domingo, fevereiro 11, 2007

Alpengarden

Eu olhava as montanhas através de uma janela lateral quando o garçom nos trouxe a garrafa de champanhe. Anne acompanhava os gestos dele, desviando o olhar apenas para encontrar meu rosto. Tudo levava a crer que se sentia extremamente feliz por eu estar a seu lado; queria minha cumplicidade naquele ato que representava a continuação de uma longa amizade. E eu que não pensava ser recebido com tanta facilidade. A rolha explodiu. Anne sorriu, depois se aproximou e me beijou os lábios, enquanto o garçom se preocupava em encher nossas taças, sem deixar que a bebida transbordasse. A seguir nos cumprimentou e se retirou. Ela pegou uma das taças e a elevou dizendo em voz um pouco alta para o local:
– À nossa eterna amizade.
Correspondi em voz e gestos. Então tocamos uma taça à outra e bebemos alguns goles.
– Você é a última pessoa que eu esperaria aqui em Malbork – falou.
– Sério?
– Sim.
– Por quê?
– Não sei.
– Você não acreditava que, ao partir, me faria falta?
– Não, quando o conheci, não notei interesse de sua parte. Você naqueles breves dias me tratou friamente.
– E depois, quando nos encontramos no centro e também naquele restaurante à margem esquerda do Knopt?
– Não sei, senti que seus interesses eram outros, mas, o que há de se fazer? São ventos de outros tempos, não? – ela falava sem demonstrar ressentimento.
O pequeno restaurante onde nos encontrávamos era decorado de modo rústico, o estilo tentava acompanhar o aspecto da região montanhosa. Naquele momento, éramos os únicos freqüentadores. Havia apenas um garçom e um outro empregado, que permanecia atrás do balcão. De todas as janelas seria possível apreciar diversos ângulos da paisagem, caso a diferença de temperatura interior não deixasse os vidros tão embaçados. Mas era possível imaginar que se destacavam, sobretudo, as escarpas cobertas pela neve.
–Você está surpreso com o local? – perguntou ao ver que eu movimentava a cabeça em algumas direções.
– De certo modo, sim.
– Aqui é bastante acolhedor.
Anne escorregou as mãos sobre as minhas, lançou-me os olhos e perguntou:
– Você foge de alguma coisa?
– Não, lógico que não, por que me pergunta isso?
– Acho sua presença estranha.
– Vim aqui por você, acredite.
Apertou-me uma das mãos com força, depois pegou a garrafa e colocou mais um pouco de champanhe na própria taça. Tomou um longo gole ainda com os olhos voltados para mim e, quando pousou a taça novamente, sorriu de maneira provocante. Depois, talvez para desfazer qualquer mal-entendido, disse:
– Não me leve a mal, quero apenas a sua amizade.
Ficamos em silêncio durante algum tempo. O vento sibilava em torno da construção; percebi que o homem atrás do balcão colocava pedaços de madeira na lareira e tentava concentrar o fogo. A súbita fumaça interior provocou sensação agradável. Anne aproveitou para acender um cigarro, depois esfregou as mãos. Seu rosto brilhava, pensei em uma mulher revestida por pedras preciosas. De repente, não sei porque razão, a imagem de um arco-íris invadiu-me a mente. O silêncio foi quebrado por sua voz macia, que acentuou as cores que lhe serviam de auréola:
– Não se preocupe com o que conversamos naqueles tempos; já não penso em me matar – ao fim dessas palavras, riu com algum espalhafato.
– Ao que parece, nesta cidade todos admiram você. E o jogo é outro forte motivo...
– Talvez – interrompeu-me, soltou um pouco da fumaça ao mesmo tempo em que falava: – a vida tem suas surpresas.
– A vida também trapaceia – quis insinuar, sorrindo ao pronunciar a última palavra.
– Talvez trapaça não seja a palavra adequada, a vida é a vida e não um jogo.
– Entendi – afirmei –, se fosse um jogo certamente você venceria!
– Concordo – enquanto falava, virou-se para o garçom que chegava com uma grande travessa. Depois me disse: – Acompanhe-me, por favor, não como coisa alguma desde a madrugada.
