sábado, agosto 04, 2007

Talvez uma representação
Os degraus de madeira da escada antiga rangiam ruidosamente sob nossos passos. À meia luz, parecíamos entrar em um túnel misterioso e fantasmagórico. O odor de mofo misturado com excreções de sexo produzia uma volúpia lúgubre. Às vezes, uma das mulheres cruzava comigo, ainda ajeitando-se. Vinha seguida do último cliente. Quem subia tinha que se encostar e roçar as nádegas nas paredes úmidas, enquanto dava passagem a quem descia. Chegávamos a nos tocar frente a frente. Quando galgava o último degrau, tive de dividir a passagem com Isaura. Ela chegou-me ao ouvido e sussurrou raivosamente: - o filho da puta levou minha calcinha.
O que me intrigava naqueles quartos eram as manchas e riscos traçados pelo envelhecimento da pintura nas paredes. Enquanto me despia, olhava com desconfiança aquelas manchas. Pareciam possuir algum significado antigo, alguma marca codificada que tentava transmitir mensagem difícil de ser decifrada.
Ao voltar ao passeio, após a saída do cliente, reparei a paisagem escura. O vulto dos antigos sobrados acentuava o aspecto decadente daquele lugar. Um automóvel passou lentamente, tentei divisar a fisionomia que vinha ao volante, mas me deparei com o rosto de uma mulher. Pensei conhecê-la de outrora, mas logo a imagem dissipou-se, precisava fazer mais um programa para ganhar a noite e mulheres não me dariam lucro.
Em torno de três da madrugada, divisei com uma desconhecida. Meu destino naquela noite seria as mulheres? Ela não parecia ser uma prostituta. Era estranha no local. Eu estava sozinha, as outras ou se haviam dispersado ou ainda tinham clientes. Aproximou-se e me pediu um favor:
- Estou fugida de Copacabana, não posso aparecer por lá, querem me matar.
- Mas o que você aprontou?
- É uma história complicada.
- O que você quer aqui?
- Preciso de ajuda para um ponto. Sei que as meninas não gostam de gente nova, mas não sou nova. Preciso apenas ficar um tempo por aqui.
- Não sei se posso ajudar. Aqui já tem gente demais. As outras não vão gostar.
- É só por uns dias, depois me viro.
- Vou ver - ainda resisti.
Eu não acreditava em ninguém, e além de tudo, a mulher, se fugia, nos poderia trazer complicações.
- Eu te pago - ainda me falou - você não vai se arrepender.
Ela vestia uma saia preta muito curta. Desconfiei. Aquele tipo de roupa não era comum ali. As prostitutas já não se vestem assim. No passado, talvez, mas agora o costume não era pouca roupa. Ainda perguntei:
- Com essa roupa você está mais para travesti, olhe lá, hein?
- Quer que eu levante a saia?
- Acredito em você
Ela não trazia blusa, mas um top minúsculo. Nas pernas, as botas negras subiam até os joelhos. Quando virou, ainda observei a saia curta e semi transparente, arrisquei:
- Há homens que te batem se te descobrem sem calcinha...
- Quem está sem calcinha? - ainda perguntou.
Acreditei e acabei por ajudá-la, ao menos naquela noite. Ainda mencionei:
- Pelo andar da hora, acho que você vai ter que deixar pra outro dia.
Ao acabar de pronunciar aquelas palavras, um automóvel antigo parou junto a nós.
- Vai - acenei a ela.
Hesitou a princípio, mas acabou encostando-se à janela do carro.
Depois disso, enquanto o homem estacionava, ela perguntou-me:
- Como é o preço do hotel?
- Vou subir antes. Eles não conhecem você. O pagamento é adiantado, vinte cada vez. Eles vão lhe dar a chave, você entra direto. Mais uma coisa.
- Qual?
- Não deixe o homem perceber que é a primeira vez que você faz programa aqui.
Subi na frente e acertei a situação com o funcionário da recepção. Ele só me pediu que eu evitasse complicações, já tinha problemas demais. Quando a recém chegada passou seguida do cliente, uma chave já esperava por eles sobre o balcão. Ela a apanhou e prosseguiu. Ainda tive tempo de sussurrar:
- É o último quarto à esquerda.
Quando voltou, encontrou-me encostada à direita da entrada do hotel. O homem seguiu em frente sem virar-se, entrou mecanicamente no automóvel que deixara sobre a calçada e partiu anônimo. Eu fumava. Dei mais um trago, enquanto ela se chegou a mim. Também acendeu um cigarro, sorveu-o algumas vezes, tinha o olhar distante e estava voltada em direção à rua.
- Vamos ver se aparece mais alguém - ainda falou.
- Você não vai querer outra moleza dessa, não é? O próximo deixa comigo.
Ainda parou um fusca antigo. Vinha com dois sujeitos. Conversamos. Eles regateavam. Queriam sexo quase de graça. Acabaram partindo.
Deixei a ela ainda o último que apareceu. Nunca fui pelas aparências, mas a fisionomia dele me embrulhou o estômago.
Eles subiram. Demoraram. A demora me causou certa apreensão. Quando escutei passos na escada, me senti aliviada. Era ela. Vinha seguida do homem. Aproximou-se de mim, enquanto ele deixava o local sem olhar para trás. Reparei que ela chorara. Nada me falou.
Perto do amanhecer, ela aproximou-se e segurou-me pelo braço. Agradeceu. Ainda tentou me dar um beijo. Quase desviei o rosto, mas acabei por aceitá-lo. Lembrei que não lhe perguntara o nome. Um táxi subitamente parou. Ela entrou e partiu.
Alguns minutos depois, também decidi ir embora. Apressei-me, da mesma forma, por um táxi. E quando já ia longe, sentada no banco traseiro, reparei minha bolsa aberta. "Filha da puta, deve ter me roubado", foi o que pensei num primeiro impulso. Olhei apressada em meio à escuridão, tentava me dar conta do que perdera. Minha surpresa, porém, foi outra. Encontrei, bastante dobrado e amassado, talvez todo o dinheiro que ela ganhara nos dois programas. Era um valor maior do que eu teria conseguido com os mesmos homens.
Até hoje não entendi aquele fim de madrugada. Também nunca mais a encontrei.