domingo, março 25, 2007

Ludfashion
Willheinn quis ir primeiro ao cassino.
– Quero jogar um pouco, vamos mostrar a essas garotas como devem fazer para se tornarem pessoas de sorte.
Elas olhavam um tanto surpresas. Acredito que não estavam acostumadas a esse tipo de programa. Enquanto o táxi trafegava vagaroso, vi que meu amigo ofertara uma nota de cinqüenta a cada uma.
– Se vocês se comportarem, mocinhas, ainda vou agraciá-las com muito mais dinheiro, vejam, não é mentira.
Mostrava algumas notas que tinha na carteira. Percebi que não entendiam suas palavras, mas compreenderam com facilidade o que ele quis dizer.
A minha preocupação era com o motorista. Já o conhecia de outras viagens e o percebia como uma pessoa soturna. Temia que ele nos denunciasse. Seríamos chamados à delegacia, pagaríamos enorme multa e as garotas seriam deportadas. Quando nos deixou à porta do cassino e Willheinn pagou o preço estipulado, deslizei uma nota de dez nas mãos daquele que temia ser nosso algoz. Ele sorriu e piscou um dos olhos. Sinal de que estava satisfeito.
Dentro do Ludfashion havia uma grande confusão. Em meio às luzes, fumaça de cigarros, homens e mulheres elegantes, garçons transitando com bandejas plenas de copos com diversas bebidas, um cidadão que morava na Deigth Lusckern – eu o conhecia – e que sempre vivia de dinheiro emprestado, possuía junto a si uma grande quantidade de fichas. À sua volta, se aglomeravam pessoas de todos os tipos. Gritavam e davam palpites. Várias vezes os seguranças se aproximaram e fizeram menção de intervir, temendo confusão maior. Ele acenava querendo dizer que estava tudo sob controle, que não o aborrecessem. Tanto mais jogava, mais ganhava; e a quantidade de curiosos aumentava.
Fomos para o bar, onde o ambiente era mais calmo; colocamos as idéias em ordem. As mulheres pediram bitter russo, quanto a nós, não abandonamos os escoceses. Nossos copos vieram cheios.
– Camarada, disse eu, esses rapazes querem nos embebedar na primeira dose.
Meu amigo riu e não protestou.
Descobri que uma das mulheres conhecia algumas palavras em francês. Tentamos entabular uma conversa; a comunicação, no entanto, não se deu. Escutei diversas vezes a mais baixa dizer: État Uni, État Uni. Deduzi que era para onde ela desejava ir. Como já esperava, a pequena me abraçou e com a outra mão levou aos lábios o copo com líquido rubro.
Willheinn não abraçou a sua companheira, mas se manteve sempre a seu lado e cuidou para que estivesse protegida de pessoas indesejadas. Um engraçadinho passou e parou durante alguns segundos, mirando-nos. Meu amigo se dirigiu a ele. Em pouco tempo o homem desapareceu e não mais nos incomodou. Jamais soube o que Willheinn lhe dissera.
Eu e as duas mulheres não jogamos. Observamos o amigo. Ele começou perdendo, mas em pouco tempo recuperou e se pôs em vantagem. A roleta girava, Willheinn demorava um pouco, mas apostava. Em determinado momento, começou a apostar grande quantidade de fichas apenas na cor. Por duas vezes seguidas conseguiu dobrar toda a quantidade que possuía, tendo como resultado a cor vermelha. Ficou uma vez sem jogar e na vez seguinte apostou tudo na cor preta. Ganhou de novo. Em apenas trinta minutos foi ele que passou a ser assediado por grande número de apostadores e curiosos. Pediu que eu tomasse conta de algumas fichas. Continuou apostando. Reparei que não mais perdia. Cuidei também de proteger nossas mulheres e pude reparar que elas estavam excitadíssimas com as seguidas vitórias de Willheinn.
Já estávamos havia duas horas no cassino quando um dos funcionários se dirigiu ao meu amigo e sussurrou algumas palavras no seu ouvido. Este recolheu todas as fichas, pediu que nós o aguardássemos e seguiu o homem. Voltou depois de um quarto de hora.
