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sexta-feira, dezembro 20, 2013

A literatura que não deve nada a ninguém

Resenha de “Barba ensopada de sangue”, de Daniel Galera, Companhia das letras, 423 páginas.

Daniel Galera tornou-se um escritor respeitável nos últimos anos. Após três livros de muito boa repercussão (“Até o dia em que o cão morreu”, “Mãos de cavalo” e “Cordilheira”), o autor lançou, em 2012, “Barba ensopada de sangue”, romance extenso, algo incomum entre os autores contemporâneos. O livro é digno de ser lido não apenas pela história narrada, mas pelas questões que apresenta. Galera é um escritor auspicioso para a nossa literatura, porque se revela um autor maduro, que não se deixa levar pelas exigências de mercado.

O livro começa com uma espécie de prólogo onde um narrador em primeira pessoa fala sobre a morte de um tio que ele nunca conheceu pessoalmente e que viveu a maior parte da vida no litoral catarinense, em Garopaba. O narrador está na cidade com a família devido à morte desse tio. Portanto, desde o início, percebe-se que o personagem principal do romance já está morto. Esse fato incomoda um pouco, mas não é tão relevante para o desenrolar da história. Tudo não passa de um intrincado jogo em que Galera nos mostra as entranhas da tessitura de um romance. Após o breve prólogo, a narrativa se apresenta em terceira pessoa. É o momento, então, em que passamos a conhecer a vida desse personagem, que não é nenhum escritor, nem mesmo um intelectual, mas um homem que treina atletas para as mais diversas competições, sobretudo as de triatlo.

Na literatura brasileira de hoje, é grande o número de romances que trazem em primeiro plano a vida de um escritor, ou mesmo de alguém importante no mundo das ideias. Não é aqui o caso. Embora um personagem adjacente seja escritor, o fato é apenas mencionado, trata-se do pai do personagem que nos fala no prólogo. O romance desenvolve-se em torno do homem que vê a atividade física como meio de lhe garantir a sobrevivência. Ele não só prepara atletas, mas também dá aulas de natação, e nas temporadas de verão do litoral catarinense ainda trabalha como salva-vidas.

O primeiro capítulo apresenta o motivo de todo o restante do livro. Num sítio em Viamão, no Rio Grande do Sul, pai e filho conversam. O assunto é sobre o avô do rapaz, que desapareceu numa praia do litoral de Santa Catarina. O pai toca em fatos que jamais revelou a pessoa alguma da família. O filho, que o está visitando, escuta e passa ter interesse pela história. Mas no fim deste primeiro capítulo, quem se surpreende é o próprio filho (e também o leitor!). O pai lhe pede que dê um fim à cadela que já o acompanha durante mais de quinze anos, porque, no dia seguinte, vai-se matar.

Contando assim, este início de romance soa meio absurdo, mas a história transcorrerá dentro da mais perfeita coerência e se mostrará muito próxima a uma narrativa policial em grande estilo.

No momento seguinte o filho chega a Garopaba, a mesma cidade em que viveu e desapareceu o avô, e ali se instala. Ele tem a intenção de desvendar o mistério.

Dentre as questões que o livro apresenta, pode-se ressaltar que a literatura para ser boa não precisa querer provar nenhuma grande ideia, ou mesmo filosofia. Outro ponto, também digno de nota, é sobre as relações familiares, ponto turvo no relacionamento humano.

O romance de Daniel Galera leva o leitor a paisagens muito bonitas e a acidentes da natureza dignos de nota. É muito boa a criação de tipos e também de personagens complexas, como a ex-mulher do treinador de atletas, que pouco aparece na narrativa mas tem grande importância. Num mundo pleno de contradições, a amizade e o companheirismo são temas relevantes no enredo.

Enfim, trata-se de uma história bem tramada, com todos os componentes necessários para mostrar que a boa literatura não precisa de firulas, e que as pessoas comuns podem ser ótimas personagens de romance. O mais interessante em tudo isso é que o autor conduz a narrativa sempre de modo a surpreender o leitor, não fazendo concessão alguma.

segunda-feira, dezembro 28, 2009

Clique no link abaixo para ter acesso à tese de doutorado defendida por mim, com sucesso, em 4 de dezembro de 2009, orientada por Antonio Carlos Secchin, tendo como integrantes da banca: Flávia Vieira da Silva do Amparo; Godofredo de Oliveira Neto; José Luís Jobim; Sérgio Fuzeira Martagão Gesteira.
http://www.letras.ufrj.br/posverna/doutorado/GamalHJ.pdf

