sexta-feira, maio 08, 2009


Os irmãos Karamázov

Relutei se falaria ou não sobre Dostoiévski, mas a caixa com os dois volumes da nova edição de Os irmãos Karamázov sobre a mesa, destacando-se dos outros livros, e a lembrança de Dimitri, Ivan e Alieksiêi insistiam em impelir-me adiante. Daí me vi na iminência de ter de renunciar à minha vida de resenhista, caso não escrevesse sobre o livro.

Dostoiévski viveu de 1821 a 1881, deparou-se com os principais problemas de seu tempo e de sua Rússia, teve uma vida cheia de peripécias, inclusive foi condenado por crime político, quando jovem, à morte, junto com alguns companheiros. O grupo teve a pena comutada, minutos antes da execução, para trabalhos forçados na Sibéria.

Como todo grande escritor, a obra do autor russo foi crescendo pouco a pouco. De contos e novelas chegou à fase (alguns criticam essa palavra) do seu grande romance, com Crime e Castigo, O idiota, Os demônios e Irmãos Karamázov. Dostoiévski também foi viciado em jogo, vida retratada no romance O jogador, escrito para saldar dívidas e a própria obra. Também teve de deixar São Petersburgo e a Rússia. O motivo: a implacável perseguição de seus credores.

O que há nesse volumoso romance, de quase mil páginas? Seria simplificar em demasia querer achar a linha principal da narrativa. O escritor discute nessa obra todos os assuntos que dizem respeito à natureza humana, sobretudo o amor, a crueldade e a esperança. Há personagens tipos, há personagens humanos, demasiadamente humanos. Talvez seja isso que nos fascine em Dostoiévski: seus personagens são capazes de cometer todas as loucuras a que nós, seres humanos, estamos sujeitos.

No prólogo, há os seguintes dizeres: “romance em quatro partes com epílogo”. Mas o que cada uma das partes aborda? Embora isso esteja escrito e o autor procure fazer a divisão para que a narrativa se desenvolva de forma mais didática, seria impossível setorizar os acontecimentos. Os personagens vão surgindo e crescendo gradativamente, a vida na pequena aldeia se desenrola, percebe-se que a tragédia se avizinha e suspeita-se de um terrível equívoco. Nós, como leitores, torcemos para que o erro seja corrigido, mas não se trata de um livro romântico, o destino é inexorável.

Quando Dimitri Karamázov é acusado de parricídio, o personagem não é julgado apenas pelo crime que supostamente cometeu, mas por seu modo de ser, pela maneira como encarava a vida e a vivia. Dimitri é julgado por seu desregramento.

O romance trata da vida da família Karamázov. Os três irmãos são de índoles diferentes; o mais velho, Dimitri, é irmão dos outros dois apenas por parte de pai, e é o mais temerário.

Um dos pontos interessantes do romance é outro assunto polêmico: os pais poderiam ser renegados pelos filhos caso estes sobrevivessem ao abandono a que foram submetidos na infância? Mas esse assunto é apenas adjacente. O que vemos é um pai, chamado Fiódor Pávlovitch Karamázov preocupado apenas consigo, ludibriando os filhos na questão da herança deixada pela esposa e disputando com Dimitri a mesma mulher, Agrafiena Ivánovna Svietlova, a insuperável Gruchenka. Daí vai promover tudo o que for possível para tê-la nos braços. Mas não consegue o seu intento. Acaba morrendo e Dimitri é acusado de matá-lo.

Ivan Karamazov é o irmão do meio. Dostoievski impregna nesse personagem tamanha intelectualidade, que sintetiza nele questões do próprio escritor. Ivan discute também a existência ou não de Deus e da imortalidade da alma. Em determinado momento, diz: “Se não existe Deus nem a imortalidade da alma, tudo é permitido”. Pensamento que parece livrar o irmão Dimitri de um certo peso. Eis alguns trechos interessantes do capítulo “A revolta”, quando Ivan conversa com Aliócha: “nunca consegui entender como se pode amar o próximo. A meu ver, é justamente o próximo que não se pode amar, só os distantes é possível amar. [...] Ainda se pode amar o próximo de forma abstrata e às vezes até de longe, mas de perto quase nunca. [...] Raramente o homem aceita reconhecer o outro como sofredor. [...] De fato às vezes se fala da crueldade “bestial” do homem, mas isso é terrivelmente injusto e ofensivo para com os animais: a fera nunca pode ser tão cruel. O tigre simplesmente trinca, dilacera, e é só o que sabe fazer. Não lhe passaria pela cabeça pregar orelhas das pessoas com pregos por uma noite, mesmo que pudesse fazê-lo.”

Dostoiévski soube falar sobre o homem comum, sobre as pessoas que habitavam as vilas e as cidades da Rússia e dar-lhes alma. Soube explorar a universalidade dessas pessoas e mostrar que gente assim existe em todos os lugares; na verdade, constituem a humanidade.

A relação de amor que Dimitri mantém com Gruchenka toma vulto no momento em que ele faz todas as loucuras para tê-la novamente em seus braços, quando mostra a ela que é capaz de tudo para mantê-la junto a si, chegando a ameaçar de morte o pai.