O almoço transcorreu entre silêncios e sorrisos de Anne, que procurava minha cumplicidade até mesmo em seus movimentos mínimos. Por vezes cheguei a pensar que se tratava de alguém muito carente e que, embora não reconhecesse, desejava minha permanência dali em diante, sempre a seu lado. Mas, a cada frase que sua voz emoldurava, também pude sentir a presença de uma mulher misteriosa, alguém que me deixava confuso; e não adiantava pedir esclarecimento a mais, corria-se o risco de tudo se tornar ainda mais nebuloso.
Depois da refeição foi nos servido o café, que era forte e de cheiro muito agradável. Experimentamos a bebida com um tipo de tranqüilidade que apenas naquele lugar se poderia usufruir. Reparei que Anne descobrira novo gosto pela vida. Na verdade, ela saboreava as palavras que dizia, talvez as que ouvia, saboreava a bebida, o gosto doce do cigarro, a comida delicada e agora, ao pousar a xícara sobre a mesa, demonstrava o prazer que lhe proporcionaram os últimos goles do café. É provável que o modo como vivia em Malbork fosse a grande razão de amar tanto a vida, como era possível perceber naquele instante. Comecei a achar que minha estada a seu lado teria de ser breve. Eu não queria atrapalhar a felicidade daquela mulher. Ao mesmo tempo, também concluí que viajara motivado por algo extremamente etéreo, procurava um passado que não mais existia. Não se deve sair em busca do passado; tais palavras tão fáceis e de senso comum só então passaram a fazer sentido para mim.
Descemos as montanhas olhando a paisagem branca. Ela chegou a baixar o vidro da janela à sua esquerda. Frio intenso invadiu o automóvel fazendo o próprio motorista olhar assustado para trás. Depois percebemos que era uma brincadeira de Anne. Às vezes, agia como criança. Riu exagerada do susto que pregou, principalmente a mim. Depois subiu o vidro novamente; permanecemos então no mais incômodo silêncio. Segurou as minhas mãos, aproximou-se e tocou com os seus os meus lábios. Quando voltou à posição anterior, ainda permaneceu com uma das mãos junto às minhas.
– Não me leve a mal, fui tomada por um impulso incontrolável – riu alto.
Pediu ao chofer que nos deixasse no Malgrandtown, como era chamado o pequeno centro.
Caminhamos lado a lado, cobertos pelos pesados casacos de inverno. Alguém acenou para Anne. Ela retribuiu o aceno e fez outro gesto, incompreensível para mim. Entramos por uma pequena rua, reservada apenas a pedestres, onde pude apreciar o comércio local. Observei uma fileira de lojas que aparentavam uniformidade apenas nas portas fechadas e nas vitrines que exibiam suas mercadorias. Tudo estava arranjado de forma artística. As pessoas daquele lugar pareciam se preocupar muito com os detalhes. Arrumavam tudo como se os objetos fossem obras de arte de extremo valor. Entramos por uma passagem que parecia levar a uma das estações de trens. O caminho no início era subterrâneo, com a entrada coberta por enorme proteção de vidro. Servia de teto panorâmico para que se apreciasse a neve caindo do céu. Percorremos o local, que era bem aquecido. Observei várias lojas requintadas, principalmente de roupas, com produtos de vários lugares. As vidraças reluziam, manequins bens vestidos exibiam a moda mais recente, também ostentavam jóias. Aqui e ali viam-se livrarias e cafés. Máquinas de expresso italianas espumavam a bebida quente e de odor forte. Anne me falou em meio às pessoas que circulavam pelo local que o produto vinha da América do Sul. Quando terminamos de percorrer a primeira passagem, encontramos escadas rolantes que nos levaram de novo ao patamar da rua, mas, logo a seguir, ingressamos em outra escada que nos deixou um andar acima. Ali o trem passava embutido em um túnel todo de vidro que permitia apreciá-lo por inteiro. Não se escutava barulho de máquina alguma; o silêncio era rompido apenas perlo ir e vir das pessoas, todas elas por sinal muito bonitas e bem vestidas.
– Onde estamos? – perguntei a Anne.
– Num dos lugares mais interessantes do planeta...
Ela exagerava, porém sentia-se ali clima futurista em harmonia com estilo acolhedor.
Entramos numa loja que vendia chocolates. A vendedora sorriu ao vê-la, se aproximou surpresa.
