sexta-feira, janeiro 26, 2007

Malbork
Quando desci do trem em Malbork e percebi a atmosfera da cidade, comecei a experimentar sensações que nos ocorrem apenas quando estamos num local que não visitamos há anos. As pessoas pareciam afáveis e logo um dos carregadores se ofereceu para levar minha bagagem. Confesso que achei sua fisionomia familiar. Cumprimentei-o e disse-lhe que precisava de um táxi. Atravessamos todo o pátio da estação entre gente que se preparava para embarcar. Como a cidade não era tão populosa, a grande quantidade de viajantes assustou-me. Mas meu carregador, no entanto, antecipou-se:
– Muitos vão para as montanhas nesta época do ano, é a temporada de inverno, a cidade vira ponto de conexão. Se ao menos isso gerasse algum benefício para Malbork, mas nos resta apenas migalhas na porcentagem dos impostos.
Perguntei se conhecia o Wensk.
– Oh, é um bom hotel, é para lá que o senhor vai?
– Não, não – apressei-me em dizer –, vou para o Hilton.
– Fica em frente, e também não deixa de ser bom. Há todas as noites um carteado forte no salão principal. Vem gente de longe jogar ali.
– Não é o meu caso, bem... – quis justificar-me, mas concluí a tempo que qualquer explicação seria desnecessária. Ele manteve a discrição e nada mais falou até chegarmos à fila de táxis.
O recepcionista do hotel desejou-me boa estada na cidade, agradeceu-me pela preferência e sinalizou ao mensageiro para levar minha bagagem ao terceiro piso, onde ficava meu apartamento. Enquanto esperávamos o elevador, a porta de entrada do Hilton se abriu para alguém que chegava com algumas malas. Olhei em direção à rua e só então reparei a fachada do Wensk: suas janelas brancas o diferenciavam das demais construções vizinhas; diante da entrada de veículos, havia um pequeno semicírculo, onde os automóveis deveriam contornar caso se dirigissem ao hotel; acima da entrada principal vi dois mastros, um com a bandeira da cidade e outro, creio, com a do hotel.
À noite, permaneci no bar, pedi uma dose de uísque. Ainda não tinha coragem para começar a investigar sobre Anne, o verdadeiro motivo de minha visita àquele lugar. Enquanto o garçom servia-me procurando respeitar as regras da boa etiqueta, eu observava os outros hóspedes. Descobri homens sós, que bebiam e fumavam, pareciam tranqüilos e pensativos. Em algumas mesas, outros conversavam, contavam casos, riam e aguardavam a abertura do salão, para o início do jogo. Ainda ouvi de um deles, que usava bigode fino e fumava com piteira:
– Então, Sólon, já está recuperado?
– Acaso jogo futebol? – revidou.
– Você sabe sobre o que estou falando – continuou o primeiro, enquanto soltava o ar e se mantinha envolvido na fumaça do cigarro.
– Você não perde por esperar, Andrei. Está referindo-se ao jogo de ontem, não? Hoje você vai ver quem é Sólon.
O amigo sorriu e lhe apertou o braço direito, demonstrando concordância àquelas palavras. Depois se dirigiu ao bar e voltou com uma dose de uma bebida que não consegui distinguir.
Em uma das mesas viam-se mulheres, e eram elegantes. Também fumavam, mas pareciam não beber. Uma tinha os cabelos pretos curtos e a outra, a pele morena; pareciam aguardar alguém. A primeira demonstrava alguma impaciência, o que lhe proporcionava algum charme.
– Não, não, vocês sabem que não serão bem recebidos aqui, por favor, não insistam – era a voz do gerente, que aparecia no final do salão junto à escada e vinha acompanhado de três homens ainda jovens, um deles de cabelos compridos.
– Mas temos bastante dinheiro, veja – mostrou um deles, tirando dos bolsos maços de notas de cinqüenta coroas.
O funcionário do hotel olhou assustado, mas não se deu por vencido.
– Da ultima vez que estiveram aqui, vocês criaram problemas. Os outros jogadores quiseram chamar a polícia, disseram que vocês trapacearam, e vejam bem, nós não queremos problemas com a polícia, é melhor vocês procurarem outro lugar para jogar.
– Nada ficou provado contra nós naquele dia. Há pessoas que não sabem perder, e foi isso que aconteceu – afirmou com veemência o de cabelos compridos. E ainda continuou: – nós vencemos honestamente, somos homens corretos.
– Os participantes daquela noite julgaram impossível vocês ganharem todas as rodadas e os deixarem em frangalhos...