terça-feira, novembro 04, 2008

O flâneur de Walter Benjamin pelas ruas de Copacabana: João Antônio
João Antônio retrata em seus contos o homem comum, o homem do povo, aquele sobre quem pesa o maior fardo. Na história da literatura, a presença do homem do povo como protagonista é coisa recente. As artes de modo geral e, no específico, a literatura sempre comportaram apenas heróis oriundos de casas reais, e de preferência do sexo masculino. Seus feitos eram considerados grandiosos, mas, se eram assim classificados, o fato não se dava porque o homem comum seria incapaz de realizá-los, mas porque os heróis descendiam de “dinastias” de longa estirpe. As ações levadas a cabo por eles não deixavam de render fama para si, mas, ao mesmo tempo, conduziam os que lhe estavam próximos a uma certa distância do perigo.
Podemos exemplificar esse tipo de herói voltando à Antigüidade Clássica. Ali, um Aquiles ou um Ulisses aparecem com coragem e força descomunais, capazes de levar avante ações heróicas. Por que essas empreitadas só eram possíveis a eles? Talvez devido à origem desses homens. Nesse tempo, na representação artística, quem os pratica é alguém de origem nobre.
Durante muitos séculos, o herói foi, de modo geral, alguém dessa espécie, um homem de origem nobre, um rei, um príncipe, ou alguém ligado à casa real. Na modernidade, esse tipo de herói entra em decadência. Não é difícil saber o motivo. A burguesia inicialmente tem o poder econômico e, algum tempo depois, o poder político. Como continuar colocando alguém da nobreza no papel de herói se os nobres estavam em derrocada?
A Antigüidade Clássica, então, jazia enevoada num passado distante e idealizado; a nobreza do momento, em crise quase permanente.
Num primeiro momento em que se prenuncia a modernidade, logo após o Renascimento, já se antevê as engrenagens assumindo o papel que caberia ao herói. O mundo começa a mover-se em direção à técnica; quem a domina tem predominância sobre os outros. Embora algumas realezas se beneficiem da expansão marítima, logo se vê que seus domínios não durarão. Com a expansão comercial, lucra a burguesia, mestra na arte do comércio.
No final dos setecentos, levada a cabo a Primeira Revolução Industrial, já, em definitivo não há lugar para o herói. Por isso o vemos representado a princípio como um herói do passado. No presente, a quem caberá esse papel? Quem teria a força de um Hércules, a astúcia de um Ulisses, ou a habilidade de Aquiles?
Talvez tenha chegado a hora do homem do povo. Apesar da vida medíocre, vida de exploração a que é submetido, sem mesmo tempo para o descanso e com a saúde sempre debilitada, ele é o único que tem a força para levar o mundo adiante, mesmo que de forma não consciente, mesmo que aderindo ou não, já no final do século dezenove, ao marxismo.
Walter Benjamin observa essa questão e vai estudar esse tipo de herói no texto “A modernidade”, onde aborda a obra de Charles Baudelaire. Vejamos alguns recortes do que diz o filósofo a respeito desse herói:
O herói é o verdadeiro objeto da modernidade. Isso significa que, para viver a modernidade, é preciso uma constituição heróica. (p.73)
Baudelaire [...] reconhece no proletário o lutador escravizado.(segundo Baudelaire, apud Benjamin) é impossível não ficar emocionado com o espetáculo dessa multidão doentia, que traga a poeira das fábricas, inspira partículas de algodão, que se deixa penetrar pelo alvaiade, pelo mercúrio e todos os venenos utilizados na fabricação de obras primas. (p.73)
Aquilo que o trabalhador assalariado executa no labor diário não é nada menos do que, na Antigüidade, trazia glória e aplauso ao gladiador. (p. 74)
O herói é o verdadeiro objeto da modernidade. Isso significa que para viver a modernidade, é preciso ter constituição heróica. (p. 73)
Os poetas encontram o lixo da sociedade nas ruas e no próprio lixo o seu assunto heróico. (p. 78)
Tais citações nos bastam para que possamos estudar um pequeno aspecto da obra de João Antônio. Escolhemos para esse fim o livro em Ô Copacabana!, sobretudo o trecho em que privilegia a então galeria Alaska, páginas 39 a 50.
O bairro, um dos mais característicos do Rio, é retratado pelo autor de Malagueta, Perus e Bacanaço como um bairro onde se mistura todo tipo de gente. A galeria, citada no conto, até os anos de 1970 era um conglomerado de comércio a varejo, bares e boates. O freqüentador do local de modo geral era o homem ou a mulher do povo, ávido por algum tipo de prazer ou divertimento. Dentre esses predominava um número muito grande de malandros, vadios, pequenos aproveitadores, homossexuais masculinos e femininos etc.
Eis como João Antônio caracteriza o bairro, a galeria e as personagens:
[...] esta hora cinza, chumbo carregado, hora parada, neutra, a que os boêmios, os pederastas, os artistas da noite, as mulheres e seus cáftens, as curriolas da galeria chamam de rabo da manhã.
Sete da noite, quando Copacabana troca de mão, num golpe, na muda da turma de garçãos, barbeiros, balconistas, motoristas de táxi, botequineiros, e o resto dos serviçais, a luz elétrica acende o olho diferente, vesgo da noite na galeria.
A moçada sai da Zona Norte ou dos subúrbios lá longe, toma suas luzes como modelo de vanguarda no Rio. No bairro se sabe vestir bem, comer bem, beber o melhor. E os meninos, cabeça cheia, começam a descer dos ônibus xexelentos, vindos do outro lado da cidade, o bravo e esquecido, onde moram três quartos das gentes do Rio de Janeiro. Sem praia e sem recreio. A meninada principia na galeria Alaska, certa de que com o físico, juventude, gingas, bossa, conseguirá o melhor em mulheres, boates, facilitações e exuberância.
O trecho começa com o amanhecer no bairro, o conto descreve os primeiros empregados que chegam dos subúrbios distantes, o caminhão com o entregador de leite, os bares iniciando o expediente, as lojas se abrindo, o acordar dos moradores e também os vagabundos que vivem do esforço alheio. O autor observa a vida dos trabalhadores da galeria: zeladores, seguranças, manicuras, copeiros, barbeiros, vendedores ambulantes etc, como também a dos moradores do prédio acima da galeria, apelidado de balança; estas pessoas fazem o papel de classe média, mas na verdade vivem em dificuldades, cuidando para que a máscara da aparência não descole. A vida marginal não é desprezada. Seres humanos emigrados de bairros distantes, que viverão às custas de alguém, muitas vezes mesmo de modo humilhante, apenas para livrar-se do modelo de vida provinciano e sem perspectiva da Zona Norte, ou da Baixada Fluminense.
Todos esses personagens são tratados senão com simpatia, ao menos como seres capazes de direcionar a própria existência. João Antônio não os julga. Apesar de rotulá-los, não os condena dentro do moralismo predominante, mesmo no momento em que o esforço de cada um deles na luta pela sobrevivência redunde em fracasso.
O caráter heróico desse flâneur da pós-modernidade está em demonstrar força suficiente para o que der e vier, a troco de que consiga ascender socialmente, ou ao menos viver de modo melhor do que vivia outrora. Copacabana está mais próxima de uma Nova York, uma Londres, ou uma Paris, do que da localidade distante de onde provém esse herói, que não sucumbe por antecipação.
O homem comum anda pelo bairro, observa as mulheres, olha as vitrinas, procura oportunidades. Alguns se agarram ao pequeno emprego, outros biscateiam para, durante a noite, escapar em uma boemia que há de recompensar o esforço. Tudo em troca de uma vida que lhes afigura senão heróica, ao menos uma vida de Zona Sul, local badalado, centro de poder econômico e de emancipação social, ao menos em teoria. O simples cidadão sabe construir abstrações.
João Antônio poderia ser esse flâneur que Benjamin retrata na modernidade baudeleriana. Não estaria deslocado no tempo nem no espaço, porque observa a decadência de um sistema e também constata que, na verdade, o lugar do herói continua vago; e se por acaso em algum momento o homem do povo o preenche é através das mãos do artista que o transforma em ser que resiste, ao menos nessa arte de representação chamada literatura.
Referências bibliográficas:
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas III – Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. Tradução de José Carlos Martins Barbosa e Hemerson Alves Baptista. São Paulo: Brasiliense, 1994.
ANTÔNIO, João. Ô Copacabana! Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.

domingo, março 16, 2008

A alegoria e o símbolo em duas narrativas de Murilo Rubião

A literatura, de modo geral, sempre se mostrou resistente ou avessa a qualquer tipo de definição. É comum nos depararmos com as seguintes questões: o que é exatamente o literário?; o que faz um texto tornar-se literatura?; será suficiente a definição de literatura como a língua trabalhada esteticamente, como queriam os formalistas russos? Durante a história dessa arte feita de palavras, a captura e definição de sua essência enveredaram por caminhos sinuosos, chegando-se muitas vezes ao seu conceito pelo lado negativo. Tornava-se literatura o texto que não se enquadrava nas classificações referenciais. Ainda não se coloca aqui a questão do valor, a questão do que é boa ou má literatura, ou mesmo quais as obras dignas de serem nomeadas literárias. O juízo de valor também tem variado através dos tempos e ainda hoje é um tanto incerto. Como exemplo nós, professores, às vezes enfrentamos com certo temor o seguinte dilema: quais das obras recentes devem ser trazidas para a apreciação e estudo na universidade e, de modo geral, nas salas de aula? Tememos equívocos quanto às escolhas. Às vezes, em meio ao clamor recente do público ou da crítica ante um novo autor, preferimos esperar, aguardamos o passar do tempo para que nos sirva como ponteiro a ajuizar o valor do novo.

As ramificações do literário ainda assim se mostrariam mais problemáticas. Se já era difícil, arriscada e fugidia a definição do que é ou não literatura, como adentrar o terreno específico? A literatura chamada de realismo mágico, realismo fantástico, ou realismo irrealista aqueceria o caldo das discussões.