– É uma honra termos a senhorita em nosso pequeno bistrô – falou baixo e, após a últimas palavras, dirigiu o olhar para mim.
– Oh, ia me esquecendo – dizia Anne –, meu amigo está surpreso, não sabia que Malbork era tão agradável nos tempos atuais.
Apresentou-me à mulher, que vestia um conjunto vermelho de gravatinha preta.
– Estou realmente encantado – afirmei e me sentei diante de Anne.
Ela pediu um tipo de bebida que não compreendi o nome: era um composto de chocolate, licor e uísque. Eu aceitei apenas um expresso italiano.
– Você pretende ficar durante quanto tempo na cidade? – perguntou enquanto tirava um cigarro do maço e o levava aos lábios.
– Ainda não sei, mas não pretendo permanecer por muito tempo, sinto que posso atrapalhar suas atividades.
– Que atividades? Você vai querer jogar contra mim?
– Não, é lógico que não. Eu não seria capaz. E, além do mais, não teria tanto dinheiro para perder.
– Você é um homem de sorte, creio que não perderia.
– E Schrobel? Você crê que ele me deixaria ganhar. Aparentou-me impiedoso.
Ela virou-se tentando demonstrar seriedade.
– Oh, não me fale em Schrobel.
– Como, não? Vocês arrasaram os adversários.
– Aquilo foi mero acaso; não via o poeta há um ano...
– Mais pelo visto, vocês dois continuam em forma.
– Não brinque com essas coisas, nada tenho a ver com Schrobel.
Anne desviou os olhos para o longo corredor e apreciou pelo vidro duas adolescentes que passavam vistosas, trajando roupas coloridas; ambas cobriam a cabeça com gorros de cor verde. Evitei voltar ao assunto do jogo. Quando a garçonete surgiu com a bandeja que comportava taças e xícaras, Anne pronunciou em minha direção algumas palavras carinhosas:
– Não fique bravo comigo. Estou até precisando de alguém e você é uma boa pessoa. E é inteligente. Fique mais um pouco, ou até mesmo se estabeleça por aqui; poderíamos nos ver mais e então quem sabe? O futuro... o futuro não podemos prever, mas há indícios de que combinamos.
– Anne, essa sua proposta é muito séria. Você disse o tempo todo que queria apenas a minha amizade, agora fala de modo como se poderíamos tentar alguma coisa juntos, uma vida lado a lado. É isso mesmo?
– É e não é – falou enquanto levava a taça a boca.
– Gosto muito de você, estou aqui porque senti sua falta, mas não posso aceitar essa resposta. É o mesmo que você me dissesse que não está interessada em fazer tentativa alguma.
Ela sorriu mais uma vez. As adolescentes tinham parado diante de uma vitrina de roupas, encontraram mais duas amigas, entre elas havia agora também um rapaz. Todos sorriam e pareciam estar combinando alguma coisa, talvez uma festa, pensei. Senti inveja deles. Viviam a idade em que se têm muitas certezas.
– Anne, vou ver você jogar durante alguns dias, vou fingir que não a conheço. Aliás, os garçons daquele hotel são muito gentis. Antes mesmo de eu perceber de quem se tratava, um deles já me informava sobre você. Ficarei, manterei distância, mas talvez não suporte por muito tempo esse seu jeito de ver as coisas.
– Veja – falou de novo –, não exijo coisa alguma de você. Também gosto de você, mas não posso me comprometer, entende?
– Entendo.

Aquela noite não fui ao salão de jogos. Permaneci no meu quarto com o aparelho de TV ligado; tentava estar a par do que acontecia pelo mundo.
Nos dias seguintes, acompanhei Anne durante a tarde e dormi com ela algumas noites. Deixava aviso à recepcionista para que permitisse a minha entrada. Não consegui, porém, conviver durante muito tempo com aquele cotidiano de jogo. Ela vivia daquilo, quase sempre ganhava. E também bebia muito. Tudo era, para mim, desgastante ao extremo. Eu também já jogara e ainda bebia, mas havia algo mais importante que eu precisava fazer.
Seis semanas após ter chegado a Malbork, eu partia. Despedi-me de Anne. Ela não disfarçou as lágrimas. Falei que poderia viver com ela, mas não naquelas circunstâncias.
Quando o trem, resfolegando, deixou a estação, pressenti que não mais nos veríamos.