– Frangalhos? Ha, ha, ha, vejam só que palavra ele usa, frangalhos – e deu sonora gargalhada, se dirigindo a todos que estavam no salão. – Vejam, deixamos os nobres jogadores em frangalhos, segundo este senhor, vejam, frangalhos... – e continuou rindo.
– Keyne – interpelou o da piteira – deixe-os jogar.
O gerente o olhou com desconfiança.
– Me desculpe, senhor, não o conheço bem, o tenho visto algumas vezes, creio que não conhecem esses rapazes, são arruaceiros; se os deixamos jogar, sabemos que vão criar problemas, zelamos pela tranqüilidade desse lugar.
– Deixe-os jogar, vão perder hoje.
– Mas senhor... – ainda quis contra-argumentar o gerente.
– Eu me responsabilizo.
– Não precisamos que alguém se responsabilize. Essa é uma casa legalizada, o jogo aqui é permitido; se não nos deixarem jogar, estarão infringindo uma antiga lei do principado, podemos chamar as autoridades, nada aqui há contra nós – continuou o jovem.
O gerente ainda quis dizer alguma coisa, mas acabou silenciando. Demonstrou certo embaraço e se retirou. Sua fisionomia anunciava que depois não aceitaria reclamações.
De meu canto, pude observar melhor os três homens quando se aproximaram. O de cabelos compridos era Schrobel.
O jogo começou às 21h. Até ali os participantes não eram muitos, mas, a partir das dez, outros homens foram chegando e se juntando à mesa de pôquer. As duas mulheres, que estavam no salão, também ingressaram no jogo; ainda fumavam e, agora, bebiam algo que tinha coloração rosa.
À meia-noite, entrou uma dama vestida de preto. Alguns homens se levantaram para cumprimentá-la. Ela correspondeu movimentando a cabeça com suavidade e oferecendo uma das mãos de maneira delicada. Dedicaram-lhe o melhor lugar à mesa.
Nesse momento, percebi que minha estada na cidade seria turbulenta. Aquela mulher era Anne. Não fazia idéia que tinha tantos conhecidos e achei que não poderia manter discrição alguma caso desejasse estar a sós com ela.
Por incrível que pudesse parecer, Schrobel e seus amigos perdiam até ali. É verdade que deram algumas mordidas iniciais, mas naquele momento tudo indicava que a sorte não os favorecia.
A chegada de Anne provocou burburinho que a princípio não consegui entender. Um dos garçons, porém, após me trazer mais uma dose, deixou escapar, não sem que eu lhe enfiasse em um dos bolsos uma nota de dez:
– É a senhora Anne, o senhor nunca ouviu falar a seu respeito? É uma grande jogadora. É rica. Ganha na maioria das vezes.
Afastou-se sem mais comentários.
A mulher de negro ganhou logo a primeira rodada. Depois ela e Schrobel alternaram-se nas vitórias. Os outros parceiros começaram a se impacientar e se mostravam propensos a abandonar a mesa. O de bigode fino, que pilheriara no salão antes do jogo, agora via sua fichas – na verdade acumulara muitas desde o começo – se perderem. Seu amigo Solon mantinha os olhos arregalados, como quisesse dizer que não poderia perder tanto duas noites consecutivas. As outras mulheres estavam desconcertadas e, para disfarçar, acenaram ao garçom pedindo-lhe que enchesse ambos os copos. Outros tantos homens que ainda permaneciam viam suas fichas se acumularem ora ao lado de Anne, ora ao lado do homem jovem de cabelos compridos.
A partir das duas da madrugada, apenas os dois permaneciam na mesa: Anne, de um lado e Schrobel, do outro.
Alguém tentou fazer humor ligando o nome do jogador à poesia pela qual era conhecido, chegando a sugerir que, em vez de vencer sempre, deveria parar para recitar alguns poemas.
A resposta imediata partiu de um de seus amigos:
– Idiota, não vê que a poesia hoje está nas cartas.
O homem de meia idade, enfurecido e envergonhado, tentou agredi-lo, mas foi contido pelos que olhavam o jogo, sendo retirado do salão. Schrobel manteve-se impassível e ganhou duas vezes seguidas. A mulher recuperou uma, mas depois perdeu as outras três rodadas.
Às três e um quarto o jogo terminou com a vantagem para o poeta. Ambos se cumprimentaram de modo formal e se retiraram. Ninguém no salão ousou afirmar que houvera trapaça naquela noite.