Quando se fala em ficção, todo aquele que tenta encontrar sentido nas páginas que percorre, depara-se com um momento de hesitação. Vejamos, exemplifiquemos dentro da nossa própria literatura; atentemos o olhar a um livro relativamente fácil como “Memórias de um sargento de milícias”, de Manuel Antonio de Almeida. Logo no início da narrativa, ao percebermos o nascimento marginal de Leonardo (o filho) e seu conseqüente destino “irregular”, chegamos a “torcer” para que ele se volte ao caminho que entendemos como certo; na verdade o queremos bem sucedido, como esperamos aos heróis, sendo estes grandiosos ou pequenos (às vezes pode parecer paradoxal desejar a alguém diminuto a posição de herói – preconceitos que o classicismo nos legou). Mas o momento de desequilíbrio surge ao percebermos que o personagem não se enquadra no modelo de herói que nos ensinaram. Então, atirado ao destino traçado pelas ruas e pelos vagabundos locais, Leonardo se perde e nos faz também perder a esperança de vê-lo um dia bem sucedido. Há na obra o momento do desvio, da hesitação, o instante que podemos nomear de conflito. No final, este irá se resolver (ainda que de modo precário), mas durante boa parte da narrativa, somos espectadores vãos seguindo o herói (ou anti-herói) pelos caminhos tortuosos que a narrativa instaurou.

“Memórias de um sargento de milícias” e seu personagem principal nada ou pouco tem a ver com a discussão que desejamos estabelecer aqui a respeito do gênero fantástico ou denominado realismo irrealista. Mas, através dessa linha de raciocínio, não se pode classificar o realismo irrealista como aquele em que há apenas um momento de hesitação, um desvio. Pois a literatura é composta de desvios. O que se poderia dizer a respeito dos realismos irrealistas é que estes se instauram a partir da quebra de uma aparente verossimilhança “com o real”; um momento em que não existe uma causalidade explicável e aparente ao que nos é apresentado pela narrativa (TODOROV, 1975, p.31)[1]. Classificação também um tanto arriscada, porque aquilo que denominamos real é construído pelas subjetividades que o habitam.

Devido a esse terreno pouco seguro, desejamos trilhar outro, que talvez seja um tanto mais escorregadio. Tentaremos percorrer algumas páginas de Murilo Rubião – autor que optou por escrever toda a sua obra nesse viés discursivo propenso a ludibriar qualquer tipo de verossimilhança – por uma linha de leitura em que se jogue por um lado com a alegoria e por outro com o símbolo.

O texto sobre o qual nos tentaremos basear para desenvolver esse trabalho é “O segredo de Golem”, um dos capítulos que compõe o interessante livro O livro por vir, de Maurice Blanchot.


“O homem do boné cinzento”[2] se inicia com uma acusação feita pelo narrador. Nesse momento, já se estabelece de antemão uma ruptura na narrativa, apesar de ela mal ter começado.

Numa narrativa convencional, a normalidade é quebrada por algum acontecimento, o que fará um dos personagens – possivelmente o protagonista – ter que providenciar soluções para que ela seja restabelecida. Talvez um dos componentes do literário, no caso do gênero narrativo, seja o estabelecimento dessa complicação e sua respectiva solução, fato que levará o enredo adiante.

O que talvez acentue a originalidade dos contos de Murilo Rubião, antes mesmo do conteúdo surpreendente de suas histórias, seja esse início abrupto, surpreendendo o leitor desde a primeira frase, a qual não deixa de comportar um forte fator desestabilizante. Apenas no parágrafo seguinte nos é dada a situação. Tratava-se de um trecho de rua tranqüilo “o trecho mais sossegado da cidade” (p.11), até que surge um homem enigmático que, segundo esse narrador em primeira pessoa, desencadeará uma série de acontecimentos que mudará totalmente a vida não só desse narrador, mas também e, sobretudo, de seu próprio irmão.

A oposição – vida tranqüila versus vida mergulhada no caos – vai se instalar na narrativa de forma irremediável. Ainda no terceiro parágrafo da página 11, é-nos mostrado o movimento de caminhões que trazem a mudança do novo morador ao casarão que havia tempos estava abandonado; na verdade, o prédio de um antigo hotel. O movimento dos veículos indicia o antagonismo que vai pôr abaixo a paz que existia anteriormente. Mais uma vez se acentuam os conflitos: uma construção que jazia fechada, sem movimento algum, se contrastando com a idéia de que se tem de um hotel: um estabelecimento movimentado, pleno de hóspedes que se deslocam constantemente; aqui, o edifício se encontra abandonado. O ambiente calmo que resiste em determinadas localidades é rompido e nada mais será como antes. Os volumes do forasteiro como um tumor que surge do inesperado vão “empilhados na vasta varanda do edifício” (p. 11).

Até aqui temos um culpado, uma ex-rua tranqüila, um homem estranho e sozinho que se estabelece no local.
A partir do quarto parágrafo, surge segundo o narrador “Meu irmão Artur, sempre ao sabor de exagerada sensibilidade” (p.11). Esse irmão, na verdade, passa a ser o “ator principal” do espetáculo. É ele que vai observar atentamente o homem que chega para habitar o casarão, é ele que a princípio abastecerá o narrador sobre o que acontece com o novo morador, é ele que antecipa os acontecimentos ao afirmar que “as casas começavam a tremer e apontava-me o céu, onde se revezavam o branco e o cinzento” (p. 11), imagem antecipatória da cor do boné usado pelo futuro morador. É importante observar que o narrador qualifica o irmão de pessoa de exagerada sensibilidade, fato que já nos pode adiantar algum desequilíbrio vivido por este, que vai ser na verdade o interlocutor de tudo que acontecerá na narrativa.

Os contos de Murilo Rubião, como outros analistas já observaram, não comportam explicações que transitam numa lógica realista, em que os fatos são esclarecidos e resolvidos no término do relato. Antes disso, apesar de os personagens se mostrarem até mesmo suscetíveis a determinados desequilíbrios, sujeitos a algumas enfermidades, eles serão atropelados pelos acontecimentos, porque não se poderão dar explicações lógicas ou coerentes a episódios como à metamorfose a que será submetido o novo morador e à conseqüente também transformação que Artur sofrerá. Mas não antecipemos os fatos.

Na página 12, o narrador nos apresenta algumas características de si próprio: revela-se como alguém que possui uma “mania de contradição” e diz que “Daquela vez, a mania de contradição me arrastara a um erro grosseiro” (p. 12). Murilo Rubião cria para esse conto um narrador cético, irritadiço com o próprio irmão, predisposto a não acreditar em suas prédicas e a não lhe seguir os passos. Mas o desenrolar da história vai mostrando-nos alguém que pouco a pouco se deixa levar por esse “outro”, que é seu irmão Artur.

Uma observação interessante, que se pode fazer a partir dessa narrativa, é a respeito da formação da personalidade, ou mesmo características dela. O século XX foi um período em que as teorias psicanalistas se impuseram; inicialmente através de Freud, depois, por meio de seus seguidores, entre eles Jacques Lacan. Sabemos que este autor desenvolve um estudo peculiar sobre a formação do “Eu”, diferenciando-o do que chama de sujeito. Para Lacan, a constituição da personalidade – ou do “Eu” – é semelhante à psicose paranóica; o autor chega a dizer que uma e outra são a mesma coisa. Explica que a personalidade se forma através do processo de alienação, isto é, a criança, até em torno dos dois anos de idade, se espelha na imagem que pode ser a sua ou de um "outro". Tal fenômeno, na linguagem lacaniana, se denominaria estádio do espelho. Teríamos o processo de formação do indivíduo baseado em alguma coisa que se encontra fora dele; a singularidade construída a partir de um processo que vem de um “outro”, na verdade um processo de alienação (SAFATLE, Unesp, 2006).