– Eles estão pedindo para que nos retiremos.
– É por causa das garotas? – quis saber.
– Não, creio que pensam que eu estou utilizando algum tipo de truque. Mas não se preocupe, me pagaram todas as fichas.
Se antes já estávamos animados, a grande soma obtida no cassino derramou sobre nós vontade de gozar a noite de forma mais intensa.
Aproveitamos para jantar no melhor restaurante da cidade. Creio que não preciso descrever os pormenores do Café de Paris, pois as virtudes do local são do conhecimento de todos. A casa recebe visitantes de toda parte do mundo, sobretudo depois que completou três séculos de existência.
Pedimos duas entradas e três pratos principais. Para beber as escolhas variaram: uma garrafa de vinho branco alemão, outra de tinto francês (Bourbon), um dry-Martini, uma dose de vodca e o inconfundível doze anos escocês. As mulheres, pelo modo como se portaram à mesa, aparentavam pessoas finas.
Tentei me comunicar com Nasha, a minha pequena, queria falar sobre qualquer assunto, ou mesmo apenas ouvir sua voz. Dei a entender que queria saber dela. Tudo que consegui foi que fizesse um único gesto: deslizou uma das mãos sobre meus ombros e segurou-me um dos braços – sua temperatura era quente –, depois sorriu. Seus dentes se mostraram bastante claros. Investiguei-a de modo meticuloso, pois a bebida aguçara meus sentidos.
Acredito que ambas eram boas pessoas e que até tinham formação escolar; estavam ali em troca de algum dinheiro, é claro, mas seus objetivos eram outros: a emigração. Tentei estabelecer a todo custo algum diálogo.
– Elas só compreendem a linguagem do corpo –, disse meu amigo, enquanto saboreava uma fatia de presunto que viera em uma das entradas – não entendem outra coisa.
– Devem ter alguma inteligência – rebati.
– Claro que tem, caso contrário não estariam aqui – ele riu e as duas o acompanharam, embora suas faces não demonstrassem qualquer entendimento. Katya, como entendi ser o nome da musculosa, percorria com a ponta dos dedos o tórax de Willheinn; eu não quis acreditar que ela achasse aquele o local apropriado para colocar sua arte em prática.
O ruído de pratos e talheres nos levou a outra direção. Era o garçom que chegava com os pratos principais.
O jantar se deu no mais pesado silêncio. A luz era baixa, e das outras mesas vinham apenas pequenos ruídos entremeados de vozes que se esforçavam para não serem ouvidas. Quando terminou sua porção, Willheinn pediu ao garçom que deixasse a garrafa de uísque, não gostava de ser servido dose a dose. O empregado pediu que aguardasse. O próprio maitre trouxe a garrafa, encheu o copo dele e a pousou sobre a mesa, fazendo-nos uma breve reverência. As mulheres puseram-se também a beber. Nasha sorriu para mim após tomar longo gole e virou-se para o copo que segurava à altura dos olhos, como se quisesse fazê-lo de espelho. Depois me olhou de novo; percebi que desejava comunicar alguma coisa. Pegou o guardanapo e fez um desenho. Tentou me explicar a cena. Riscara com poucos traços uma mulher deitada; vinham-lhe ao encontro lábios que voavam sozinhos até se encaixarem na sua boca. Depois apontou para o desenho, para ela, e em seguida para mim. Fiz movimento de que iria beijá-la, mas descobri que não era isso que ela queria dizer. Começou então a explicar de novo. Virei-me para Willheinn com a intenção de que me socorresse; ele, porém, parecia entender com perfeição as mensagens das mãos de Katya. Ela usava aqueles tentáculos com muita habilidade. Ele, por sua vez, apertava com força as coxas da mulher que, sentada, dava pequenos saltos, como que assustada, mas demonstrava gosto pela brincadeira. Nasha num gesto súbito beijou-me o pescoço e depois os lábios; temi que os movimentos exacerbados tanto dela como da outra nos trouxessem complicações.
Embora já tivéssemos acabado o jantar, não queria despertar Willheinn do embevecimento em que se encontrava.