Na tarde seguinte, eu caminhava sob frio intenso por uma das ruas laterais ao meu hotel. Por diversas vezes passara diante do Wensk e pensara alguma maneira de chegar até Anne. Havia poucas pessoas na rua, e vez ou outra algum veículo trafegava vagaroso. Ao voltar ao hotel, reparei no outro lado da rua um senhor gordo, de farda azul e branca, as cores do Wensk. Atravessei a avenida e me dirigi a ele. Pelo que percebi, usufruía alguns momentos de descanso na parte externa do prédio. Acendeu um cigarro enquanto eu me aproximava.
– Boa tarde, senhor – tomei a iniciativa.
– Boa tarde – respondeu-me com alguma desconfiança; então percebi que ele tinha algum problema no olho esquerdo, pois o piscava continuamente.
– Preciso saber a respeito de um hóspede – arrisquei.
– Dirija-se ao balcão de recepção, por favor, lá há uma recepcionista.
Sim, era isso que eu já deveria ter feito e não tivera coragem: procurar por Anne em seu próprio hotel.
A funcionária cumprimentou-me atenciosa e perguntou o que desejava. Após minhas poucas palavras, quis saber meu nome. Fez então uma ligação. Aguardei alguns nervosos segundos. A seguir falou:
– Tenha bondade, senhor, apartamento 314 – e me indicou o caminho.
Anne demonstrou alegria porque eu estava a procurá-la.
– Por que não falou comigo ontem à noite, durante o pôquer no Hilton?
Não sabia que dera por minha presença na noite anterior e só consegui desvencilhar-me da pergunta fazendo outra.
– Como você e Schrobel conseguem trapacear com tanta perfeição?
Deu uma gargalhada movimentando a cabeça para trás. Pude então reparar que, apesar das olheiras e algumas marcas que o passar dos anos lhe impusera, ainda mantinha a beleza de outros tempos.
– Não entendo como esses velhos podem ser tão idiotas – completei.
– Vamos sair, quero mostrar a você um lugar maravilhoso, onde poderemos conversar com tranqüilidade e saborear alguma coisa apetitosa.
Ligou a seguir para a recepção.
– Karenya, por favor, peça a meu motorista para estar à entrada em quinze minutos.
Ele se apresentou pontualmente e nos abriu a porta do veículo com toda a formalidade.
Rumávamos a uma estação montanhosa, nos arredores de Malbork.

sexta-feira, janeiro 12, 2007

Gunsk

A primavera é uma estação alegre em grande parte dos lugares, sobretudo em Gunsk. O degelo acontecia de modo que não atrapalhava a vida dos habitantes da pequena cidade. Meu hotel se situava junto ao lago. Podia-se vislumbrar de uma das janelas do segundo andar a fina camada de gelo que se desfazia a cada dia e em breve daria lugar às límpidas águas do lago, que brilhariam novamente sob os mornos raios de sol.
Naquela manhã de fins de março, dirigia-me ao restaurante. Costumava-se comer em demasia naquele lugar, mas desejava apenas o desjejum. Uma xícara de café com leite, algumas torradas e iogurte. Havia poucos hóspedes no hotel. Fora da temporada, não há quase viajantes. Surpreendeu-me uma mulher só, que usava óculos escuros dentro do restaurante e se sentava junto a uma mesa próxima à escada que levava ao piso inferior.
Tentei disfarçar meu interesse em observar sua silhueta. Fazia seu pequeno almoço devagar e olhava as páginas de um livro. As outras mesas estavam praticamente vazias. No lado oposto, junto à janela que dava vista para a entrada principal, três senhores conversavam quase que de modo inaudível. Pareciam querer contribuir com o ambiente de paz e silêncio do lugar.
A chegada de um dos garçons com a bandeja plena de xícaras, pequenos pratos e talheres provocou um tilintar que me fez voltar novamente para a mulher. Agora ele a servia com zelo e atenção.
No decorrer da manhã, enquanto eu caminhava pelas alamedas frias e ainda com pouca vegetação, pensei o que uma mulher sozinha estaria fazendo ali naquela época do ano. Perdi-me em divagações que não eram de minha conta. E flagrava-me em atitude um tanto conservadora.
A cena se repetiu durante três dias. Sempre a via no mesmo lugar, lendo o livro, e, cobrindo-lhe os olhos, os óculos escuros. Não consegui enxergar título ou autor do livro. Ela comia e bebia vagarosamente, quase não fazia movimento algum. Tudo parecia ser repetição da cena que presenciei no primeiro dia.
