quinta-feira, dezembro 21, 2006

Knopt

Numa tarde de sexta-feira de novembro as águas agitadas do Knopt levaram um menino. Ele brincava com outras crianças junto à margem direita. Corria. De repente debruçou-se na amurada, seu corpo projetou-se adiante e mergulhou nas águas geladas do rio. Os bombeiros foram logo acionados. Duas embarcações ligeiras procuraram durante horas o pequeno. Alguém avisou por telefone à cidade seguinte. Se ele fosse encontrado lá, no entanto, já se sabia que não estaria vivo. Em todo caso, a sobrevivência era difícil devido à baixa temperatura. Várias pessoas se aglomeraram no ancoradouro de Humpt. Muitos saltaram à velha embarcação que permanecia amarrada a toras e olhavam em todas as direções tentando descobrir algum vestígio do desaparecido. Crianças assustadas correram para junto de suas mães. A ponte Triestgarden abrigava vários homens e mulheres que em vão voltavam-se às águas lamacentas e rápidas que escorriam abaixo. Jovens revoltados formaram uma milícia e apedrejaram o posto de fiscalização que ficava também sobre a ponte. Pessoas presentes tentaram contê-los, mas a indignação era maior. Após discurso inflamado contra a administração local feito por um deles, outras pessoas aderiram aos revoltosos e multiplicaram-se as mãos que arremessavam projéteis improvisados contra a guarita. O guarda de plantão precisou fugir. Marcharam depois em direção à Câmara, mas foram contidos a tempo e dispersados por policiais avisados do que acontecia.
Como entardecia cedo naquela época do ano, as buscas tiveram de ser suspensas. Um clima de tristeza abateu a cidade. Ninguém tinha o que dizer. O acidente não fora o primeiro, sofria-se, porém, porque a vítima era uma criança.
Normalmente às sextas havia mais transeuntes no centro velho. Bebia-se animadamente até altas horas. Mas àquela noite a cidade ficou de luto. Após escurecer, as pessoas se dispersaram. Uns poucos se dirigiram às bodegas da margem direita, enquanto outros desapareciam embarcando nos transportes sobre trilhos, peculiares na cidade.
Entrei no bar de Greend. Dei-me com dois conhecidos. Meneei a cabeça cumprimentando-os. Eu e Greend éramos velhos amigos. Cumprimentou-me e, sem que eu precisasse dizer palavra alguma, serviu-me.
Às oito horas, Blend, morador de Munch, chegou à cidade. Até então eu não o conhecia. Vinha elegantemente vestido, trazia uma pequena valise. Entrou na bodega e pediu uma dose de uísque. Depois de tomar a segunda dose, tentou estabelecer diálogo.
– Soube que houve uma tragédia hoje.
– Sim – afirmei.
– A cidade está deserta. Não é costume estar assim às noites de sexta.
Usava uma gravata estreita sob o paletó preto, que continuava abotoado. Pendurara o grosso casaco logo que entrara.
– Venho de Trebic, viajo a negócios. Sempre pernoito aqui uma vez por mês, mas nunca vi o senhor – disse, continuando a se dirigir a mim.
Apresentei-me e permanecemos conversando. Parecia ser um homem alegre, feliz. Aos poucos, sob o efeito da bebida, foi se soltando. Contava casos engraçados sobre os moradores das cidades que sempre visitava. Ressaltava de maneira caricata o exótico, alguma pilhéria, ou alguém idiota e estapafúrdio. Começamos a rir. Inicialmente de modo acanhado, mas depois já à vontade. Até mesmo esquecidos da recente tragédia. A seguir falou sobre Malbork, cidade onde eu estivera há alguns anos e que me trazia boas recordações.
– Você conhece o Hotel Wensck?
– Conheço – respondi.
O Wensck era uma hotel antigo. Tinha três andares, mas não possuía elevador. Situava-se num lugar pitoresco. Suas janelas davam para as montanhas que permaneciam durante grande parte do ano com os cumes cobertos pela neve. A cidade não abrigava esportes de inverno; quem quisesse praticá-los devia se dirigir a uma outra povoação, a mais ou menos duzentos quilômetros de distância, para então começar subir as montanhas. Isso proporcionava à cidade atmosfera tranqüila e a deixava longe de turistas predadores que só viriam estragar-lhe o caráter de refúgio para aqueles que gostavam de se isolar do resto do mundo.
– Estive lá essa semana.
– Esteve no Trwarbovar?
– Claro! Você acha que eu ia perder essa? – disse com entusiasmo, enquanto mostrava o copo vazio a Greend.
