Imagens Brilhantes
Será talvez um pouco tarde para escrever sobre Lugar público, de José Agripino de Paula? O livro teve primeira edição em 1965, com prefácio de Carlos Heitor Cony, que reaparece na edição de 2004, da Ed. Papagaio. Cony inicia assim seu texto: “A primeira constatação, após a leitura desse romance, é positiva: ganha a literatura brasileira um novo criador” e ainda acrescenta algumas linhas depois: “[o autor] consegue construir o seu universo peculiar e universal; para ser mais exato, seu universo particularmente universal”.
Quarenta e três anos depois, a obra sobrevive. Acompanhamos as histórias de Cícero, Pio XII, Napoleão, Bismarck, César etc. Ou melhor, seguimos esses personagens que caminham sem rumo pela cidade; vez ou outra os encontramos numa biblioteca pública – alguns são leitores! –, ou numa sessão de cinema, até então uma instituição quase pública. O percurso deles talvez seja melhor definido pela palavra errância. É isso o que acontece a todos, erram continuamente para nos revelar a acertada premonição de Agripino a respeito daquilo que perderíamos décadas depois: o espaço público.
A construção da narrativa também não se dá de forma linear. Muito pelo contrário, cada parágrafo significa um bloco diverso. Os acontecimentos vão desfilando sem ordem alguma, e às vezes até mesmo se repetem. Criticaríamos o autor por isso? Não nos seria lícito tal procedimento. Talvez se José Agripino tivesse nascido e vivido na França, nos dias de hoje já seria um clássico. Ele esgarça a narrativa de maneira tão violenta, que em muitos segmentos do romance pensamos que se tornará incompreensível. Mas não é isso que acontece. O caos é aparente e a narrativa surpreende com tiradas poéticas.
Outra prerrogativa do leitor é desfrutar de um texto sobre o qual não pode desviar a atenção. Em algumas obras a desatenção pode nada acarretar, Agripino, no entanto, é duro com esse leitor. É preciso que se esteja em constante sintonia com o texto para que se possa não propriamente entender o desenrolar da história, porque essa pouco importa, mas ser cúmplice de uma horda de personagens à beira do abismo. É possível constatar que todos beiramos de modo irrefreável esse mesmo abismo e muitas vezes não temos o pudor de negar a fascinação que ele exerce sobre nós.
Seriam loucos esses personagens? Não podemos chamá-los assim porque são públicos, vide o nome de cada um deles. Caso fossem loucos, toda a humanidade estaria na verdade muito próxima à loucura.
A profusão de temas vários e complexos como viagem, doença, morte, suicídio, fome, loucura, arte, relações familiares deterioradas – tendo como cenário sempre a cidade com suas grandes avenidas, viadutos, praças etc. –, apresenta em duzentas e poucas páginas a vida de modo totalizante e ao mesmo tempo fragmentada. Quem são as pessoas que compões esse universo partido senão todos nós?
José Agripino de Paula morreu no ano passado; no âmbito da literatura, deixou dois livros enigmáticos: esse Lugar público e Panamérica. Pelo que consta terminou sua vida quase em silêncio, intraduzível. Como seus próprios personagens, manteve-se à margem, talvez ainda acreditasse na força da literatura.
Nas últimas linhas de Lugar público, acompanhamos os passos de um de seus personagens: “Atravessou a avenida, contemplou os cartazes de um cinema, retirou o dinheiro do bolso, pagou, entregou o bilhete ao porteiro, entrou na sala de projeção escura e fixou os olhos nas imagens brilhantes”. Assim como as imagens brilhantes do cinema, a narrativa também nos ilumina, nos instiga à imaginação e à fantasia. Apesar de todas as dificuldades, esses personagens não desistem; embora lhes falte o chão para a sobrevivência material, eles resistem nos livros que lêem na biblioteca pública e nas imagens dos filmes a que assistem.
Respondendo a questão inicial: nunca será tarde para se escrever sobre a obra de José Agripino de Paula. Talvez ainda seja cedo. Morreram as utopias, mas a arte quando se mostra plena ainda pode ser esses olhos fixos nas imagens brilhantes.