Custou-nos algum quarto de hora para que o maitre reaparecesse; perguntou se desejávamos mais alguma coisa; sua intenção, porém, estava estampada na fisionomia. Éramos presença indesejada no local. Agradecemos, Willheinn pediu o total da despesa. O homem voltou em instantes, recebeu o dinheiro e deu passagem para que nos retirássemos.
Convenci meu amigo de que o melhor era voltar ao hotel. Já nos tínhamos metido em confusões suficientes, melhor não mais arriscar a estragar a noite. Ele concordou a contragosto. Entramos em outro táxi e voltamos para o hotel. O motorista, desta vez, era estrangeiro e manteve-se indiferente à presença feminina.
As mulheres haviam tirado o casaco quando chegamos ao cassino; depois, mais uma vez, no restaurante. Em ambos os lugares incendiaram a curiosidade alheia e causaram furor entre os homens; usavam vestidos muito curtos. Katya, a musculosa, estava sem meias, o que também provocou certo alvoroço; suas pernas subiam nuas e penetravam sob o vestido. No táxi ela, ainda, tirou o casaco; demonstrava intenso calor; era a bebida que já provocava efeito. Sinalizei que não fizesse isso, que esperasse chegar ao nosso destino. Ela fez de conta que não entendeu. Sentada ao lado esquerdo de Willheinn, a roupa subira-lhe, deixando grande parte das coxas à mostra.
Ao entrarmos no Bourg sentamo-nos na sala de estar, ao passo que nosso patrocinador foi mais uma vez ao bar. Voltou com outra garrafa de uísque.
– Willheinn, basta, não posso mais – falei em voz baixa.
Nasha procurou um copo e estendeu a ele, seu gesto foi seguido pela amiga. Três copos quase pleno da bebida foram rapidamente esvaziados. Comecei a temer como tudo aquilo acabaria.
Quarenta minutos depois, enfim, nos recolhemos aos apartamentos reservados. Ficavam no terceiro andar. A pequena Nasha me acompanhou, enquanto a musculosa seguiu Willheinn. Ele se mostrava muito contente por estar prestes a possuir aquela mulher grande e forte. Aqui é preciso fazer um comentário. Meu amigo bebeu o dia inteiro e, em momento algum, demonstrou qualquer vestígio de embriaguez; apenas de incomum, o rosto avermelhado.
Nasha tirou toda a roupa sem pejo algum. Sinalizou que eu esperasse, deitou de ventre para cima na cama, mantinha as pernas abertas e os braços afastados do corpo. Parecia que iria entrar em transe. Só me faltava essa. Fechou os olhos e permaneceu longo tempo naquela posição. Esperei creio que vinte minutos. De repente ela começou a tremer, as pernas principalmente saltavam alguns centímetros da posição horizontal, os quadris se agitavam. Eu não queria acreditar no que via. Ela parecia estar transando com alguém invisível, alguém que a levava a estado de extrema excitação. A seguir começou a falar em seu idioma, não demorou e gritava alucinada. Apontou-me uma das mãos. Entendi que me desejava próximo. Ao tocá-la, enlaçou-se a mim com extrema violência, continuando com seus gritos estrangeiros. Giramos por toda extensão da cama, fomos lançados ao chão e ela bateu forte a cabeça no assoalho. Não se incomodou, nem demonstrou dor. Intempestiva, atirava-se em violento transe de corpo e alma.
Foi uma relação pontuada de gozo e dor para nós dois. Quando acabamos, tomou dois grandes comprimidos, caiu desmaiada e só acordou três horas depois. Pôs-se então a chorar. Nunca pude entender o que se passara com ela.

Willheinn partiu pela manhã. Katya e Nasha já haviam saído. Ele despediu-se demonstrando que sentiria minha falta. Acompanhei-o à estação. Antes de embarcar, disse-me em voz baixa:
– Dei às mulheres a senha, elas merecem; tenho alguns amigos na imigração, creio que elas conseguirão chegar aos Estados Unidos – sorriu ao seu jeito e me abraçou mais uma vez.
Partiu sem olhar para trás.