– É o único lugar da cidade onde se pode ter uma boa bebida e uma boa comida – afirmei.
Ele assentiu com a cabeça, enquanto levava à boca mais uma dose de uísque.
– Conheci ali uma mulher. Sempre estive lá, mas nunca dei pela existência daquele ser fabuloso.
– Como se chama? – perguntei curioso.
– Apenas Anne, pelo que pude depreender.
Imediatamente me veio à mente a imagem de uma mulher com quem há anos me relacionara. Ele demorou-se durante algum tempo a descrevê-la e não tive mais dúvida de que se tratava dela mesma. Partira de onde estávamos havia três anos. Mudara de nome. Escondia-se em Malbork. Na ocasião da partida, dissera-me que seria a última tentativa. Durante toda a vida não se adaptara a lugar algum. Decidira dar mais uma chance a si própria. Era, a meus olhos, uma mulher atormentada. Isso ainda a tornava mais bela. Não disse nada a ele. Esperei que continuasse a conversa.
Um casal entrou na taberna de forma atabalhoada. O homem puxava a mulher pelo braço. Ela usava um vestido negro reluzente, que pude perceber quando tirou o casaco. Parecia estar bêbada. Tentava se libertar do braço dele. Mas ele a segurava com força, até que conseguiu fazê-la sentar em um dos bancos, junto a uma pequena mesa.
– Vamos comer algo, você precisa se alimentar, já bebeu demais – dizia a ela, se esforçando em transmitir-lhe carinho ou cuidado.
A mulher, porém, queria mais um dose de vodca. Insistiu tanto que Greend acabou levando-lhe a bebida. Tomou tudo de uma só vez. Ergueu a cabeça voltando os olhos para cima, como se apreciasse o teto do bar. Deu uma sonora gargalhada, depois se acalmou.
Blend reatou nossa conversa.
– Como eu ia dizendo, ela se chama Anne. Você a conhece?
Meneei a cabeça negativamente, enquanto bebia mais um pouco.
– Conheci-a nesta semana. Prometi voltar. Passamos uma noite juntos. Logicamente com muito respeito, no Trwarbovar. Ela me disse que mora no Wensk. Como é possível morar num hotel? Mas ela disse que mora e gosta muito. A rotatividade dos hóspedes parece que lhe causa excitação.
– O Wensk é propício a esse tipo de vida – consegui dizer algo, tentando não tropeçar nas palavras. Não queria que ele descobrisse a antiga relação que tivéramos.
A verdade é que eu a conhecera em Gunsk há oito anos. Ela estava em férias lá. Tentava se recuperar de mais uma de suas crises. Descobri que morávamos na mesma cidade. Quando voltou, estabeleci contato. Tivemos um romance. Fiz tudo naquela ocasião para ficarmos juntos, mas ela não era mulher de permanecer muito tempo com ninguém, nem permanecer no mesmo local. Quando partiu para Malbork, fui me despedir dela. Disse que um dia iria visitá-la, mas nunca fui.
– Disse que conheceu a obra de Schrobell – continuava ele com entusiasmo. – Parece que é um poeta excelente. Leu até alguns poemas para mim.
Eu o ouvia. Mas aquela conversa acabou por provocar-me forte impressão. Não pelo próprio Blend, mas pela lembrança de Anne. As inúmeras doses que eu já consumira também contribuíam para isso. A atmosfera do bar me sufocava. Outras pessoas entraram. Fumaça de cigarros se espalhava por todo o ambiente. A mulher bêbada recostara no ombro de seu homem. Parecia dormir. Embora Blend continuasse falando, eu já não ouvia suas palavras. Mudara de assunto. Contava sobre outros lugares, outras pessoas. Meus olhos estavam voltados para ele, meus pensamentos, entretanto, não mais se encontravam ali. Voltara-me para Anne.
Sim, iria até ela. Na próxima semana, viajaria a Malbork.

sábado, dezembro 02, 2006

O Buderwais
O buderwais ainda não recebera os habituais freqüentadores. Suas luzes vermelhas e azuis podiam ser vistas através da porta de vidro e já iluminavam com sutileza o interior do pequeno restaurante.
