônimos.

No capítulo As revistas, é descrita a participação de Pessoa nas revistas literárias, já que ele publicou mais nesses periódicos do que em livro durante toda a vida. Também é contada em pormenores a história da principal revista que mudou o destino da literatura portuguesa no século 20, a Orpheu, com apenas três números, mas o suficiente para fazer história.

O périplo do livro Mensagem, o único em português publicado em vida por Fernando Pessoa, também é narrado em capítulo à parte, ressaltando-se o concurso em que obteve um segundo lugar, na verdade arranjado por Antonio Ferro, seu amigo e um dos responsáveis pela disputa. Ferro abriu uma brecha no regulamento para criar uma espécie de segundo prêmio na categoria poesia. Assim, Pessoa pode ser contemplado, já que os jurados, numa postura pró-Salazar, não optaram em lhe dar o prêmio. Hoje se sabe que ele, naquele tempo, mudara sua postura e passara a atacar o ditador.

José Paulo Cavalcanti Filho procura investigar a vida, a obra e a morte de Fernando Pessoa por todos os ângulos. Explora desde o suposto homossexualismo, do qual discorda, até suas dificuldades, a caótica vida financeira. Não foge também da questão do alcoolismo, sob o qual viveu Pessoa até o fim da vida, e investiga os últimos dias do poeta e as causas de sua morte.

Fernando Pessoa, é bom ressaltar, não viveu de literatura, foi uma espécie de tradutor comercial, e morreu pobre. Foram poucos os acadêmicos de seu tempo que deram o devido valor que sua obra merecia. Após a morte, tornou-se reconhecido e estudado, tendo hoje praticamente toda a sua obra publicada.

Interessante é que Cavalcanti Filho, apesar de ser escritor e de escrever sobre um dos maiores poetas da literatura em língua portuguesa, não é da área de letras, mas advogado. Portanto, percebe-se que a poesia maior consegue romper o círculo dos professores e estudantes de literatura e chegar a pessoas de outros interesses profissionais.

Fernando Pessoa – Quase uma autobiografia, de José Paulo Cavalcanti Filho. Editora Record, 736 páginas. R$ 79,90.