No conto de Rubião, através de Artur, podemos perceber esse fenômeno. Em momento algum há qualquer preocupação dele com o próprio “Eu”, ou com a própria vida, ou a vida do irmão. Ele, indiferente a si, estará sempre preocupado com o “outro”: Anatólio, o homem do boné cinzento. A vida do personagem é o objetivo da vida de Artur, que passa a vigiá-lo constante e continuamente, chegando ao termo de contaminar o irmão com seu modo de vida, capturado in extremis pela imagem do vizinho. Teríamos, assim, dois personagens que em momento algum se situam como sujeitos, mas vão a reboque de um “outro”, mergulhando num processo paranóico. Quando o personagem se torna uma bolinha negra, no final, a ponto de ser recolhido pelo irmão, não é difícil perceber a nulidade do sujeito, sujeito que entra num processo de reificação. A leitura psicanalítica desse conto põe em destaque a questão premente de todo o século XX, que é a da fragmentação, alienação e anulação do indivíduo, questões caras não só à psicanálise, mas também às vanguardas européias.

O narrador em primeira pessoa é uma boa opção utilizada pelo autor, porque acentua a característica de unilateralidade da narrativa. Além de hiperbolizar o contágio que ele sofre através do irmão, mostra que a vizinhança também não passa imune ao acompanhar o dia-a-dia do novo morador: “Os seus hábitos estranhos deixavam perplexos os moradores da rua” (p. 12).

O terceiro parágrafo da página 12 apresenta Artur já totalmente transtornado, tendo o novo vizinho se tornado alvo de sua loucura: “A sua excitação crescia à medida que se aproximava o momento de defrontar-se com o solitário inquilino do prédio vizinho” (p. 12). O que se pode ver como enigmático ao mesmo tempo se mostra revelador. É o que acontece quando reparamos o personagem a alertar o irmão (o narrador): “– Olha, Roderico, ele está mais magro do que ontem!” (p. 12) Ao observá-lo continuamente, Artur percebe que pouco a pouco o vizinho vai desaparecendo. Esse desaparecimento, no entanto, não seria também um reflexo da gradativa extinção da própria personalidade do observador? O viver tendo como motivo apenas a observação de um “outro”, tendo sido deixado de lado o próprio “eu”, na verdade revela que o personagem se tornou o “outro”, passando a acompanhá-lo não só em todos os passos, mas também em todas as deformações e metamorfoses.

Roderico ainda se agarra ao que tem de amor a si, ou à própria personalidade: “[...] dizia que não me aborrecesse, nem se ocupasse tanto com a vida dos outros” (p. 12)

No segmento seguinte, há o aparecimento de uma mulher, também enigmática. É vista apenas duas vezes: ao chegar e ao partir.

Na obra de Murilo Rubião, a presença e a companhia da mulher – quando simboliza o amor ou mesmo a tentativa de realização dele – são fugazes, não correspondendo aos desejos do outro; a relação normalmente não se concretiza e o destino do homem é viver mergulhado em extrema solidão. Ela acaba por se tornar objeto de sofrimento e de incompletude. Parece que, para o autor de “O homem do boné cinzento”, a tentativa de diálogo entre os seres humanos – sendo esses diálogos de qualquer espécie – não é viável. A concretização da relação amorosa, o que se poderia classificar como tentativa suprema de entendimento e correspondência num processo dialógico, sempre se corrói e tudo o que acontece é que há sempre uma partida após cada momento de chegada.

É o que se dá nesse trecho do conto. Uma mulher bonita chega, o que contrasta com a afirmação inicial de que Anatólio é um celibatário; aparentemente se pensa que ela lhe vai fazer companhia. A personagem, entretanto, desaparece por completo dentro do próprio casarão (seria outro indício do desaparecimento futuro de Anatólio?), para surgir apenas três meses depois e partir a pé e sozinha. Talvez aqui, tivéssemos mais uma vez a frustração de todo e qualquer tipo de relacionamento. O ser humano estaria destinado à solidão e ao desaparecimento.

No penúltimo trecho do conto, após a partida da mulher, nos deparamos com o narrador já totalmente transtornado pela observação do vizinho. Como mencionamos no início desse estudo, agora é ele que se vê numa ânsia semelhante à de Artur. A presença desse “outro” assaltou-lhe o espírito, e o personagem não tem outra preocupação: “Eu não tirava os olhos do homem. Sua magreza me fascinava. [...] Anatólio tornara-se minha única preocupação.” (p. 14)

A seguir, é o momento da transparência. O homem observado além de emagrecer continuamente torna-se transparente a ponto de os dois observadores poderem vislumbrar o que se encontra através dele. No mundo alegórico de Murilo Rubião, o que significaria essa invisibilidade? Mesmo que tentemos alguma resposta, adentraremos a terreno pantanoso, de difícil caminhada. O que se pode insinuar, mesmo que timidamente, seria talvez que tal fato expressasse a insignificância da condição humana, fragilidade e fugacidade da vida, vida essa capaz de se manter por um fio como também possível de desaparecer, deixando como vestígio apenas os objetos sem função aparente.

No último trecho da narrativa, os dois irmãos testemunham o desaparecimento de Anatólio. Tal acontecimento, esperado por ambos os espectadores, se dará de forma apoteótica, em meio a espasmos, jato de fogo “que varreu a rua” (p. 15), vômito e um incêndio. Não basta a Murilo Rubião fazer seu personagem simplesmente desaparecer, é necessário como preparação para esse desaparecimento uma espécie de show; talvez isso represente a culminância da insignificante e enigmática passagem do homem sobre a face da Terra. Mas eis que ainda nos resta um sobressalto: Artur também sofre uma assustadora metamorfose: sob o olhar perplexo do irmão, transforma-se em uma bolinha negra.

A literatura que contempla o absurdo comporta algum tipo de significação, apresentando questões em forma de símbolos ou alegorias, já que não seria possível uma literatura só de significantes. Quando procuramos nela, porém, a decifração dessa simbologia, sentimos o terreno não tão seguro. Vai-se para um lado, escorrega-se para o outro. Isso sem querer diminuir as qualidades do autor, muito pelo contrário, porque é essa ambigüidade proposital que dá ímpeto a tal movimentação.

Talvez, uma das possibilidades de leitura desse conto, além da questão da formação da personalidade – como tratamos acima –, seja a falta de sentido da própria vida, onde os seres humanos são extremamente sós, perdendo-se qualquer possibilidade de diálogo, extinguindo-se todos os meios de comunicação ou relação entre os homens.

O mais interessante, porém, em lugar de buscar uma significação, uma interpretação da diegese, mesmo apontando-a como alegórica, seria constatar a impossibilidade de interpretá-la ou de nomeá-la.