sexta-feira, março 16, 2007

Willheinn
Willheinn chegara à cidade havia dois dias. No terceiro, apareceu à minha procura. Saímos a esmo pelas ruas do Centro. A temperatura era amena e contribuía para alegre e descontraída conversa. Em determinado momento, resolvemos ir ao Sürgarden, pequeno bar à margem esquerda do Knopt. Ao entrarmos, sentamos e passamos a observar através do vidro a paisagem ainda branca de fim de inverno. Meu amigo viera do exterior e não hesitava em me contar suas experiências, sobretudo, como dizia, seu sucesso com mulheres de beleza exuberante. Ainda era cedo, mas o garçom não se surpreendeu quando ouviu dele o pedido: uma dose reforçada de vodca. Willheinn disse que não me reconhecia quando descobriu que eu queria apenas um café bem quente. Manteve-se em silêncio durante algum tempo e depois voltou à conversa anterior. Ao reparar que eu saboreava devagar o café, perguntou-me se parara de beber:
– Estou bebendo, não?
– Não é sobre café que estou perguntando.
– Ainda é cedo para outro tipo de bebida que não seja café.
Riu da minha resposta.
– Outro tipo de bebida... – repetiu minhas palavras em tom de pilhéria e mergulhou numa gargalhada que permitiu que se visse seus dentes muito brancos.
– Você fala com requinte, – disse – parece que também absorveu os dons de escritor para as conversas vulgares.
– Não foi essa minha intenção, – apressei-me em desfazer o mal-entendido – talvez seja devido à solidão em que ando ultimamente, trabalhando em excesso e conversando pouco.
– Solidão? É o que jamais me acontece, – falou – ah, as mulheres!, elas são tudo e não conseguem me deixar sozinho.
Eu e Willheinn havíamos sido muito próximos, aos vinte anos. Tivéramos planos. Ele também escrevera, fizera versos, e até que eram bons. Então toquei no assunto:
– Ainda escreve?
– Bilhetes românticos com indicações de encontros para as horas tardias – riu ao término das próprias palavras.
Nada falei; terminei meu café e reparei o ar mais frio que veio do exterior após a porta ser aberta para a entrada de uma mulher de meia-idade.
Meu amigo olhou para ela, mas não demonstrou interesse. Depois continuou:
– Você deve imaginar a vida intensa que levo desde que fui trabalhar com esses papéis que todos chamam de ações. Não há nada que torne um homem mais nervoso. Por isso é preciso muita bebida e divertimentos nas poucas horas vagas que restam.
– Você então se tornou um homem de negócios – afirmei.
– Isso, um homem de negócios – repetiu.
– E a nossa cultura humanista?
– E por que você acha que não há cultura humanista nos negócios?
Nada respondi. Meneei a cabeça em sinal de dúvida e não voltei ao assunto.
– Sabe quantos picassos a bolsa de Londres pôde proporcionar a alguns de seus grandes investidores?
– Não fazia idéia que distribuir picassos a grandes investidores significasse apreço do mundo dos negócios pela cultura humanista – respondi.
– O mundo dos negócios tem muito apreço pelas artes.
– Você não pensa em voltar a escrever, publicar alguma coisa?
– Vivo minhas histórias na pele.
Riu e levou o copo aos lábios, esvaziando o que restava da vodca.
– Apenas eu as experimento, não preciso compartilhá-las com pessoa alguma – falou.
– Você, porém, está me contando, de certa forma outras pessoas as experimentam.
– Isso, algum privilegiado que escute as histórias de Willheinn, de sua própria voz.
Dois senhores entraram no pequeno bar. Sentaram-se sobre dois bancos próximos ao balcão. Um deles reconheceu o meu amigo, acenou-lhe em silêncio. O outro pediu uma dose de vodca polonesa. Seu companheiro protestou:
– Uma, não; duas.
– Pelo visto os velhinhos andam em forma – sorriu Willheinn, acenando para o empregado que lhe enchesse o copo mais uma vez.
– Escute, amigo, – continuou – essa cidade ainda me parece animada como antes, quero aproveitar o pouco tempo de minha estada aqui, quero ir ao cassino, e preciso também de mulheres...
– Há muito divertimento, mas para isso é preciso dinheiro...