Certa vez, o escritor brasileiro Nelson Rodrigues falou numa entrevista: “brasileiro tem mania de cachorro vira-lata.” O dramaturgo talvez tenha dito tal frase porque lia Dostoiévski e encontrava nos personagens do autor russo a grandiosidade no homem da esquina, no bêbado, no louco, na mulher julgada por todos como prostituta, enquanto nossa tendência seria não valorizar aquilo que nos é próximo ou que nos parece vulgar.

Dostoiévski ainda desenvolve sua concepção religiosa através do stárrietz Zossima e do discípulo do hiremonge, Alieksiêi Karamázov, o irmão caçula e o mais equilibrado entre os três.

É pungente a última cena do livro, em que esse personagem se reúne com os meninos. Todos estão regressando do sepultamento de um companheiro recém-falecido, e Aliócha os alerta sobre o futuro, sobre a esperança e sobre a amizade.

Portanto, ler Os irmãos Karamázov é perceber um mundo que sempre esteve ao nosso lado e nós, muitas vezes, relutamos em enxergá-lo.

Os irmãos Karamázov
Fiódor Dostoiévski
Tradução direta do russo por Paulo Bezerra
Editora 34; 999 páginas.

Bom-humor e fina ironia permeiam texto de autor gurupiense

É importante que se escrevam livros como Histórias da História de Gurupi, de Zacarias Martins. O município, que fica em Tocantins, a 245 km de Palmas, com sua população em torno dos 75.000 habitantes parece ser bastante simpático, e o livro de Zacarias traz crônicas sobre a cidade e sua história ressaltando os problemas urbanos, políticos, administrativos e fatos do folclore local.

Como diz Maria Wellitania de Oliveira Cabral, nas primeiras páginas, apresentando a obra: “As crônicas de Zacarias Martins registram o apelo do cidadão gurupiense situado em determinações que limitam a sua comunicação e o seu reconhecimento pleno.” O Brasil é constituído em sua maioria por municípios de porte médio ou mesmo pequeno e um livro que permite ao cidadão saber o que acontece na sua cidade, possibilitando que ele desenvolva uma visão crítica sobre o meio em que vive é um passo enorme. Não posso falar especificamente sobre a imprensa local, mas em todas as cidades brasileiras o que predomina é o mascaramento da informação, que tem como objetivo beneficiar, em primeiro lugar, o interesse dos proprietários dos jornais. Portanto, a discussão aberta num livro isento e a priori sem objetivos comerciais só tende a levar a população ao esclarecimento e arremessar para longe a máscara que esconde a verdade.

Zacarias tem uma escrita bem-humorada, sabe tratar com leveza os assuntos pelos quais se aventura. Crônicas como “Cultura desemplacada”, que trata do sumiço das placas inaugurais de administrações anteriores é muito interessante. Imaginamos o escritor, como um detetive, saindo à procura das placas e dos autores do desemplacamento. O texto mostra a mesquinhez política de muitos administradores que não conseguem conviver com o sucesso daqueles que os antencederam. Até mesmo a placa comemorativa da inauguração de um centro cultural desapareceu misteriosamente e com ela o nome de Zacarias, que na época presidia o Conselho Municipal de Cultura. Diz o autor que esse mesmo centro cultural foi utilizado muitas vezes como local de velórios. Ele não poupa críticas: “A transformação improvisada do Centro Cultural Mauro Cunha em capela mortuária paralisava todas as atividades culturais ali realizadas, até mesmo o funcionamento da Biblioteca Pública Municipal Professora Deusina.

Uma outra crônica aborda a questão da concessão de uma pensão especial às viúvas de ex-vereadores “que faleceram ou que venham a falecer durante o exercício do mandato parlamentar”. O cronista, além de criticar duramente a medida, conta um fato pitoresco a respeito de outra cidade onde a mesma lei vigorou: “Há alguns anos, A câmara de vereadores de uma cidadezinha do interior de Minas também chegou a aprovar um projeto semelhante e, misteriosamente, nove dos seus dez vereadores morreram.” Segundo ele, o acontecimento foi tão alarmante que nem os suplentes quiseram tomar posse. A confusão foi solucionada com um ato corajoso do presidente da casa, que colocou fim à questão: “apresentou um projeto revogando todos os dispositivos da lei que criava pensão vitalícia para as viúvas.”

Como não poderia deixar de ser, o bom humor predomina até mesmo na última crônica quando, numa solenidade da Câmara, um cego se dispõe a ler a bíblia, e o faz com perfeição.

Conforme pude constatar no livro de Zacarias, a cidade de Gurupi permite uma vida tranquila e em harmonia com a natureza.
Conta o autor que, certa vez, a cidade sofreu uma ameaça de bomba. Suspeitaram até mesmo de Osama Bin Laden. Logo constataram que a ameaça era real, mas ela vinha de uma bomba d’água esquecida sobre a mesa de uma agência da bancária!

Destaco também as fotos que enriquecem cada crônica apresentando ângulos da cidade, de sua vida passada, da atual e de alguns monumentos e pontos turísticos.

Apesar da tendência ao hilário, o livro é sério. Todo cidadão consciente, que domina o idioma, deveria seguir o exemplo de Zacarias e fazer uma leitura crítica de sua cidade. Assim se poderia chegar a uma vida mais feliz.

Histórias da História de Gurupi
Zacarias Martins
Editora AGL, 72 páginas

Contato com o autor: zacamartins@gmail.com