Maurice Blanchot em seu Livro por vir[3], no capítulo “O segredo do Golem”, desenvolve um ensaio sobre o símbolo, em que o situa e distingue as diferenças dele em relação à alegoria[4]. Começa o autor “A palavra ‘símbolo’ é um vocábulo venerável na história das literaturas” (p. 125). Adiante continua: “O pensamento é simbólico. A existência mais tacanha vive de símbolos e lhe dá vida.” (p. 125) No segundo parágrafo desse texto, Blanchot já diz aonde quer chegar ao comentar o que poderia dizer um autor quando dizemos que sua obra é simbólica:

“pode ser que ele [o autor] aí se reconheça e se deixe lisonjear por esse belo vocábulo. Sim, é um símbolo. Mas, nele, algo resiste, protesta e secretamente afirma: não é uma maneira simbólica de dizer, era sempre real.” (p.125)

Blanchot investe no terreno de que o símbolo tem por meta ele mesmo, não tendo qualquer pretensão que não seja o real, isto é, o que é apresentado na obra; mas, ao mesmo tempo, o que se encontra muito longe dela. A seguir desenvolve seu raciocínio sobre a alegoria, com o intuito de diferenciá-la do símbolo.

“A alegoria não é simples. Se um velho com uma foice significa o tempo, e uma mulher sobre uma roda significa a fortuna, a relação alegórica não se esgota nessa única significação. A foice, a roda, o velho, a mulher, cada detalhe, cada obra em que a alegoria apareceu, e a imensa história que aí se dissimula, e sobretudo o modo de expressão figurado, estendem a significação a uma rede infinita de correspondências. [...] A alegoria desenvolve até muito longe a vibração emaranhada de seus círculos, mas sem mudar de nível, segundo uma riqueza que podemos classificar de horizontal: ela se mantém em seus limites de expressão medida, representando, por algo que se exprime ou se figura, outra coisa que poderia ser expressa, também diretamente.” (p. 126)

A seguir, o autor desenvolve sua própria concepção a respeito do símbolo:

“O símbolo tem pretensões muito diferentes. De imediato ele espera saltar para fora da linguagem, da linguagem sob todas as suas formas. O que ele visa não é, de modo algum, exprimível, o que ele dá a ver e a entender não é suscetível de nenhum entendimento direto, nem mesmo de qualquer tipo de entendimento. O plano de onde ele nos faz partir é apenas um trampolim para nos elevar, para nos precipitar, em direção a uma região outra à qual falta todo o acesso.” (p. 126)

Esse acesso que, muitas vezes, não conseguimos encontrar na leitura de Murilo Rubião. Seriam as epígrafes um acesso ou elas estariam presentes para nos desviar ainda mais de qualquer tipo de significação? Como pudemos discutir nas aulas, durante o curso[5], a palavra bíblica já é portadora de uma imensa carga de mistério. Dentro das próprias escrituras, não há consenso sobre o que significa. As expressões bíblicas e suas respectivas significações acabam por se tornar questão de crença. Trazidas para o universo da literatura, tais expressões não deixariam de se tornar ainda mais enigmáticas. Outro ponto: as constantes metamorfoses a que são submetidos os personagens rubianos. Seria um tanto simplório afirmar de forma absoluta o que significa o apoteótico desaparecimento de Anatólio, como que num festim, entre fogos de artifícios; outra explicação temerosa seria assegurar sentido ao acompanhamento que Artur lhe proporciona, também desaparecendo e se transformando em uma pequena bolinha negra. Seria por demais diminuir a narrativa com possibilidades de leitura que a conduzisse de volta ao universo lógico e racional a que estamos acostumados e condicionados. O símbolo com todo o seu grau de arbitrariedade se espraiaria como a categoria mais reluzente em meio ao opaco balburdio.

Com a alegoria, ainda assim estaríamos procurando retirar véus que nos conduziriam a algum tipo de esclarecimento. Esta figura, como mencionamos através das palavras de Blanchot, é um recurso da linguagem que visa o ato de representar; por outras palavras: a alegoria nada mais é do que um tipo de linguagem figurada.

O conto que acabamos de analisar, dado a seu caráter ambíguo, enigmático, de transcurso e final arbitrários, contrafeito a todas as regras de verossimilhança, teria como bom termo a classificação de simbólico. Por quê? Porque o símbolo tem a arbitrariedade como característica e em conseqüência não tem o dever de ser decifrado, como acontece à metáfora, ou à alegoria. A decifração do símbolo estaria mais próxima à crença, ou à paixão (Blanchot, 2005, p. 128); ele apenas poderá significar alguma coisa por convenção, tal como o vocábulo, ou melhor, como o signo lingüístico.

Como já estudamos a constituição da semiose literária e a classificamos como um sistema lingüístico de significação em segundo grau, o símbolo transitaria num grau de arbítrio ainda mais avançado. Teríamos aqui de lidar com alguma coisa incômoda, algo de decifração quase impossível: grupo de palavras organizado como texto literário que está elevado à potencialidade máxima de arbítrio. Quando falamos em literatura do absurdo, ou realismo irrealista, não seria avançar demais ao estendermos em mais um grau todo esse arbítrio. Assim, a literatura a princípio não escaparia de sua característica interna, tendo como referente o real instaurado por ela mesma mas, para logo depois, variar de tom dentro da sintaxe não estabelecida pelo autor, mas pelo leitor, que com toda sua capacidade de crença e paixão, nomeando e convencionando símbolos (que escorregam quando beiram a esterilidade) trafegaria no itinerário dessa intensa aventura simbólica.

Para estender a questão simbólica e sua conseqüente classificação como algo sujeito a crenças e convenções, podemos dar como exemplo o caráter simbólico e arbitrário dos idiomas, ou mesmo de qualquer outro tipo de linguagem. É consenso entre os especialistas da linguagem o caráter arbitrário do signo lingüístico, o aspecto simbólico de toda e qualquer linguagem, sendo o ato de nomear fruto de pura convenção.


Outro conto de Rubião, “Marina, a intangível”[6], também é digno de nota à hipótese da aventura do símbolo.

Essa narrativa, também em primeira pessoa, apresenta-nos um narrador atormentado, que procura por socorro. Alguém que está na mais absoluta solidão, no mais profundo estado de desamparo, não encontrando saída nem mesmo na bíblia, crente que ele demonstra ser. Em determinado momento, chega a afastar o livro sagrado de sua frente. Após perceber que algo está para acontecer, esse personagem, ainda obscuro para nós, encerra o pequeno parágrafo inicial com a frase enigmática: “Certamente seria a vinda de Marina”.

Essa espera por alguém que possivelmente emanará alguma luz e levará o personagem ao estado oposto àquele sob o qual jaz, juntamente com a presença do livro sagrado revelam as características religiosas do episódio, que ainda nos oferece de acréscimo a vinda de Marina como a chegada de um messias, de alguém que traria algum tipo de revelação.

Um clima noturno se instala em contraste à expectativa de luz que o personagem aguarda.

É interessante observar, já que aqui tratamos do símbolo, que é a religião a portadora talvez da maior parte deles. Veja-se o livro sagrado, veja-se essa Marina que pouco a pouco, vai se mostrar na figura de uma santa, veja-se a iconografia cristã nos objetos ligados ao culto dela. Ao atingirmos o clímax da narrativa, daremos conta de que toda essa simbologia se desloca a outro possível símbolo, a poesia; que, da mesma forma, vai apresentar-se problemática, ambígua, escorregadia; visto que nem escrita vai se dar.