– Dinheiro não é problema; aproveitemos, você é meu convidado – disse Willheinn.
– Pelo visto, o mercado de ações lhe proporciona uma boa vida.
– Aqui entre nós, – sussurrou – boa, não, ótima. E olha, acho que você também possui enorme talento para ter uma boa vida e ganhar o que ganho.
– Não estou interessado em ofertas de trabalho, – rebati de imediato – já tenho muito o que fazer.
– Bem, não entremos em pormenores, você é meu convidado enquanto eu estiver na cidade.
Almoçamos juntos, fomos depois ao bilhar. O homem de negócios encontrou os velhos amigos, conversou com todos, sempre muito alegre e cordial, acompanhado de um copo ora contendo vodca ora uísque. E quando o alertei que já bebera demais, falou:
– É para descontrair, a vida de um homem de negócios é muito tensa.
Jogou algumas partidas. Ganhou a maior parte delas. Quando ele experimentava o taco movimentando-o para frente e para trás, medindo de modo meticuloso como daria a tacada, acertando uma bola à outra, lançando-a em seguida na caçapa, era possível perceber o porquê de seu sucesso no mundo dos negócios.
Quando deixamos o salão, falou:
– Agora vamos às mulheres.
– Calma, camarada, nada é mais reprimido nos dias de hoje nesta cidade do que a prostituição.
– Não falo em prostituição, falo em mulheres.
– E qual o meio de arranjarmos mulheres agora, sobretudo com tanta rapidez? – perguntei.
– Sobretudo? Acreditava que você tivesse algumas conhecidas...
– Oh, meu caro, minha cotação não anda tão alta como suas ações.
Entramos no Bourg, um hotel razoável que eu gostava de freqüentar quando saía com alguma garota. Perguntei ao funcionário da recepção se tinha o telefone da Sra. Polovsky. Ele me olhou com desconfiança; após alguns segundos, no entanto, voltou com o número dela. A sra. Polovsky era uma cinqüentona que agenciava mulheres jovens.
Terminei a ligação e voltei ao meu amigo. Ele se sentara na sala de estar, olhava o imponente lustre de pingentes de cristal e já percebera que havia um bar no fundo da sala.
– Escute, Willheinn, dentro de uma hora chegarão duas mulheres. Você não sabe o quanto isso vai nos custar. E tem mais uma coisa: não falam a nossa língua.
– De onde são, afinal?
– Da Ucrânia.
– Não poderiam ser prostitutas locais?
– Não temos prostituas locais, – afirmei – nossas moças não gostam de correr riscos; as poucas que tínhamos emigraram, vivem hoje algumas na França, outras nos Estados Unidos e creio que são mais felizes.
Enquanto meu amigo recebia das mãos do empregado do bar uma nova dose de uísque, num copo bem mais requintado do que o do bar da sinuca, eu refletia sobre a situação em que me metera. Na verdade, jamais me animara a fazer amor com prostitutas, não conseguia sentir atração por mulheres que faziam sexo em troca de dinheiro.
Quando ele sentou na poltrona em frente e me perguntou mostrando-me seu longo copo se eu também não beberia, tudo que fiz foi sinalizar ao garçom pedindo também uma dose.
– Você não acha que é muito cedo para esse tipo de encontro? – perguntei a Willheinn.
– Por isso mesmo; vamos sair com essas garotas, dar-lhes muita bebida, dançar com elas e, no final, vamos trazê-las para cá e nos fartarmos!
– Não basta apenas treparmos com elas?
– Não, a trepada será o ponto alto da noite, precisamos antes aproveitar bastante ao lado de duas mulheres.
Admirava aquela disposição. Apesar de estar bebendo desde cedo, ainda demonstrava muita energia.
– Foram os ingleses que lhe preparam para gozar a vida com tanta intensidade? Não me parece que lá eles se divirtam tanto.
– Não, claro que não, – afirmou fazendo pose de ator – depois de minha presença naquele pequeno reino, eles evoluíram um pouco e aprenderam a arte de aproveitar a vida, mas creio que ainda lhes falta talento.