Na manhã de quinta-feira, não mais a encontrei no restaurante durante o café da manhã. Provavelmente partira, pensei. Durante a tarde, no entanto, a avistei num dos bancos do parque. Senti vontade de me aproximar, mas não tive coragem. Ela, no entanto, sem desviar a vista do que ainda lia, me dirigiu algumas palavras. A princípio não compreendi. Mas depois de alguns instantes, percebi que me cumprimentava. Parei e retribuí-lhe a atenção. Surpreendi-me novamente quando me dirigiu as seguintes palavras:
– Sente-se um pouco, ainda é cedo para a hora do chá.
– Oh, não tolero chá – respondi.
– É por isso que nunca o vejo no restaurante à tarde.
Não falou mais nada. Ainda demonstrei certo desconforto devido ao silêncio que se estendeu dali em diante. Ela não se moveu. À hora do chá, pediu licença, levantou-se e se foi.
Eu partiria no dia seguinte. Concluí, então, que não seria possível estabelecer algum tipo de relação com ela. Durante à noite, porém, acordei com alguém batendo à porta do meu quarto. A princípio, estranhei. Depois fui abrir. Surpreendeu-me a presença dela. Ainda usava os óculos escuros e se podia perceber que tinha chorado. Pedi que entrasse. Apontei uma cadeira junto ao aparador. Ela abaixou a cabeça e permaneceu durante muito tempo naquela posição.
– Ainda não sei seu nome – experimentei.
– Elizabeth – proferiu num tom de voz suave.
– O que houve?, algum problema?
– Não, não houve nada.
Foi só o que respondeu. E novamente mergulhou num longo silêncio.
Apaguei a luz do quarto. A claridade ofuscava-me. Deixei acesa apenas a luz de um abajur lateral.
– Você é um escritor famoso, não? – perguntou.
– Escritor, sim; famoso, nem tanto.
– Li seus dois livros.
– O segundo foi muito criticado.
– Sei, acompanhei a polêmica – resumiu com voz embargada.
– Você bateu aqui às duas da madrugada para discutir literatura?
– Não, nem tanto – chegou a sorrir.
– Você acredita que os personagens poderiam ser pessoas reais? – continuou.
– Como assim? – surpreendi-me.
– Por exemplo: aconteceria tanta coisa a Leopold Bloom, em um dia, se ele fosse um homem de carne e osso?
– Ele era de carne e osso.
– Se fosse uma pessoa como qualquer um de nós? - ela insistia.
– Essa é uma questão complexa.
– Como assim?
– Creio que seria inútil conversarmos sobre isso agora.
– Descobri que você vai embora amanhã.
– E você, mora aqui?
– Vou-me embora à tarde.
Levantou a cabeça e fixou o rosto em minha direção.
– Podemos nos ver em outra ocasião, em outro lugar – arrisquei.
– Responda-me só uma coisa: você acredita que a trajetória de um personagem poderia ser real?
– O real é discutível - redargüi.
– Muitos falam assim.
– Sim. A maioria das coisas são construções. Vivemos mais de histórias. O que corresponde ao real, ou à realidade, no espaço de um dia? Você daria conta de absorver através de seus sentidos tudo que está à sua volta, ao natural? Estamos aqui nesse hotel. Vemos o jardim, o restaurante, o quarto. Suponhamos que essas coisas sejam reais. Será que só vivemos dessas visões? Lembramos, pensamos, articulamos. O que são essas coisas? São experiências diretas ou estão misturadas ao que nos disseram, nos contaram ou lemos? Mesmo que algumas tenham sido experiências diretas, não são reais. Passam pelo crivo dos conceitos que criamos. Como eu falei no início, é uma questão muito complexa. Há os jornais, o rádio, a TV. Estamos mais cercados dessas coisas do que desse seu real...
– O real não é meu, – interrompeu – é um fato.
– Se você considera que tudo que nos chega é real...
– Nem tudo.
– Dê um exemplo.
– Será que eu sou real? Sou, você não acha?
– Depende. Você representa uma realidade. O real é uma outra coisa.
– Que coisa?
– Talvez o deserto, como diz aquele filme.
– Seus livros não são reais?
Comecei a perceber que ela brincava. Apaguei a luz e disse a ela.
– O que você vê agora?
– Nada.
– Então, isto é o real. Se acendo a luz, não há mais real. A própria lâmpada é uma construção. E também tudo que você verá em volta.
– Não acenda a luz – me pediu.
Senti que ela deitou-se a meu lado. E, talvez ironicamente, acrescentou:
– Vamos viver o real, mesmo que seja por uma noite.