Percorramos o texto, no entanto, como num longo e descansado passeio, onde seja possível ora caminhar, ora parar para admirar uma bela paisagem, ora bebericar um pouco de água fresca, para que, refrigerados, possamos seguir em frente.

O conto elenca outros elementos religiosos como a referência à capela dos capuchinhos e a uma oração, de que o narrador se utiliza como que para “reprimir a angústia” (p. 25).

O elemento primeiro que desestabiliza a narrativa arremessando-a ao árido terreno do realismo irrealista é o momento em que esse personagem que nos conta a história diz a respeito das “duas pancadas longas e pesadas” que seriam de um relógio da capela: “Sem me impressionar com o fato de a capela não possuir relógio [...]” (p. 25). Observamos algo que se anuncia, mas sem a presença de seu corresponde físico; há o som das duas pancadas, mas o que soa? Temos o anúncio de algo que está por vir? O que, na verdade, significa o soar de um relógio inexistente? Ainda é cedo para se ter uma resposta. Se é que a teremos. Ao mesmo tempo percebe-se o espaço em que o personagem se encontra e o que faz. Trabalha numa redação de jornal e permanece sozinho no plantão da noite.

Nesse momento, a narrativa já nos apresenta algo interessante, que contrasta ao elemento noturno em que está encerrada: as folhas brancas de papel. A seguir, há a revelação da esterilidade desse autor, cronista noturno de um jornal, alguém que não consegue criar, não consegue escrever o que realmente deseja, isto é, não consegue simbolizar. Tudo que produz são “poucas linhas desconexas” (p. 26)

Daí em diante, todo o conto se forma através da impossibilidade desse homem escrever uma história, ou qualquer matéria que seja, vide as folhas amontoando-se no cesto. Ele chega a se desesperar: “Para vencer a esterilidade, arremeti-me sobre o papel, disposto a escrever uma história, mesmo que fosse a mais caótica e absurda” (p. 26) Num processo que diz de esterilidade, se considerarmos esse narrador o autor do texto, veremos que mesmo assim esse texto se vai construindo. A escritura emergente é, portanto, fruto da não-história, ou seja, da própria impossibilidade de escrevê-la (ou de simbolizá-la). Mas a narrativa se vai construindo e avança. A literatura, aqui, torna-se processo, ou seja, um texto metaliterário, fala de si mesma, de seus próprios limites e de suas impossibilidades.

Voltando à questão do que escrever, o personagem retorna à bíblia, onde diz ter encontrado a solução:

“Poucas páginas havia lido e descobri o assunto procurado. Iria falar do mistério de Marina, a Intangível, também conhecida por Maria da Conceição.” (p. 27) Sua alegria, no entanto, dura pouco e o que ele acreditava fácil lhe acaba escapando. Surge então um desconhecido, que diz o motivo de estar ali: “– Recebi o seu recado, José Ambrósio, aqui estou.” (p. 28)

A introdução desse novo personagem vai trazer-lhe esperança. De início, recusa a presença e a ajuda do desconhecido, mas, adiante, acaba cedendo. Suspeitamos que esse narrador tenha enlouquecido, ante o que nos revela o recém-chegado, que resiste às primeiras negativas quanto aos versos encomendados pelo próprio jornalista: “– Encomendou-me sim. Talvez não se recorde porque o pedido que me fez é anterior à sua doença.” (p. 28)

A seguir, sentimos a recusa da criação literária e da própria representação simbólica quando ouvimos mais uma vez a voz do narrador: “Morra a poesia, morram os poetas.” (p. 29) Afirmação nada sutil, mas reveladora, talvez por ser a poesia o processo máximo de arbitrariedade da língua. Pode-se até mesmo dizer que a verdadeira subversão só é possível na literatura, onde mudar significados e sentidos desestabilizaria talvez o pouco de possibilidade que o ser humano tem para manter o mundo como ordem ou organização. Aqui se esvairia o acordo tácito que existe entre os usuários dos idiomas de modo geral, tornando a representação estética através da língua como algo de extrema potência.

A expressão do interlocutor: “– São versos para Marina, a Intangível”, funciona como passe de mágica para que José Ambrósio recue e caia de joelhos. A analogia que existe entre esse aposto “a Intangível” com a própria poesia é importante ser assinalada. A mulher, praticamente elevada à categoria de santa, assume para o personagem altura inatingível, assim como o próprio ato criador, ao qual ele se mantém estéril.

Daí em diante, há toda uma aventura para que os versos se tornem realidade, desde gestos do homem recém-chegado como a percepção do narrador de que a poesia realmente acontece, apesar de ele não conseguir simbolizá-la, ou registrá-la.

Mas a representação acontece, independente da vontade de ambos, num desfile delirante e surreal em que Marina aparece em meio a uma procissão silenciosa e ao mesmo tempo trepidante, meio santa (trazida em um andor), meio mulher (o vestido amarfanhado e rasgado, as coxas à mostra, as olheiras muito negras e os lábios pintados). Nessa festa de delírios, em que a própria narrativa oscila em temperatura alta, há mais uma vez a potencialização de uma simbologia que intencionalmente beira o inexprimível. A representação artística, no caso a literária, surge na imagem de uma mulher que, ora beira o sublime, ora o erótico, não nos dando tempo ou não nos permitindo – como acontece ao personagem que a observa – fixá-la por mais do que alguns segundos. E quando a festa termina e ele se vê só, no terreiro, não deixa de nos informar: “Sabia, contudo, que o poema de Marina estava composto, irremediavelmente composto. Feito de pétalas rasgadas e de sons estúpidos.” (p. 33)

Poder-se-ia dizer que esse conto, com muitos componentes que transitam no que costumamos chamar de realismo irrealista, talvez pudesse ser chamado de alegórico, já que o surgimento de Marina seria a representação do momento em que a própria arte encontra sua possibilidade de realização. Teríamos de fazer, no entanto, uma ressalva, por paradoxal que nos possa parecer. Para que a alegoria se estabeleça faz-se necessário a tessitura de toda uma cadeia simbólica. Vejamos quais são esses símbolos.

Em primeiro lugar há algumas palavras ou imagens religiosas, como a bíblia, os capuchinhos, e a prece. Por que podemos chamá-los de símbolos e não de alegoria? Porque os símbolos estão ligados a uma convenção, a uma crença; e nada melhor do que a religião para utilizá-los. A própria Marina, quando surge num andor, rodeada de outras mulheres e escoltada por anjos e padres está numa posição de destaque, como cabe às pessoas santificadas. Pode-se saber disso porque se convencionou aplicar àquele que vai num andor proeminência sobre os outros.

Em segundo há os símbolos mundanos; um deles é o relógio a marcar as horas através de badaladas, cuja inexistência é constatada pelo personagem-narrador. A questão principal, aqui, não seria essa, mas outra convenção: o tempo. O passar do tempo, não o passar dos dias e das noites e das estações do ano, mas o tempo como objeto linear e convencional, marcado por uma linguagem estabelecida pelos homens, um calendário. Este também pertence ao mundo das convenções; também é simbólico.

