sábado, setembro 10, 2011

Resenha do livro: Ensaios de poética e hermenêutica, de Ronaldes de Melo e Souza

À literatura compete a visão múltipla do real, este que muitas vezes não se apresenta ou mesmo se mostra furtivo e de forma fraturada. A tradição filosófica, a partir do momento em que abandona as narrativas de cunho mítico, tentativas de explicação de mundo através de fatos e personagens plenos de alegoria, ricos em sentidos outros, furtará do ser a eternidade e a multiplicidade, instaurando uma visão de mundo unívoca, que se cristalizará com o apogeu do racionalismo, nos meados da idade moderna. Por falar em ser, é bom afirmar a dificuldade de se conceituá-lo devido à premência de apenas se poder pensá-lo e percebê-lo a partir, tão somente, de sua própria constatação. Refletir sobre o ser levando-se em consideração o não-ser, o jamais experimentado por nenhum ente, torna-se absolutamente inviável.

A hierofania, isto é, o caráter sagrado e extático (de êxtase) não do divino, mas do sensível e humano, permeará todos os ensaios deste livro de Ronaldes de Melo e Souza. O autor, ao contestar o antropocentrismo – que se inicia com Sócrates, continua em Platão e culminará com a filosofia de Aristóteles –, privilegia os filósofos erroneamente conhecidos como pré-socráticos, cujo pensar mítico se entremeia à razão e possibilita maior justeza à multiplicidade do ser, visão de mundo e da vida a partir do polissêmico, significando que nascimento e morte, ser e não-ser são unos e indissolúveis, não tornando o ser eterno, mas insistindo na eternidade do devir.

Ensaios de poética e hermenêutica, livro composto por nove ensaios, se estende em grande parte pela literatura e pensamento ocidentais.

O primeiro, “A forma ficcional do monodiálogo”, apresenta o drama do personagem cindido em polêmica consigo mesmo. Partindo de Homero, passando por Eurípedes, Virgílio, até chegar em Shakespeare, o texto conclui que a “identidade não se divorcia jamais da alteridade”. No segundo, “Poética da narrativa de primeira pessoa”, o autor demonstrará como uma narrativa na voz do próprio protagonista se torna literária, trazendo como exemplo, sobretudo, a Odisséia, de Homero. O ensaio, entre outros exemplos, não deixa à margem A Divina Comédia, de Dante, David Copperfield, de Dickens e Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis.

O terceiro, um dos ensaios de maior importância ao meu ver, tem como título: “A atualidade da tragédia grega”. O texto, tomando como base teórica “a descontrução höldeliniana e nietzschiana da metafísica”, desautoriza a tradição filosófica como estabelecedora da episteme, para transferir tal missão à tradição poética.

Em “A poética rilkiana da existência”, é possível observar como o autor de Sonetos a Orfeu transmuta, na sua obra poética, vida e morte de polos opostos a polos complementares da existência.

“O corpo de baile da linguagem e da vida” remonta, mais uma vez, à origem do mundo clássico, a Grécia, demonstrando a indivisibilidade entre música e linguagem e concebendo ambas como a expressão da vida em si mesma.

O sexto ensaio, importante para a compreensão da lírica moderna, discute “o intercâmbio dialógico da poesia e da filosofia no idealismo alemão vinculado à escola de Jena”, tendo o filósofo Fichte como interlocutor entre poetas e pensadores com seu idealismo crítico.

O sétimo e oitavo ensaios focalizam a literatura brasileira. O primeiro deles, “Agonia e morte em Autran Dourado”, aponta a obra do autor mineiro como teleotanática – “o drama agônico da vida sempre se representa como trama da morte.” Em “A ficção dramática de Graciliano Ramos”, observamos narrador e eventos completamente distanciados, estando este narrador mais para ator, que representa o seu papel, do que para um “eu” vitimizado, que estaria a narrar a própria história. O narrador de Memórias do cárcere se apresenta na posição de um “eu” coletivo, apontando e incluindo-se nas mazelas a que todos estão submetidos.

O último ensaio, “A hermenêutica de Gadamer”, questiona “a pretensão da epistemologia em se impor como modelo exclusivo de legitimação do verdadeiro conhecimento”. Princípios fundamentais de uma hermenêutica filosófica, subtítulo do trabalho de Gadamer, enunciado aparentemente paradoxal, aponta a fragilidade do método cartesiano ao determinar a verdade, tendo como implicações a impossibilidade da descrição objetiva de qualquer objeto, levando-se em consideração que há sempre um sujeito por trás de qualquer enunciado, o que revela o caráter falacioso do método.

Todos estes ensaios de Ronaldes de Melo e Souza tem um fio que os atravessa e mostra a preocupação do analista literário e do filósofo: a cristalização da espisteme como norma furtaria o caráter morfogenético da cultura. Ao seguir os passos dos poetas, deixando à deriva a tradição epistemológica, o professor da UFRJ aponta que, através da literatura, pode-se descobrir a força geradora da vida e que os contrários não necessariamente precisam estar em lados opostos, mas na maioria das vezes são complementares.

É digna de nota a preocupação do professor em tornar pesquisa de tal envergadura e erudição acessível a quem se mostra interessado pela crítica da cultura, público este que, muitas vezes, se apresenta  também numeroso fora dos muros universitários.  
 
Ensaios de poética e hermenêutica
Ronaldes de Melo e Souza
Série academia – Ed. Oficina Raquel