Lugar Público
José Agripino de Paula
Ed. Papagaio
267 páginas
Será talvez um pouco tarde para escrever sobre Lugar público, de José Agripino de Paula? O livro teve primeira edição em 1965, com prefácio de Carlos Heitor Cony, que reaparece na edição de 2004, da Ed. Papagaio. Cony inicia assim seu texto: “A primeira constatação, após a leitura desse romance, é positiva: ganha a literatura brasileira um novo criador” e ainda acrescenta algumas linhas depois: “[o autor] consegue construir o seu universo peculiar e universal; para ser mais exato, seu universo particularmente universal”.
Quarenta e três anos depois, a obra sobrevive. Acompanhamos as histórias de Cícero, Pio XII, Napoleão, Bismarck, César etc. Ou melhor, seguimos esses personagens que caminham sem rumo pela cidade; vez ou outra os encontramos numa biblioteca pública – alguns são leitores! –, ou numa sessão de cinema, até então uma instituição quase pública. O percurso deles talvez seja melhor definido pela palavra errância. É isso o que acontece a todos, erram continuamente para nos revelar a acertada premonição de Agripino a respeito daquilo que perderíamos décadas depois: o espaço público.
A construção da narrativa também não se dá de forma linear. Muito pelo contrário, cada parágrafo significa um bloco diverso. Os acontecimentos vão desfilando sem ordem alguma, e às vezes até mesmo se repetem. Criticaríamos o autor por isso? Não nos seria lícito tal procedimento. Talvez se José Agripino tivesse nascido e vivido na França, nos dias de hoje já seria um clássico. Ele esgarça a narrativa de maneira tão violenta, que em muitos segmentos do romance pensamos que se tornará incompreensível. Mas não é isso que acontece. O caos é aparente e a narrativa surpreende com tiradas poéticas.
Outra prerrogativa do leitor é desfrutar de um texto sobre o qual não pode desviar a atenção. Em algumas obras a desatenção pode nada acarretar, Agripino, no entanto, é duro com esse leitor. É preciso que se esteja em constante sintonia com o texto para que se possa não propriamente entender o desenrolar da história, porque essa pouco importa, mas ser cúmplice de uma horda de personagens à beira do abismo. É possível constatar que todos beiramos de modo irrefreável esse mesmo abismo e muitas vezes não temos o pudor de negar a fascinação que ele exerce sobre nós.
Seriam loucos esses personagens? Não podemos chamá-los assim porque são públicos, vide o nome de cada um deles. Caso fossem loucos, toda a humanidade estaria na verdade muito próxima à loucura.
A profusão de temas vários e complexos como viagem, doença, morte, suicídio, fome, loucura, arte, relações familiares deterioradas – tendo como cenário sempre a cidade com suas grandes avenidas, viadutos, praças etc. –, apresenta em duzentas e poucas páginas a vida de modo totalizante e ao mesmo tempo fragmentada. Quem são as pessoas que compões esse universo partido senão todos nós?
José Agripino de Paula morreu no ano passado; no âmbito da literatura, deixou dois livros enigmáticos: esse Lugar público e Panamérica. Pelo que consta terminou sua vida quase em silêncio, intraduzível. Como seus próprios personagens, manteve-se à margem, talvez ainda acreditasse na força da literatura.
Nas últimas linhas de Lugar público, acompanhamos os passos de um de seus personagens: “Atravessou a avenida, contemplou os cartazes de um cinema, retirou o dinheiro do bolso, pagou, entregou o bilhete ao porteiro, entrou na sala de projeção escura e fixou os olhos nas imagens brilhantes”. Assim como as imagens brilhantes do cinema, a narrativa também nos ilumina, nos instiga à imaginação e à fantasia. Apesar de todas as dificuldades, esses personagens não desistem; embora lhes falte o chão para a sobrevivência material, eles resistem nos livros que lêem na biblioteca pública e nas imagens dos filmes a que assistem.
Respondendo a questão inicial: nunca será tarde para se escrever sobre a obra de José Agripino de Paula. Talvez ainda seja cedo. Morreram as utopias, mas a arte quando se mostra plena ainda pode ser esses olhos fixos nas imagens brilhantes.
Lugar Público
José Agripino de Paula
Ed. Papagaio
267 páginas
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