sexta-feira, março 16, 2012

Resenha de 'Crítica da moral cansada', de Ronaldo Lima Lins

Por Haron Gamal - especial para o Blog Prosa online, 12/03/2011

Crítica da moral cansada, de Ronaldo Lima Lins, Ed. da UFRJ, 249 páginas. R$ 38

Em um trecho de “Irmãos Karamazov”, Dostoiévski diz, pela voz de Ivan, um dos protagonistas do romance: “se não existe Deus nem a imortalidade da alma, tudo é permitido.” Durante muitos séculos, o principal pilar da moral foi a religião. Do século XVIII aos nossos dias, quando a existência de Deus e a da alma passaram a ser colocadas em dúvida ou mesmo negadas, surgiu um novo problema, talvez ainda maior: como a organização política e social poderia se realizar levando-se em conta apenas aspectos inerentes a si mesma?

Kant, nas suas três críticas, sobretudo na da razão prática e na da faculdade do juízo, já antecipava tal questão. Havia a necessidade de uma filosofia moral que prescindisse dos aspectos metafísicos da existência. Após chegar à conclusão de que Deus era uma questão de crença, o que restava ao ser humano era a própria reflexão, regida esta por alguns parâmetros que nomeou de imperativos categóricos. A filosofia, embora negasse a moral como fim último, já não escapava de ser um de seus componentes. Remontando aos primeiros filósofos da Antiguidade, a prática do pensamento comportaria uma espécie de beleza e, caso a polis se espelhasse nela, tornar-se-ia bela da mesma forma. Portanto, desde o começo, a filosofia arrasta atrás de si o lastro político.

No período em que vivemos, conhecido como pós-moderno, Ronaldo Lima Lins constata em seu mais recente livro, “Crítica da moral cansada”, que a filosofia perdeu seu potencial crítico, e que a intelectualidade se mantém à sombra dos dilemas do tempo. Citando inúmeros pensadores, como o já mencionado Kant, continuando num outro extremo com Sartre, que através de seu existencialismo questionava também a premência da atuação do filósofo no aqui e agora, o professor da UFRJ, autor de vários outros livros de crítica da cultura, desenvolve uma extensa exposição sobre a formação da sociedade, as possíveis origens da violência, e a capacidade que a teoria crítica deveria ter, senão em apontar soluções, pelo menos em não esmorecer na sua própria capacidade de criticar. Na verdade, o que o escritor quer dizer é o seguinte: os intelectuais jamais devem silenciar.

Fazer o levantamento de questões é tão ou mais importante do que encontrar as respectivas respostas. Tal premissa foi uma das características da Escola de Frankfurt, com Theodor Adorno e companhia. E esse é o caminho percorrido por Lins, que afirma: “insatisfação e crítica promovem o surgimento de novas concepções, delirantes ou não, pouco importa, porque sabemos que as concepções delirantes levaram, muitas vezes, os homens para frente.”

Sabe-se que as insatisfações e tensões são inerentes ao ser humano, e que devido a elas as sociedades avançam. Como, porém, conciliar este ponto de vista hegeliano, em que os conflitos são necessários para o avanço da História, com os ideais de convivência harmônica, ou mesmo de paz entre os seres humanos?

No capítulo “Sobre controles e descontroles”, está escrito o seguinte: “O fundamento de uma filosofia moral visava o estabelecimento de uma consciência que diminuísse os riscos do descontrole e ajudasse a desmontar armadilhas.” Ao mesmo tempo se constata que com o fim das utopias vive-se um paradoxo: como conciliar paz e solidariedade com um modo de vida em que predomina a violenta competição? Vide a ditadura dos mercados financeiros e das crises que surgem após todo período de grande especulação. Quando governos se dispõem a interceder e sanear falcatruas de grandes corporações, na verdade o fazem com o dinheiro dos cidadãos, que mesmo muitas vezes sem consciência de tais ações e sem sentir de imediato o golpe, não deixarão de sofrer as consequências.

Por conseguinte, surge a questão fundamental de “Crítica da moral cansada”. A indústria cultural não só contaminou a grande massa, mas também grande parte do segmento social que transita no universo da alta cultura. Muitos intelectuais se deixaram fascinar pelos produtos dessa indústria (incluindo os tecnológicos), demonstrando total adesão ao mercado, procurando, com suas narrativas, não mais praticar qualquer tipo de crítica, mas contabilizar os próprios lucros e se espraiar num hedonismo perverso. Aqui não escapam filósofos, ficcionistas ou poetas.

HARON GAMAL é doutor em literatura brasileira pela UFRJ