Um estudo sobre o tempo poderia ser feito à parte, o que não é nosso objetivo nesse trabalho. O tempo transcorre de diversas formas durante a narrativa e, em alguns momentos, poderíamos associá-lo a imagens, devido o ambiente noturno vivido pelo personagem. Há a marcação desse tempo através das badaladas de um relógio inexistente – como já nos referimos acima –, do surgimento do personagem que diz trazer os versos para serem publicados, e do diálogo que este estabelece com o narrador (o processo dialógico revela a passagem do tempo). Só então é que vislumbramos a possibilidade (reparem, digo possibilidade) de ele, o narrador, não estar delirando. Adiante, quando há o aparecimento de Marina, em respeito ao caráter mágico da aparição e representação, temos a desmistificação do tempo convencional para o elevarmos à categoria máxima de simbólico. O que demonstra que a viabilidade da representação artística também se daria num tempo fugidio, que escaparia a qualquer parâmetro de convenção ou medida; pois o desfile de uma infinidade de componentes tendo vários obstáculos a serem superados não se poderia dar num tempo tão exíguo a ponto de se comportar num piscar de olhos de quem nos narra.

A santa/mulher que surgiria como algum tipo de alegoria passa a ter lugar na categoria arbitrária do símbolo porque – se depende de uma questão de crença, de ritual, e até de paixão, se está sujeita a uma linguagem que precisa levar em conta tantos fatores significantes – pertence a um universo em que as convenções, num processo anterior de nomeação, passaram a dar significação (a criar uma linguagem própria) ao que era, por natureza, impossível de se traduzir.


Como contribuição às pesquisas sobre os realismos irrealistas, a abordagem do símbolo e da alegoria possibilitada por Blanchot só tem a enriquecer as apaixonadas discussões sobre esse assunto. Sem querer diminuir ou refutar teses consagradas de autores importantes (Todorov etc.) que se esmeraram no aprofundamento teórico referente a esse gênero, a lembrança de que vivemos num mundo simbólico nunca é demasiada, apesar de nos arremessar ainda de modo mais vigoroso à consciência da fragilidade de todos os nossos conceitos relativos ao mundo da cultura. Se tudo é símbolo, sempre estaremos pisando num terreno que jamais será seguro. Murilo Rubião, de certa forma, não deixou imune esse tipo de discussão e sua conseqüente representação. O realismo irrealista praticado pelo autor, que quase não nos permite qualquer referencialidade (aqui entendida como tradução à lógica convencional dos estudos científicos), atestaria o arbítrio de toda e qualquer linguagem.


Referências bibliográficas

RUBIÃO, Murilo. O homem do boné cinzento. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

RUBIÃO, Murilo. A casa do girassol vermelho. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

BASTOS, Alcmeno. Os realismos irrealistas na literatura brasileira contemporânea. Apostila utilizada em sala de aula.

BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

SAFATLE, Vladimir. A paixão pelo negativo: Lacan e a dialética. São Paulo: Unesp, 2006.

TODOROV, Tzevtan. Introdução à literatura fantástica. Trad. Maria Clara C. Castello. São Paulo: Perspectiva, 1975.


[1] Na verdade, Todorov não fala em realismo irrealista, ele busca a conceituação do fantástico em oposição a outros termos como maravilhoso e estranho.[2] RUBIÃO, Murilo. O homem do boné cinzento. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, pp. 11-15.[3] BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. São Paulo: Martins Fontes, 2005.[4] É importante observar que Blanchot, na parte final do ensaio, faz comentários à narrativa A invenção de Morel, de Bioy Casares, cujo conteúdo também pode ser denominado de realismo irrealista.[5] Realismos-irrealistas, ministrado pelo Professor Doutor Alcmeno Bastos no segundo semestre de 2007, UFRJ, Faculdade de Letras.[6] RUBIÃO, Murilo. A casa do girassol vermelho. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, pp. 25-33.

segunda-feira, janeiro 21, 2008


Guimarães Rosa: sentido, loucura e outras linguagens

Haron Jacob Gamal
Doutor em literatura brasileira pela UFRJ

Resumo
Esta pesquisa enfoca a loucura como hipótese de outra linguagem no conto “Pirlimpsiquice”, de Guimarães Rosa, estabelecendo novas perspectivas de sentido e discutindo a liberdade.

Palavras-chave:
Literatura brasileira, João Guimarães Rosa, sentido, loucura, liberdade.

Uma das características do texto literário é a língua trabalhada esteticamente. A partir daí, podemos conceber que não só o aspecto formal – como sonoridade, escolha vocabular, sintaxe original, figuras etc., – mas também a provocação do rompimento de um sentido primeiro e a criação de um sentido segundo possam também constituir uma das principais características da própria literatura. É possível que a margem de deslocamento de significação permitida por um texto desemboque no rompimento das próprias referências, estabelecendo um total estranhamento, abrindo a escritura para questões que poderão permear vários campos do conhecimento, sobretudo, o da literatura.

Guimarães Rosa é um autor cuja criação literária nos permite tal investigação. Seus textos são exemplos de travessias que, a princípio, deixam o leitor ao sabor de alogias e não lugares. É frequente nos depararmos com uma literatura que assombra devido à utilização de linguagem original e única, não havendo na literatura brasileira autor que se tenha aventurado a tentar seguir seus passos. Caso atribuíssemos à sua linguagem a simples transcrição do modo de falar do homem do sertão, estaríamos cometendo um sério equívoco. O autor, na verdade, estabelece um novo significante a partir de experiências estéticas bem sucedidas. Os personagens roseanos beiram abismos existenciais, não deixando de atravessá-los vez ou outra. Da mesma forma como foi bem sucedido na elaboração linguística, seus personagens crescem em relação à media dos homens, transitam num universo que precisam desbravar ou criar sentido. Grande parte dos textos do autor permite que se faça uma leitura especial desses seres, os quais aparecem como agentes do próprio destino, não atribuindo a outros o leme de suas existências. Muitas vezes, nesse reger temerário e incerto, enveredam por sendas em que a lógica do mundo estabelecido não faz parte da paisagem, criam para si novos sentidos e significações, que, numa primeira leitura, ainda se mostram distantes de nosso entendimento.

Em um conto do autor, procuraremos apresentar como acontecem essas translogias e estabelecimento de não lugares. A tentativa dessa possibilidade de leitura não significa que o texto se torne perfeitamente explicável dentro de uma lógica cartesiana. Em diversas ocasiões, paira a própria falta de sentido, que poderíamos nomear de loucura – ainda que o sentido pulse pleno no do universo do inconsciente. A loucura – ou a criação de um universo que não tenha começo ou fim e em que, algumas vezes, o tempo não se dê de forma cronológica, ou mesmo que exista a concomitância de todos esses tempos – não significa a presença e perseverança do puro e simples aleatório, mas a criação de uma linguagem ou sentido de resistência, apesar de – voltando a dizer – no universo do inconsciente. Então, este passa a ter linguagem própria, embora pontuadas de vacâncias e de abismos, muitas vezes de difícil compreensão e de sentido vazio.

“Pirlimpsiquice”[i] (ROSA, 2005, 83-91) é uma narrativa interessante para que se observe a coexistência de sentidos outros – pelo menos três –, ou mesmo para que se percebam translogias a outros universos, sobretudo porque tem como mola propulsora o teatro. Este, além de permitir outras linguagens, cria um mundo próprio, que pode ou não corroborar o sentido, ou também possibilitar, através de significantes que se deslocam de modo contínuo, diferentes grau de significação. A encenação servirá como elemento de estranhamento e de desrepressão, onde a realização do desejo dos agentes, apesar de regida indiretamente pelo inconsciente, se concretiza. 

