quinta-feira, outubro 31, 2013

Ninguém é inocente

Resenha de Memória da Pedra, de Maurício Lyrio, Companhia das Letras, 315 páginas)

Memória da Pedra, de Maurício Lyrio, é um romance que desde o início se mostra complexo. Com um narrador em terceira pessoa, a história de dois casais desenvolve-se entre idas e vindas, procurando ora apresentar o presente, ora o passado de cada um desses personagens. O foco narrativo se detém, no entanto, sobre Eduardo, o protagonista.

Um fator que traz mérito à narrativa é o distanciamento temporal. Ela se dá no início dos anos 1990, momento da história do Brasil em que acontece o impeachment do ex-presidente Collor, a que a narrativa faz referência. Mas, na verdade, não se trata de romance político nem histórico. Essa ambientação, mais ou menos vinte anos atrás, permite ao leitor analisar com menos risco atitudes e comportamentos que ficariam comprometidos caso a problemática discutida no enredo se desenrolasse nos dias de hoje. Mas a história datada não elimina a sua universalidade. Apesar de referências a meninos de rua, tendo um deles como personagem coadjuvante, apesar da menção a protestos pela destituição do presidente da república, o que vigora é o drama interior dos personagens, seus traumas e conflitos, a violência inerente a cada um, enfim, trata-se de um complexo romance psicológico onde, na maioria das vezes, as pessoas, de tão desesperadas, apenas procuram culpados pela própria infelicidade, esquecendo que a causa de suas tragédias pessoais encontra-se dentro de si mesmas.

Eduardo é um professor de filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, discute seus pensadores prediletos, ministra aulas especulativas, mas sua vida particular é pontuada de desencontros. Até aí tudo bem, pois não se trata de um livro de autoajuda nem é função da filosofia propor soluções àqueles que lidam com o assunto. Mas o que nos chega é alguém permeado pela hipocrisia.  A literatura brasileira sempre foi plena de histórias que apresentam, em primeiro plano, personagens pertencentes a classes abastadas. Eduardo não é rico, mas sua vida de filho único, herdeiro de um imóvel na Gávea, acrescentando-se o salário de professor de universidade federal, proporciona-lhe trânsito num universo de requinte, em que há bem mais do que o necessário para se sobreviver. Problemático nas relações afetivas, faz par com Laura, uma artista plástica extremamente insegura. Ela vê a relação com Eduardo como uma tábua de salvação, tábua esta que começa a naufragar em largo oceano (aproveitando a metáfora, já que o mar é também personagem do romance) no momento em que ele descobre um segredo seu.

Gilberto é médico, oncologista, tem como mulher Marina, uma psicanalista irônica, que o absorve, apesar da frieza que o contato com doentes terminais lhe impõe. O casal é amigo de Eduardo e Laura, mas quanto mais os dois casais aproximam-se, tanto mais a amizade se esgarça. À primeira vista a relação dos quatro soa moderna, sem preconceitos. Eles saem juntos, viajam para Búzios, trocam ideias e opiniões. Não há conflito entre a visão médica de Gilberto e a filosofia, profissão de Eduardo. Mas há um ponto em que surge o nó, e ele não desata.

Aqui é necessário acompanhar não o desenrolar da história, mas estudar a criação desses personagens. Talvez o mais complexo seja Eduardo. Sua mulher, Laura, soa um tanto frágil. Não como mulher na narrativa, mas como construção do escritor. Aliás, as mulheres de Maurício Lyrio mostram-se um tanto previsíveis. Talvez, a mais bem construída, embora seja a que menos aparece, é Gorda, uma moradora de rua para quem a mobilidade é quase impossível. Com ela, a narrativa atravessa uma vereda romântica permitindo-nos atração por esse tipo de personagem, atitude ainda possível até meados dos anos 1990.

Mas, antes de falar nessa contração narrativa, analisemos também Gilberto, o oncologista.  O autor fez um bom o trabalho de pesquisa ao descrever com certa minúcia os subterrâneos da profissão do personagem. Desfilam ante nossos olhos doenças terríveis, seus nomes científicos, os sintomas, a evolução e até mesmo a descrição da fase terminal. Mas Gilberto tem a superficialidade da maioria dos médicos. Isso mesmo, muitas vezes achamos esses profissionais importantes, verdadeiros monstros do saber, mas quando se trata de relacionamento, de filosofia de vida, de entendimento sobre o humano, são verdadeiros fracassos. Portanto, a superficialidade em que está imerso Gilberto é fruto da construção bem sucedida do personagem.