Anoitecera havia pouco. Joj Reed permanecia rente ao balcão lateral. Tinha um pequeno copo à frente e parecia, até aquele momento, sóbrio. Trajava uma surrada camisa grossa de mangas compridas, cinzenta, calças de brim, bota marrom com fivela de couro. Seu casaco jazia dependurado, por enquanto sozinho, na parede junto à porta de entrada. Estava quente ali dentro, mesmo assim, na cabeça, não dispensava o tradicional boné azul. A roupa apertada deixava transparecer que Reed estava realmente gordo. Tinha um rosto de menino, apesar dos cinqüenta e poucos anos. Demonstrava constante interesse por qualquer tipo de assunto. Punha-se a ouvir qualquer história atentamente. É lógico que não acreditava em todas. Mantinha-se sempre informado sobre tudo que acontecia em Kempt, embora o distrito tivesse crescido para o sul, lugar onde ele nunca estivera. Era um bom sujeito. Estava sempre pronto a ajudar alguém, desde que a necessidade não fosse dinheiro. Juddy aniversariava. Ele sabia que em breve a casa estaria lotada, por isso não tardara.
Todo final de outono havia festa no Bud. A data era conhecida por todos. Juddy fazia questão de não esquecer amigo algum. Pagava a despesa prazerosamente. Convidava até mesmo alguém que por acaso vira uma só vez. Era mestra em fazer amigos. E todos aproveitavam. Conhecidos e desconhecidos.
Um dos garçons tomava conta de um grande assado que havia horas parecia girar no forno improvisado. Ali não era habitualmente lugar de muita comida, era mais um bar do que um restaurante, mas aquele era um dia especial. Todo cuidado era pouco. E ele não queria decepcionar os convidados.
– Completa pra mim – mostrava o copo vazio ao ocupado garçom –, daqui a pouco você nem conseguirá ouvir minha voz.
O empregado o olhava enviesado. Mostrava-se nada simpático. Aquele freguês antes da hora o incomodava. Pegou bruscamente uma garrafa e completou sem disfarçar a fisionomia de desagrado.
Joj levantou o copo como se quisesse olhar através do vidro translúcido. Admirou a bebida transparente. Depois, rapidamente, em apenas um gole, despejou-a goela abaixo.
Devido ao frio, não havia mesas na parte externa, sobre o estreito calçamento. Era comum ocuparem aquela área. Até mesmo uma parte da pequena rua, em dias de temperatura amena, quando o bar lotava. Por enquanto, porém, algumas mesas permaneciam desarmadas, na área posterior. Talvez mais tarde, quando a bebida esquentasse homens e mulheres, alguém se lembrasse de armá-las e provavelmente muitos nem se importariam com o frio intenso.
Jefrey Santon acabava de chegar. A porta rangera. Joj virou o rosto e percebeu a entrada de um homem com fisionomia aborrecida. Não perdeu o humor:
– Veio sozinho, Santon? Deixaram você livre hoje? – deu uma gargalhada estridente.
Era por causa da mulher, que nunca o deixava em paz. Sempre que saía, ela imediatamente vinha atrás. O rosto do amigo – na verdade não podiam ser chamados de amigos quando estavam sóbrios – permaneceu impassível. Santon, a princípio, ignorou-o completamente. Joj nada falou. Mas pôde perceber que saía em vantagem com a blague. Sabia que depois da segunda ou terceira dose ele viria falar-lhe e tudo acabaria bem.
Após pendurar o casaco, tirar o gorro e enfiá-lo em um dos bolsos, olhou ao redor. Parecia desaprovar o ambiente. Acabou por pedir uma dose de uísque.
– Pode aproveitar, Santon, hoje não é por nossa conta – gargalhou Joj.
O garçom gritou por alguém que vinha lá de dentro. Mostrava-se por demais ocupado para atender bebedores, segundo ele, adiantados. O empregado pegou a garrafa e quando ameaçou entornar a bebida em um pequeno copo, deparou-se com as grossas mãos de Santon a cobrir o recipiente. Como já o conhecia, ia servir-lhe o uísque que bebia em dias comuns.
– Do legítimo, por favor - sussurrou de modo nada amistoso.
Depois de ser atendido e ainda observar durantes longos segundos a bebida que só podia usufruir em dias de festa como aquele, levou o copo ao nariz querendo sentir primeiramente seu odor. Após uma menção cordial a Joj, como desejasse a ele, ainda que em silêncio, saúde – tentava devolver-lhe o deboche –, virou o copo à boca.
