segunda-feira, setembro 18, 2006

Tabaco
Quando na Grécia os deuses ainda vinham se misturar com os homens, não havia o arranha-céu que sobe lavado pela chuva.
João atravessou a rua munido de dois maços de cigarros. Seria suficiente para toda a noite. Na praça ainda havia algumas pessoas, sobretudo homens que carteavam. Lembrou-se da simplicidade desses jogadores de fim de vida. Mas quem sabe o que seja fim ou o que seja vida? Olham reis, damas, valetes e outras cartas que passam rápidas, muito rápidas.
Um ônibus que vinha do Centro anunciou sua presença com o ranger de freios; alguém saltou, depois o veículo continuou vagaroso, o motor era fera coagida em cidade de domadores.
Camões, grande Camões quão semelhante teu fado ao meu quando os cotejo... Olhou à porta vizinha, silêncio. Nem mesmo um ruído. O bêbado parara a vinte metros, encostara a uma árvore. Saberia ele sobre Camões?, saberia sobre outro poeta?. Camões grande Camões..., a voz diminuiu de volume até desaparecer.
Quando girou a chave, pensou que entre os gregos talvez não houvesse a solidão. Ao chegar à sala, o guardador de rebanhos: um quadro na parede; quem lhe dera o nome? Quando comprara, já viera assim. Mas ali, guardador, só de automóveis...
O cinzeiro estava cheio de pontas. E o anúncio de que o cigarro faz mal à saúde. Fumava havia sessenta anos. E se parasse? Talvez morresse. Acendeu mais um. Num ligeiro movimento, esbarrou no telefone silencioso; tocava uma vez na semana: a mulher da lavanderia. Caminhou até a janela e viu a loja em frente: um bar; um homem chegou à porta, trazia à mão um copo de cerveja. Acenou-lhe da calçada erguendo breve o braço desocupado. Retribuiu-lhe. Era o Esteves. O mundo reconstruiu-se. Observou a fumaça que subia pelo quarto. Uma coisa banal, mas que também o restituía ao mundo. Viu na pouca névoa a imagem de uma mulher, pequena prostituta em frente a Mercês de Cima; dádiva de corpo na tarde cristã. Esmeralda, a última que estivera ali, e fazia mais de um ano. Cheiro forte de tabaco, foi o que pronunciou. Achou engraçado alguém pronunciar a palavra tabaco. E ela tinha o aspecto tão jovial. No mar tanta tormenta e tanto dano... Novamente o mendigo. Na terra tanta guerra... Esmeralda levantou-se, vestiu-se rápida e não voltou.

sábado, setembro 02, 2006

Sozinhos
“O senhor então sentiu vontade de voltar a ver-me?”
Lúcio olhou ao redor tentando levar a conversa a outro destino. Seta atirada sem premeditação, não calculara o risco de ter descoberta a posição.
“E então?”, a voz da mulher continuava a ressoar pela sala; revelava alguém incólume a desvios e com plena consciência das intenções do homem à sua frente.
“Bem...”
Percebendo que ele titubeava, não o socorreu. Deixou que o prolongado silêncio revelasse todo o embaraço em que se metera. Na verdade, nau à deriva, não notara que desde a chegada girava em torno de si próprio; e quanto mais tentava retornar a terra, mais se perdia em maré turva.
“Quando éramos meninas eu e minha irmã íamos à casa de seu pai. Você ainda não havia nascido. Gostávamos do lugar, gostávamos de ouvir sua avó; ela nos contava histórias maravilhosas. Pena não tê-la conhecido. Você não seria um homem tão perdido e ao mesmo tempo tão enredado em si mesmo”.
“Bem...”
“....”
“Bem...”
“Jerusalém era então uma terra distante, não sonhávamos com outro lar”.
“Ah, sim , Jerusalém...”
“Tivemos de fazer viagem mais longa, demoramos a reencontrar os amigos; hoje, onde estão? Quase todos já partiram”.
Havia uma jarra de flores sobre a pequena mesa. Ao observar que ele olhava naquela direção, deu alguns passos e, com gesto hábil, proporcionou mais elegância a um rosa.
“Não venha aqui em busca de sentido.”
“Mas... mas não tenho essa intenção.”
“Todos somos sós. Ninguém há de nos ter apreço, com exceção de nós mesmos”.
“Eu tenho apreço a você; ou melhor, gosto... gosto muito...”
A revelação ecoou precipitada e fora de tom.
“Agradeço, mas fiquemos nesse ponto. Olhe bem para mim. Estou bem, e nem tenho mais idade...”
Alguém passou tilintando a sineta: “hora do chá!, hora do chá”!.
Ester levantou-se. Lúcio quis amparar-lhe o braço, ajudá-la na caminhada até o restaurante. Mas ela, polidamente, recusou.
Ele então ouviu-lhe a voz, encantadora e baixa:
“Vamos tomar o chá”.