A fissura na narrativa advém por meio da mencionada mulher chamada Gorda e, antes, pelo aparecimento de Romário, um menino de rua de doze anos que vende limão num semáforo, na Gávea. Este personagem norteará grande parte da narrativa. Ele passa a ser não apenas companheiro do professor de filosofia, mas também o seu contraponto. O primeiro contato entre os dois é um total fracasso. O garoto pensa que Eduardo é homossexual e está em busca de um caso. Mas pouco a pouco o professor aproxima-se, estabelece contato e conquista a sua confiança. A construção do personagem é verossímil, até a linguagem do garoto mostra-se convincente. O que, talvez, destoe nisso tudo é o que se segue. Romário passa a morar no apartamento de Eduardo, diante de uma, a princípio, estarrecida Laura. Daí a razão da ambientação da narrativa no início dos anos 1990, porque nos dias de hoje tal atitude não seria plausível.

Como ensina Dostoievsky, a literatura precisa exagerar um pouco. Esta arte feita de palavras não comporta o homem comum, as situações corriqueiras do dia a dia, a não ser que esse mesmo homem passe a ter um papel grandioso. Por isso, o aparecimento de Romário proporciona vigor à narrativa, o que não aconteceria caso ela tivesse apenas como destaque as quatro personagens iniciais. Até mesmo a bela Anita, uma jovem bibliotecária do Instituto de Filosofia da UFRJ, soa um tanto frágil. Ou mesmo de Felipe, seu namorado estrangeiro. Romário e Gorda, que moram no teto do Túnel Velho, em Copacabana, trazem à narrativa a estranheza necessária para que o romance atinja patamares mais elevados.

Outro ponto que norteia toda o livro é a constante presença da morte. Ela já desponta através da especialidade de Gilberto, que vive às voltas com doentes terminais, e do acidente que vitimou os pais de Eduardo quando ele ainda era adolescente. Mas é no suicídio que a morte será anunciada com todas as letras, e causará a perplexidade que somente tal ato pode gerar. Já nas primeiras páginas há a uma antecipação da narrativa revelando que Marina, a psicanalista, suicidar-se-á. E, cá entre nós, não é todo dia que uma psicanalista se suicida.

Interessante o Rio de Janeiro com seus encantos num período de pré-acirramento da violência que se seguiria com todas as consequências que já sabemos. Então, o exagero de trazer um menino de rua para dentro de casa permearia um ideal de filósofo semelhante à aposta de Pascal. Filosofia e literatura são construções de pensamentos e de artifícios. Apostas fora delas talvez produzam consequências nefastas, sobretudo numa época em que ninguém mais é inocente.

Trecho do romance:

Eduardo sempre foi o mais circunspecto dos quatro, mas era Gilberto quem nunca atravessava o limite, quem se controlava diante das insinuações de Marina e do apelo do corpo de Laura. Talvez tirasse dali um prazer que nunca vinha ao rosto, severo como uma carranca. Por trás do palavrão, do termo latino ou grego da doença, estava o controle de si e do discurso, como se pontificasse para a posteridade. Dizia conviver mal com a ideia de que bastaria combinar na ordem certa cinco ou seis palavras para responder as questões que o angustiavam: a origem de cada câncer, a cura definitiva, o momento e o lugar em que, pela última vez, correria os olhos em torno de si. Todas as respostas estavam disponíveis, em uma página, um comentário despropositado, uma conversa em um filme, era questão de discernimento. Não se cansava de repetir em voz baixa, como um mantra, o verso sobre o câncer que Eduardo recitou uma vez, no vício de querer encontrar em uma frase a chave para a salvação.

Sobre o autor:

Mauricio Lyrio nasceu no Rio de janeiro, em 1967. É diplomata e trabalhou em Brasília, Washington, Buenos Aires, Pequim e Nova York, onde vive atualmente. Em 2010, publicou A ascensão da China como potência, pela Fundação Alexandre de Gusmão. Memória da pedra recebeu Menção honrosa no prêmio SESC de Literatura 2010.