A chegada de um casal despertou o interesse daqueles até então poucos freqüentadores. Era Célia Grifth acompanhada de um homem mais jovem, devia ter, no mínimo, dez anos a menos que ela. Vieram de modo sorrateiro. Entraram. Sentaram-se em silêncio junto a uma das mesas laterais, próxima à janela. O vidro estava bastante embaçado. A mulher procurou na bolsa uma carteira de cigarros. Tirou um, tateando sem pressa as extremidades do maço. Em seguida procurou fogo. Como custava encontrá-lo, Joj pensou em se adiantar, mas não foi necessário. Ela tinha um isqueiro. Ainda olhando ao acompanhante, que talvez se surpreendia com sua contida teatralidade, acendeu o cigarro e deu um longo trago. Os cabelos louros e um tanto embranquecidos – ela não usava tintura – se destacaram. Era bela. Não seria necessário apontar-lhe a idade para que se gostasse dela. Mesmo um tanto envelhecida, muitos não deixariam de desejá-la. O acompanhante, com pequenos olhos, perscrutou todo o recinto; vislumbrou o grande relógio acima do balcão principal; os copos virados e dependurados; as garrafas amontoadas a um canto sem preocupação de ordem ou harmonia; a fisionomia enfastiada do garçom e seu auxiliar; de esguelha investigou Joj e Santon. Quando o cigarro já atingira a metade, ouviu-se a voz de Célia, como que ao acaso. Dizia: "Bud, onde todos vêm, mas nunca se encontram". Acabou rindo alto da própria pilhéria. De repente falou ao acompanhante:
– Não vai pedir nada? Não tenha medo. É a Juddy que aniversaria. Daqui a pouco ela chega. Convidou os amigos e os amigos dos amigos. Não se preocupe. É por conta dela.
Ele, abrindo um pouco mais os olhos, a olhou. Sussurrou um tanto tímido a ela:
– Stanhagger e água mineral.
– Stanhagger? Bebida de profissional. Mas água mineral? Não me parece – disse sorrindo gostosamente. – Mas não é a mim que você deve pedir, eu não sou o garçom – falava enquanto apontava ao balcão mostrando o empregado da casa. Ela continuava com o rosto alegre e jovial.
Aos poucos as pessoas foram chegando e às 9:30 grande parte dos convidados já se encontrava no Bud, como era conhecido pelos freqüentadores usuais. O interior do bar estava quente. Embora a temperatura caísse ainda mais, alguns homens não se intimidavam e já se esparramavam pela parte exterior. A bebida contribuía para que carregassem as pequenas mesas para o lado de fora. Outros preferiam permanecer de pé. A aniversariante ainda não chegara. Mas era aguardada com muita ansiedade. Alguém ensaiava as primeiras notas musicais em um pequeno teclado. Um microfone mal regulado assobiou, sendo logo contido.
– Você precisa entender, Rich, que ele nos roubaram. Se tivessem de pagar tudo que nos tiraram, teríamos dinheiro para receber durante o resto da vida.
– Calma, Lionel, hoje é dia de festa. Não precisamos falar nisso. Bebamos do melhor.
– Não, isso jamais poderá ser esquecido – vociferava – fomos roubados. Criaram até leis para nos achacar.
Lionel saíra para junto às pessoas que se aglomeravam no passeio. Entre o vozerio, carregando seu eterno caneco de cerveja, acabava sempre no mesmo assunto. A venda das usinas de Kempt. Como a maior parte das pessoas que estavam ali, trabalhara lá.
– Eu disse na época – continuava –, quem apóia esta ação está enforcando-se, está atirando em si próprio. Mas não acreditaram. Achavam que tudo ia melhorar. Torpedearam até mesmo as ações do sindicato. Ilusão. Veja no que deu.
– Ele tem razão – bradou Kinsk um tanto turvo. – A questão são os índices. Lembram dos expurgos? Nunca recebemos aquele dinheiro. A justiça se arrasta até hoje entre marchas e contramarchas. Como pode o governo reconhecer a atualização de cinqüenta por cento dos índices para as indenizações e não fazer o mesmo sobre os salários que nos pagavam há quinze anos? E olhem que só reconheceram cinqüenta por cento – fazia questão de frisar, cuidando para que a bebida que trazia no copo não entornasse.
– Por que os novos compradores não nos pagaram ou não nos pagam agora? Se isso acontecesse, mesmo que em parcelas, todos teríamos dinheiro para receber durante o resto de nossas vidas. Lionel tem razão. Isso jamais deve ser esquecido. Essa campo de batalha jamais deve ser abandonado.
Célia já falara com a maior parte dos presentes. Acendera o quinto cigarro. Bebia, no entanto, pouco. E somente cerveja. Apesar de fazer questão de cumprimentar a todos num estado de constante alegria, não esquecia seu acompanhante. Fazia questão de se voltar para ele, sempre mostrando-se gentil. Procurava não deixá-lo isolado no local, já que ele estivera somente uma ou duas vezes ali em outras ocasiões e não conhecia pessoa alguma.
– Você já ouviu falar nas antigas usinas de Kempt, não? – perguntou Célia a ele.
– Claro. Quem não ouviu?