As mulheres não demoraram. Comecei a pensar como faríamos para circular pela cidade com as duas prostitutas, como desejava Willheinn. Não eram extravagantes, mas muito altas e demasiadamente estrangeiras. Chamariam a atenção. Uma delas tinha o corpo que chegava a delinear músculos vigorosos. Teria sido uma atleta? A outra era menor e tinha o cabelo curto. Senti uma ponta de atração por esta, que também me olhou fingindo timidez e encanto. Não era possível saber o que vestiam por baixo dos longos casacos. Sobressaía apenas que a de maior estatura usava botas de cano longo, moda há muito ultrapassada entre as mulheres de nossa cidade. Vieram acompanhadas de uma outra, que tinha ar masculino e sotaque italiano. Sussurrou-me que deveríamos pagá-la antecipado e, caso acontecesse algum problema, não deveríamos denunciar pessoa alguma. Diríamos que encontramos as mulheres em alguma rua do Centro. Como minha reação foi demorada, meu amigo quis saber o que conversávamos. Estendi-lhe uma das mãos.
– Trezentos e cinqüenta coroas antecipadas; sem ter o direito de saber se elas sabem dar uma boa trepada.
Deixamos os quartos reservados e tomamos um táxi. Willheinn foi no banco de trás entre as duas, enquanto a mim restou o banco ao lado do motorista.

quinta-feira, março 01, 2007

Tair Anderson

Na Tair Anderson há um restaurante que se situa no mesmo andar de um salão de bilhar. Quem quiser chegar a ele, precisará ir por um corredor que à primeira vista parece sombrio, mas logo em seguida descobrirá algumas lâmpadas que dão um pouco de brilho ao local. À direita encontrará a escada; é por ali que deve ir. Após o primeiro lance, o visitante vai reparar que a porta à esquerda é a do salão de bilhar e, ao voltar-se, verá outra porta, esta de vidro, cuja cor azulada não permite distinguir o interior; é o restaurante.
Esse percurso já era familiar a mim. Não pelo bilhar, mas propriamente pelo imenso e requintado salão que se descortina quando se cruza sua soleira, pois sempre há um maitre atento a quem chega e pronto a lhe abrir a porta. Jamais descobri como pode perceber a aproximação de algum cliente. Ao entrar, recebo os cumprimentos do dono da casa e a seguir sou conduzido à mesa onde permaneço às vezes em que apareço ali.
Naquele dia, recém chegado de Malbork, ainda remoendo minhas incertezas, encontrei Maurice. Na verdade, ele me esperava. À sua frente como de costume, vi um copo de leite. Interessante esse homem, levava o leite à boca e se podia perceber que a bebida lhe proporcionava supremo prazer. Ao contrário de nós, mais jovens, não consumia álcool, bebia seu leite e se mantinha mais alegre e entusiasmado do que qualquer outra pessoa, seu estado de espírito surpreenderia quem não o conhecesse. Maurice, como era de se esperar, mantinha atenção especial pelas artes, que sabia comentar com os pormenores de um crítico, embora não fosse essa sua profissão.
– Caro autor – levantou-se e me abraçou. – Oh, tenha a bondade, sente-se comigo – convidou-me.
Ele me prezava muito, mas naquele dia não me sentia bem para conversarmos sobre literatura. E, além disso, eu passava por um período de angústia, o que me fazia pensar se valia a pena gastar tanta tinta e papel.
– Estive em Berlim e vi na vitrine de uma livraria o seu primeiro livro.
– Os alemães têm muito mau gosto – afirmei.
Deu um largo sorriso, levou o copo de leite à boca e saboreou a bebida mais uma vez, pousou-o depois e continuou estampar a fisionomia alegre. Seu rosto brilhava e lembrava um pouco os dias ensolarados de verão.
– Não fale isso, os alemães sempre cometem alguns erros, mas sobre o seu livro eles acertaram.
O garçom se aproximou e me perguntou em voz baixa o que eu beberia. Respondi que me trouxesse a bebida de sempre.
Maurice voltou ao assunto mais uma vez.
