segunda-feira, fevereiro 11, 2008

Hei de amar

As narrativas sempre são um modo de colocar em ordem o que na verdade está à beira do caos; são uma espécie de estilização ordenada do mundo em que se vive. Principalmente na ficção, o que o leitor percebe é a construção e ordenação de uma realidade que não existiria daquela forma em outro lugar. Os acontecimentos que se estendem através de uma história, as ações e os pensamentos dos personagens não se apresentam da mesma forma como na vida real. Não estou a exigir que a literatura seja uma representação perfeita da realidade, uma espécie de mimeses, fato já por demais discutido. O que se observa, no entanto, é que toda espécie de narrativa é a organização de um mundo que dificilmente se mostraria organizado fora da literatura. Toda escrita por mais realista que tente ser, jamais o conseguirá. O fluxo de pensamentos, os atos falhos, os fatos cotidianos que se entrelaçam não permitem uma ordem tal qual existe nas histórias. Portanto, toda representação ficcional seria deste modo uma tentativa vã ou um tanto pálida de trazer à vida fatos e personagens que quiséssemos iguais a nós próprios.
Colocando a questão nessa perspectiva, podemos apreciar com a devida importância a literatura de António Lobo Antunes. Não é à toa que o autor português seja um dos mais prestigiados pelos estudiosos e por leitores especializados. Não incluo nessa última categoria apenas os mestres ou doutores em literatura, mas todos aqueles que estão acostumados a ler muitos romances e por ora percebem uma espécie de esgotamento do gênero; pois haverão de compreender a diversidade de representação e caminhos escolhidos pelo autor de Hei de amar uma pedra.
Lobo Antunes opta por uma forma narrativa que poderia parecer estranha àqueles que não estão familiarizados à sua obra ou mesmo à ficção contemporânea. No livro citado, observamos o percurso de vários membros de uma família portuguesa e de algumas pessoas que estão à sua órbita; todos vivem em Lisboa ou arredores. A história não apresenta muita novidade, porque os acontecimentos ali narrados são comuns a todas as famílias de classe média pelo mundo afora. Mas o autor português dá forma à sua história de uma maneira muito original. Seus personagens têm voz própria, lembranças e preocupações que se repetem, tal qual acontecem a todos os seres humanos, e são representadas com mestria. Não seria exagero afirmar que Lobo Antunes cria uma linguagem particular, linguagem capaz de dar conta da natureza humana com “quase” inteiro realismo. A forma como os episódios aparecem e se repetem, o modo como as rememorações vão e voltam à mente dos personagens, o martelar permanente de preocupações são capazes de trazer à tona a angústia plena à qual o ser humano sempre esteve submetido.
Não é premente o interesse pela direção a que a narrativa há de tomar, ou qual será o seu desfecho. Isso não é o mais importante. O que soçobra é a quantidade de cacos que deixamos à deriva durante a existência, cacos impossíveis de reconstituírem o objeto que constituíram no passado, mas capazes de revelar a inteireza – por paradoxal que seja essa afirmação – da angústia provocada pelo estar no mundo, enfim, pelo existir.

Hei de amar uma pedra
António Lobo Antunes
Ed. Alfaguara
558 páginas