quinta-feira, outubro 16, 2008

Os filhos de Machado de Assis

Na comemoração do centenário de morte de Machado de Assis, observa-se uma enxurrada de lançamentos a respeito da obra e da vida do autor. Apesar do grande número de publicações, tem-se discutido nos eventos universitários que pouca coisa nova tem vindo à luz. As editoras, ao mesmo tempo, aproveitam para relançar em novas edições e formatos os romances, contos, poemas e a obra crítica daquele que foi um dos maiores escritores em língua portuguesa. Outro tipo de publicação, no entanto, também ocupa as prateleiras e estandes das livrarias: a reescrita de livros de Machado sob outras perspectivas, ou mesmo a retomada de determinadas personagens machadianas, que reaparecem em novas situações.
Um dos livros que surge nessa esteira é A filha do escritor, de Gustavo Bernardo. Temerosa empreitada a retomada de uma personagem feminina de Machado de Assis e a sobrevida que ela recebe na contemporaneidade. Trata-se de Lívia, heroína de Ressurreição, primeiro romance de um Machado ainda em início de carreira, mas em cuja narrativa já cintilam as características básicas que irão brilhar de modo mais intenso nos romances que surgirão a partir da década de 1880. Gustavo, professor de literatura em universidade pública, já há muito na estrada, inclusive com publicações teóricas sobre a matéria, é de longa data um bom ficcionista. Seu livro mostra-se inicialmente interessante e até capaz de empolgar o leitor. Deseja-se saber o que acontecerá àquela adorável mulher que chega a um “estabelecimento” em Itaguaí e diz que precisa hospedar-se ali porque marcara um encontro com o próprio pai. Nada haveria de estranho se o pai da jovem mulher não fosse Machado de Assis. Sim, é isso que acontece. Lívia, a personagem principal de Ressurreição, surge cem anos depois da morte do autor, para esperá-lo. Traz junto a si um filho, que apenas ela vê, e o estabelecimento onde pretende hospedar-se é um hospício, situado exatamente em Itaguaí. Daí em diante, o leitor já suspeita o que poderá acontecer. Há um cruzamento de textos, desde o que já citamos até o famoso conto O alienista, também de Machado. Mas quem fica na verdade perturbado pela situação é o médico psiquiatra que a recebe e deixa-se envolver pela história que a moça conta. Talvez a caracterização dessa Lívia, de Bernardo, já pagasse o preço do livro e a curiosidade para se ler o romance. Mas eis que acontece o inesperado (ou o esperado?): o escritor opta pelo final mais óbvio, entrevisto até mesmo por quem nunca leu Machado de Assis.
Mas, no cômputo geral, vale a pena acompanhar o desventurado médico, toda a sua angústia, as histórias dos outros loucos que habitam a casa e até mesmo os olhos desconfiados da enfermeira Leonela. O autor demonstra ter estudado um pouco a ciência médica, especialmente a psiquiatria, para escrever o romance, embora para um ficcionista nada seja impossível.
Talvez a maior dificuldade seja conseguir retomar personagens machadianas e dar a elas uma mão de tinta diferente. O autor é convincente a respeito de Lívia e seu filho, mas quanto ao narrador deixa a desejar.
Tornou-se uma obsessão entre os estudiosos de Machado de Assis a questão do narrador. Todos sabem que o narrador é um personagem que possui um nível maior de autoridade, e neste livro quem narra – a princípio – é o próprio médico. Mas Gustavo Bernardo traz para as suas páginas a questão já discutida exaustivamente e que não é unanimidade no meio acadêmico: o problema do narrador não-confiável. Durante um bom tempo os críticos talvez tenham desejado dar a Machado a característica de querer lograr o leitor. Brás Cubas é caracterizado por muitos como um narrador não-confiável; a mesma qualificação é atribuída a Bento Santiago, em Dom Casmurro. O autor de A filha do escritor faz a opção por esse tipo de narrador, talvez querendo seguir uma das trilhas mais sutis e bem sucedidas do autor de Ressurreição. E é lógico que acaba por não atingir o sucesso desejado.
Uma literatura não é feita só de clássicos e, em todas elas, é difícil encontrar autores geniais. Gustavo Bernardo é um bom escritor, merece ser lido, mas – nem talvez seja essa sua intenção – não atinge a estatura de um Machado de Assis. O que fica em quem lê A filha do escritor é o desejo de retomar os livros de Machado e tentar descobrir, sobretudo caso se trate de um leitor não especializado, a genialidade de um escritor que, muitas vezes, ficou obscurecida por sua equivocada abordagem nos anos escolares. Inclusive o médico de A filha do escritor, doutor Joaquim (mais uma coincidência?), diz que nos tempos de estudante nunca leu um romance completo de Machado, mas encomenda toda a obra e nela mergulha a partir da chegada de Lívia a seu “estabelecimento”. Portanto, a vinda a público de mais esse lançamento no rastro do centenário de morte de Machado de Assis pode levar muitos – fora dos círculos universitários – a reverem a cotação deste autor e fazer que uma nova leva de leitores mergulhem, seguindo o exemplo do transtornado psiquiatra, na obra do criador de Capitu.

A filha do escritor
Gustavo Bernardo
Ed. Agir, 148 páginas.