– Aqui há muitas pessoas daquele tempo. Praticamente todos ficaram sem emprego após a venda. Mas deixemos esses problemas de lado. Hoje não é dia de se falar nisso.
Sinalizou ao garçom que já não conseguia contentar a todos. Pedia que pegassem as bebidas junto ao balcão. Mas a de Célia., fazia questão de levar.
De repente alguém gritou:
– Vem aí a Juddy!
Todos se levantaram e puseram-se a cantar animadamente para a aniversariante.
A festa tomou maior vigor com a chegada de Juddy. Vários brindes foram feitos. Ouviam-se o tilintar de copos, taças e canecas. Um festival de beijos e abraços acontecia junto à aniversariante. O homem da pianola começou a entoar uma música que era do agrado de todos os presentes. O vozerio se fez maior na tentativa de acompanharem a canção.
O homem que viera com Célia sentia-se feliz por estar ali. Não esperara por aquela festa num final de domingo. Observava as pessoas, e embora silencioso, achava-as simpáticas. Quando a balbúrdia amainou e todos tentaram retomar a conversa que acontecia antes da chegada de Juddy, ele pode observar três homens que discutiam sobre um maço de folhas que um deles tinha às mãos.
– A poesia de Schrobel acabará se perdendo – dizia –, isso precisa ser publicado.
– Você já esteve com ele? – indagava após apanhar com um ar de satisfação um caneco de cerveja que jazia sobre o balcão. – Você já conversou com ele sobre isso?
– Não, apenas o conheço – respondeu o outro. Este era magro e usava cavanhaque.
– Tweeth já falou com ele diversas vezes – interferiu o terceiro. – Ele não dá importância. Disse que se a literatura o quiser que bata à sua porta.
Os três gargalharam.
– É engraçado – dizia o último –, mas a coisa é séria. Isso é muito bom, precisa ser preservado.
– Ele escreve como se estivesse brincando. É impressionante – refletiu em voz alta o que começara a falar.
– O perigo é que há inúmeras folhas soltas por toda a cidade. Amanhã ou depois, quando se quiser juntar tudo, vai ser difícil. Vai ser preciso comprovar a autoria – Tweeth redargüiu.
– Nosso velho complexo de cão menor e vagabundo. Um dia reconheceremos que não tivemos poeta melhor do que ele – essa voz foi a de um intruso que acabara de chegar e tomava um copo cheio de vodka. Todos o olharam admirados e se surpreenderam. Mas acabaram gostando da opinião.
– Aqui também se discute Schrobel! – exclamou admirado o acompanhante de Célia.
– Você o conhece? – ela indagou.
– Li alguma coisa dele, mas ainda não há livros. Folhas esparsas circulam por aí. Principalmente pelos bares do Centro Velho.
– Eu não o conheço pessoalmente – continuou Célia –, mas dizem que ele é intratável. E pior de tudo é que bebe demais e sempre está envolvido em confusão.
– Mas o que escreve é de primeira – o amigo retorquiu.
Um homem de seus sessenta e poucos anos andava de um em um e parecia oferecer alguma coisa. Até que alguém respondeu de maneira nada amistosa.:
– Você vem à festa e ainda quer vender essas bugigangas?
– Não são bugigangas, são jóias - rebatia, olhando nos olhos do interlocutor.
– Hoje não é dia de trabalho. É dia de festa, vê se não aborrece.
Ele fingiu que não escutou e continuou sua peregrinação. Ia de um em um. Não demonstrava incômodo com as palavras rudes que às vezes recebia.
Reed e Santon agora cantavam juntos, acompanhados pelo homem da pianola. Já tinham bebido em demasia, mas agüentavam o tranco. Nunca foram tão amigos. Estavam perfeitos até na voz, bastante afinada. A platéia apreciava e tentava cantar junto com eles.
O amigo de Célia olhou o relógio. Já era madrugada de segunda, e a hora ia adiantada. Fez menção de partir.
– Não, senhor, você não vai embora.
– Já estou muito cansado. Bebi demais – dizia ele.
– Por isso, mesmo. Vamos descansar em minha casa.
– Já é segunda. Início de semana... – insistia.
– E o que tem isso? – indagou Célia. – Por acaso alguém trabalha em Kempt? Lembre-se que as usinas foram vendidas. Estão fechadas. O aço vem da Ásia. É mais barato para o governo pagar trezentas coroas de seguro desemprego a cada um de nós.
Riram os dois e mais quem ouviu a piada, aliás, não era piada. Era verdade. Pediram mais uma dose. E agora serviam champanhe. Não iam perder essa oportunidade.