quarta-feira, março 22, 2006

Passaporte europeu

O Arraial do Sana está às escuras, é sábado de carnaval. Muitos jovens andam de um lado a outro na rua principal, junto à única praça da cidade; ao fundo, há uma pequena igreja. O aspecto é de uma minúscula localidade rústica. As casas revelam arquitetura colonial, o que combina com as montanhas que rodeiam o arraial. Se o aglomerado urbano fosse um pouco maior, poder-se-ia chamá-lo de uma cidade entre às montanhas. Mas é um lugarejo: a rua principal, duas ou três transversais e o caminho para as cachoeiras.

Quando a energia elétrica retorna, é possível distinguir com nitidez o casario e suas cores alegres, descobrir bares e pequenas lojas de artesanatos. Pela rua, enfileiram-se artistas com variados objetos expostos sobre panos que cobrem o passeio; os produtos mais comuns são colares e pulseiras de metal ou mesmo de fios de tecido.

Aqui, o consumo de maconha é livre. Não existe polícia. Os moradores não reclamam e lucram com isso, porque a maioria aluga quartos para aqueles que chegam em grande quantidade, sobretudo em períodos de temporada, na verdade jovens aventureiros. Existem também os terrenos que se estendem diante e atrás das casas e se transformam em alegres campings, onde se permite a armação de barracas em troca de alguns reais por cada hóspede.

Junto a um bar que também funciona como padaria, vejo uma mulher loura e outra de cabelos pretos. Fumam. A loura passa o baseado à amiga. Esta sorve-o com voracidade e prazer, depois devolve o pequeno cigarro. Reparo que falam língua estrangeira. De início penso que são argentinas, horas depois vou descobrir que o idioma delas é o italiano.

Uma pequena banda se aproxima da praça. Algumas pessoas seguem os músicos e dançam entusiasmadas. As duas mulheres ensaiam alguns passos e entram na festa; são seguidas de mais gente que está nas imediações. O carnaval toma conta do lugar e parece injetar energia nas pessoas; a festa que tinha começado arrastada e em meio à escuridão agora segue em ritmo intenso. Perco de vista as duas mulheres. Não posso abandonar o local, sou artesão e para permanecer no arraial até terça ou quarta preciso ganhar algum dinheiro.

Às duas da madrugada aperto o meu cigarro, depois o acendo, dou numa longa tragada. Fecho os olhos, então sinto que alguém me puxa por um dos braços. Ouço a seguir a voz rouca do amigo:
- Vamos ao Jamaica, a coisa lá tá boa.

O Jamaica é um amontoado confuso de barracas que costuma ser chamado de camping. Seu proprietário é um negro de cabelos rastafari. Conseguiu dar ao local características reggae. Próximo à entrada, avista-se o tablado que é utilizado como palco quando ali acontecem shows, depois se estende espaço semelhante a uma quadra de vôlei. Dobrando à esquerda, entra-se no bar. As paredes são de madeira, com muitas fotos de bandas reggae. É possível se sentir bem ali enquanto se bebe alguma coisa. Subindo o caminho gramado à direita, atinge-se o acampamento. As barracas se aglomeram de forma desordenada e, no carnaval ou em outros feriados extensos, conforto é palavra banida dali. Não é preciso dizer que o cheiro da erva paira durante as vinte quatro horas do dia, e que ninguém é molestado por consumir tal preciosidade.

Ao entrar encontro alegre multidão. Vou pedindo licença, caminho em direção ao bar. Há pouca luz, mais homens do que mulheres. No palco, dois músicos tentam injetar ânimo na garotada com o intenso ritmo da América Central. Da América pobre, da América dos doidões, dos sem perspectivas, daqueles que sonham com não mais que um baseado e uma mulher por uma noite antes que tudo se acabe.

Peço uma dose de vodka e refrigerante sabor laranja. Sento em um dos bancos, faço a mistura e começo a beber. Um casal se beija ao meu lado. A garçonete passa e me olha de relance. Quatro ou cinco rapazes entram, pedem cerveja; já estão muito alegres. Então reparo que há uma mulher entre eles. O amigo que me chamou para estar ali, só agora aparece. Olha demoradamente as bebidas. Parece ter dúvida sobre o que pedir. Acaba escolhendo uma taça de vinho. Depois que a experimenta, vira-se para mim e diz:

- Que merda! Parece suco de uva.

Toco-lhe um dos braços. Ele me olha. Aponto duas mulheres. São as italianas.

Há no começo um grande problema. Italiano e português vieram da mesma mãe, mas pouco se entendem. No momento mais difícil, tento a língua universal; dou à loura meu último baseado. Aí ela me entende. Fica comigo pelo resto da noite. Não precisamos de muitas palavras. Nossos corpos falam por nós.

No dia seguinte, acordo sozinho. Olho ao redor, não há vestígios da mulher. Procuro meu amigo. Ele dorme também sozinho, profundamente.

À tarde, avisto a loura. Vem a meu encontro; me beija na boca.

- Tu sei un uomo amabilissimo!

Não demoro a descobrir que estão numa pousada. Preferiram o lugar ao camping. Com a voz melodiosa tenta me explicar que lá estão acampadas. Mas só as duas. O proprietário permitiu que armassem a barraca.

No domingo e na segunda, permanecemos juntos; eu com a loura, meu amigo com a outra. Misturamos nossas línguas, misturamos nossas secreções. Abandono meus afazeres e a acompanho nas cachoeiras. Ela usa saia curta. As pernas brancas sobressaem, denunciam-na estrangeira.

Somos todos latinos, em menor ou maior grau, mas entre nós há uma África. Para ela pitoresca, para mim, carga pesada.

Na terça, as duas embarcam numa camioneta em direção ao Rio. Antes de partir, agarra-me num longo beijo.

- Tu sei un uomo amabilissimo!

Minha cor e meus cabelos ásperos e embaraçados contrastam a seu aspecto limpo, sua pele branca, seus cabelos louros.

Dois dias depois vão pegar o avião para a Itália. Moram em Turim. Vão embora. Vão para o mundo organizado, para a Europa.

Aqui, nuvens escuras despencam sobre nós. A fumaça do cigarro de maconha invade nossos pulmões. No Rio ou em São Paulo, a polícia vai nos extorquir. Sabemos disso.

Elas dizem que gostaram do Brasil, que gostaram daqui; garantem que voltam. Nunca viram tamanha liberdade. Não há lugar melhor no mundo. São turistas. São italianas, podem andar por onde quiserem. Passaportes europeus.

Olho meu amigo. Ele ressona recostado ao muro da igreja. Tem aspecto sujo, os cabelos emaranhados, a barba por fazer. Somos fugitivos em nosso próprio país. Escondemo-nos. Não há lugar para nós.

- È la migliore piazza del mondo!

Estamos fodidos.