– Sei pelo que passam os jovens autores. Freqüentemente questionam se a escrita vale a pena. Isso é comum a todos os artistas, independente de qual seja a arte que praticam. Há quem diga que só vale a pena qualquer tentativa de criação se houver algo a acrescentar, caso contrário é melhor nada fazer. Não penso assim. Se tal raciocínio fosse verdadeiro, teríamos de nos desfazer de mais da metade do que foi produzido pela humanidade.
O garçom se aproximou de novo, agora trazia uma bandeja prateada que continha a garrafa de genebra e pequeno cálice. Colocou-o sobre a mesa e o completou com o líquido branco. Após fazer ligeira reverência, retirou-se.
– Acho que já falei sobre isso, mas escute mais uma vez. Sempre achei os críticos contemporâneos por muito racionais. Esquadrinham a obra sob perspectivas teóricas que não levam em consideração a sensibilidade. Traçam a arquitetura da criação como uma planta de edifício. E olha que é arriscado falar assim, pois há vários edifícios extremamente poéticos.
Maurice sorriu depois das duas últimas palavras, voltou o rosto a uma das janelas – estavam todas fechadas – e fez como se procurasse algum pássaro que cruzasse o céu portando segredo indecifrável.
Nessa altura, já esvaziara meu cálice. O garçom retornou e perguntou se eu desejava mais alguma coisa. Acenei que me repetisse a dose.
– Veja só; é lógico que toda a obra tem uma estrutura, uma forma; não se poderia se constituir sem isso, mas as pessoas têm a sensibilidade. O crítico também deve tê-la. O leitor não quer saber quantos pilares sustentam a construção, mas quer perceber os olhos dos personagens, reparar suas marcas faciais. Sim, marcas faciais, você nunca pensou nisso?
Eu olhava para ele e queria poder sentir aquela alegria toda e ver tudo o que ele via. Caso eu conseguisse, talvez não fosse mais necessário escrever. Ele sempre estava preste a descobrir alguma coisa.
– É claro, caro amigo, que o crítico também é um leitor, mas é alguém especializado, alguém mais equipado para tal fim. É preciso, no entanto, dizer que falta a muitos sensibilidade. Não estou falando que se deve ceder ao gosto do público, mas quando você diz: "aquela mulher mergulhou num mar de álcool e ali encontrou o atalho de uma nova e provisória vida" você está dizendo algo a mais, não? – assegurava ele –, o que você escreve tem esse estopim.
Diante dessa sua palavra, me veio à mente que tudo poderia ir pelos ares. Depois sorri e ele acabou por me perguntar de que eu ria.
Dei de ombros.
– Falta naqueles que analisam livros hoje em dia um pouco de sensibilidade. Não falo de pieguice, é claro. Não se pode tratar uma obra como uma equação matemática.
– O dono do nosso vespertino chora pelas lágrimas dos velhos românticos.
Ele deu uma sonora gargalhada.
– O dono do nosso vespertino chora pelos leitores que ele não consegue manter a cada dia que passa. O jornal envelheceu junto com ele – completou.
Entraram três homens, passaram por nós e nos cumprimentaram de modo formal. Sentaram-se em uma mesa próxima a uma das janelas. Percebi que pediram a um dos garçons que deixasse sobre a mesa uma garrafa de vodka. Um deles era o inspetor de tráfego do setor sul, controlava o acesso à segunda ponte sobre o rio Knopt; creio que não estava de serviço.
Aproveitei a chegada deles para dizer ao meu interlocutor:
– Veja, a vida é feita de homens práticos. Preocupam-se com profissões, divertimentos em bares, garrafas de vodkas e ocasionalmente mulheres, não estão interessados em arte, menos ainda em literatura.
– Não diga isso, jovem autor, não fale dessa forma. As pessoas precisam de fantasia. E isso é tudo.
– Fantasia? - repeti.
– Isso, fantasia; nunca pensou nisso?
– Já – falei –, mas de uma outra forma.
– As obras de arte precisam suprir esse ponto: fantasia. Há autores que se envergonham, que querem transmitir algo nobre, discussões teóricas, ensinamentos, revelações, etc. Mas o homem busca a arte apenas por isso: fantasia. As pessoas querem se divertir. Isso não quer dizer que o artista deva realizar sua obra de modo vulgar.
Não concordei em parte com o que falava, mas continuei ouvindo.
Ele pediu ao garçom mais um copo de leite e continuou:
– Na maioria das vezes, os estudiosos também não admitem isso, tratam a arte como uma ciência, querem encontrar os princípios que norteiam a criação, esquecem o primado da sensibilidade, da fantasia, esquecem que há uma centelha em cada grande obra que não pode ser captada por instrumentos cirúrgicos. Essa centelha está na realidade abstrata, muitas vezes é alguma coisa que não se consegue dizer, mas a sensibilidade consegue captar. Imagine o teatro grego, as epopéias, os grandes poetas, suas viagens e seu espanto, sem a fantasia.
Reparei meu cálice vazio mais uma vez. Ante nova investida do garçom, fiz sinal que por hora não mais beberia. Meu interlocutor acabava seu copo de leite.
Um casal de jovens entrou no restaurante e se dirigiu a uma das mesas junto ao balcão do bar. O rapaz puxava a moça por um dos braços. Ela resistia e fazia crer que ele a estava machucando. Olhei na direção deles. Quando reparou que eu os observava, o jovem soltou a moça. Ela esfregou uma das mãos sobre o local dolorido, após relutar acabou por se sentar na cadeira que ele lhe oferecia. A seguir, pareceu acalmar-se. Um dos funcionários trouxe dois longos cardápios. Eles, compenetrados, se puseram a lê-los.
Maurice distraiu-se enquanto eu acompanhava o casal. Pareceu não se impressionar com a chegada dos jovens. Olhou novamente em direção à rua, embora não pudesse vê-la, depois pareceu investigar os três homens que tomavam vodka. A seguir voltou-se para o bar, copos e taças dependurados, garrafas de todo o tipo de bebida, e creio que lamentou por sua bebida predileta não figurar entre elas.
– Bem, o que você está escrevendo agora? – lançou-me a pergunta inesperada.
– Nada – retorqui de imediato.
Riu alto de novo. E depois disse que não acreditava, que minha expressão sempre denunciava que eu estava a criar algo explosivo. Não era possível me ver sem imaginar que eu tocava nos subterrâneos da alma. Uso aqui suas próprias palavras.
– Não quero aborrecê-lo com minha conversa – continuou –, mas quis encontrar você para lhe parabenizar e dizer que não desista. Suas histórias são importantes e interessantes. Há quem deseja ver nas obras de arte algum tipo de revelação. Cada um pode procurar o que bem entender. Mas não é função do artista ser uma espécie de deus que leva às pessoas idéias sobre o que elas jamais pensaram. É mais importante a fantasia, a criação de novos mundos. Aqui, talvez o artista se iguale a deus. Os artistas criam novos mundos que passam a existir na mente daqueles que admiram suas obras. E são mundos tão importantes quanto os que nossos próprios olhos são capazes de distinguir.
Maurice disse que tinha pressa. Levantou-se e se foi. Passou pelo balcão e deixou algum dinheiro. Mais tarde descobri que pagara o pouco que consumira, deixara paga a minha parte e mais uma reserva para caso eu pedisse algo para comer. Fez isso por cortesia, sabia que minha situação financeira não ia mal.
Tirei do bolso pequeno caderno e comecei a escrever uma nova história. Nela, uma moça vinha de trem do estrangeiro para encontrar o namorado. Era tímida e arredia. Para tomar alguma decisão precisava ser pega pelo braço. O rapaz gostava dela, tentaria a vida a seu lado. Mas ambos ainda eram muito jovens e imaturos. Talvez vivessem algum tempo juntos, mas depois ela partiria. Ele em algum momento poderia ir à sua procura. Mais aí a história já estava avançando a passos rápidos. Era preciso esperar, escrever sobre o que faziam hoje, seus sonhos, ideais, planos para o futuro. Que futuro? Talvez um futuro sob a capa do jogo e do álcool, como ocorrera a Anne.
Quando descansei o lápis e levantei a cabeça, vi que a jovem me olhava. Será que tivera a sensibilidade de perceber que eu tentava escrever a sua história? E ela até que lembrava Anne.