O enredo pode ser resumido da seguinte forma: a um grupo de alunos de um colégio de padres é atribuída a tarefa de encenar uma peça de teatro na ocasião de uma data festiva. O pequeno grupo entusiasma-se com a proposta e se põe ensaiar com dedicação o texto escolhido pelos padres, superando divergências pessoais e procurando melhoras tanto no comportamento como nos estudos. No dia da apresentação, contudo, acontece um fato inesperado.

O conto inicia-se com um narrador em primeira pessoa que reage com surpresa à proposta da direção da escola a respeito da perspectiva de encenação da peça teatral. Ele começa a narrar de um tempo já distante do fato acontecido, lembra-se de alguns companheiros que participaram do evento e tenta revelar o destino que tiveram ou a profissão que exercem nos dias contemporâneos à enunciação. A linguagem característica dos personagens de G. Rosa, sobretudo a do narrador, já proporciona indícios do estranhamento que a história estabelecerá.

O narrador nos relata o clima religioso do colégio:

O padre Prefeito, solene modo, fez-nos a comunicação. Donde, com o Dr. Perdigão ali ao lado, rezou-se o padre-nosso e três ave-marias, às luzes do Espírito. Aí, o Dr. Perdigão, que empunhava o livro, discursou um resumo, para os corações da gente, à toda. Então, cada um teve de ler do texto alguma passagem, extraindo de si a melhor bonita voz, que pudesse; leu-se desabaladamente. Só o Zé Boné não se acanhou de o pior, e promoveu risos, de preenchido beócio, que era.

A comunicação aos alunos sobre a possibilidade de apresentação de uma peça teatral estabelece um momento de ruptura ao clima do dia-a-dia do colégio. Em seguida, quando sabemos o nome da peça, “Os filhos do doutor Famoso”, intuímos de que se trata de teatro leigo, portanto também em linha de ruptura com o sentido comum que predomina numa escola religiosa. O aparecimento do personagem Zé Boné constitui, num instante seguinte, o aprofundamento da instabilidade e da perda do sentido ideológico.

É comum ao texto literário constituir um campo de forças dialéticas. Aqui, além de haver uma escola religiosa em que se tenta fazer da arte algo sublime, algo que enobreça o espírito, encontra-se a divergência. A arte, no caso o teatro, além de ser ponto de encontro de objetivos pedagógicos, edificantes, poderá servir de instrumento para que se estabeleça um sentido diverso e distante do predominante.

O grupo de amigos a quem foi confiada a tarefa artística também se encontra dividido. Há dois líderes. De um lado, Ataualpa; de outro, Darcy. As forças contrárias se unem para que os estudantes possam levar avante a tentativa de cumprir a tarefa. A partir deste momento, começa a tentativa de união do pequeno grupo. O combinado é: “Ninguém conta nada aos outros, do drama”. Ao grupo coeso, resta uma preocupação: o apalermado Zé Boné. A manutenção da ordem ou sentido vigentes encontra-se ameaçada pela presença desse personagem, que destoa dos demais.

A seguir, há um longo parágrafo caracterizando Zé Boné. Sabemos que ele é dado a imitações:

[...] varava os recreios reproduzindo fitas de cinema: corria e pulava, à celerada cá e lá, fingia galopes, tiros, disparava, assaltava a mala-posta, intimidando e pondo mãos ao alto, e beijava afinal – figurando a um tempo de mocinho, moça, bandido e xerife. Dele bem se ria. O basbaque.

É interessante observar que personagem com tamanho talento não seja cogitado para representar papel expressivo. Ele é visto como alguém suspeito, que não dará conta da tarefa atribuída, apesar de papel pequeno. No entanto, não adiantemos, Zé Boné acabará gerador de uma grande surpresa. No mesmo parágrafo, sabemos um pouco mais sobre o narrador, que faz parte do grupo e a quem é atribuído um papel:

[...] decidindo o padre Prefeito e o Dr. Perdigão que, por retraído e mal-à-vontade, em qualquer cena eu não servisse. Não fosse o padre Diretor, de bom acaso vindo entrando, declarar que, aluno aplicado, e com voz variada, certa, de recitador, eu podia no vantajoso ser o “ponto”.

Conclamado a tal papel, ele é congratulado pelos amigos, e até ganha algum prestígio com isso, uma vez que “o ponto” tem função de ordenador e mediador numa peça, evitando tropeços por parte dos atores. Mais uma vez, se por um lado Zé Boné personifica a desordem, por outro temos um narrador com aspecto de bom moço, alguém capaz de proporcionar segurança ao grupo, prometendo sobrevivência em possíveis horas de tormenta. Os dois campos de força que permeiam todo o texto não deixam de estar presentes.

A partir do parágrafo seguinte, o jogo dialético se subdivide e somos apresentados a outro grupo de alunos, liderados por dois “malcomportados incorrigíveis”: Tãozão e Mão-na-lata. Descobre-se a divisão que há entre os alunos do colégio. O narrador demonstra também a preocupação de que se descubra “o drama”, que sejam obrigados a revelar para os outros a “estória”. A solução encontrada pelo grupo é inventar outro enredo para mascarar o verdadeiro e ensaiar este sem correr riscos.  Assim é feito. Mas a preocupação a respeito de Zé do Boné paira novamente. Ele pode contar a verdade ao outro grupo. Então há a solução provisória: “E, de Zé Boné, ficasse sempre perto um, tomando conta.” A princípio, Zé Boné não dá motivos para desconfiança “nem na estória do drama botava sentido [...]”. O personagem se põe a disparar pelo pátio com suas representações atabalhoadas. O que podemos deduzir de seu comportamento como elemento constituinte do texto até esse momento, é um possível contraponto entre teatro e cinema, através de suas encenações espontâneas.

Os personagens que se opõem ao grupo, Tãozão e Mão-na-lata, até aqui não demonstram interesse “no assunto do teatro nem tocavam”. Já a outra “estória”, a inventada, provoca grande alarde no colégio, “prosseguia, aumentava, nunca terminava com singulares-em-extraoridnários episódios”. Eis como a chamavam: “O fuzilado, o trem de duelo, a máscara: fuça de cachorro, e principalmente, o estouro da bomba”. Como se vê, o sentido paralelo vai tomando vulto. O gosto pela história da peça a ser apresentada vai, pouco a pouco, passando para a falsa até mesmo entre os que têm a incumbência de ensaiá-la. Estes também se enamoram pelo enredo criado como disfarce. Desse jogo duplo, de sentido oficial e oficioso, do teatro edificante e do subversivo, a trama do conto se desenvolve.

Já falamos desse narrador que no contexto do conto tem o papel de estabelecer a ordem. Ele é quem nos narra a história e dentro dela também lhe cabe o papel de estabelecer o sentido (uma espécie de ordem) – ele será “o ponto”, na peça; aplica-se em reter “tintim de cor por tintim e salteado” –, no entanto, também ele, assim como seus companheiros, demonstra entusiasmo pela trama paralela.  A seguir, ainda vamos perceber um fato curioso: esse narrador mostra-se descontente porque “o ponto” ficará “debaixo daquela caixa ou cumbuca”, mencionando seu lugar, invisível ao público. A ordem, portanto, se encontra oculta. É importante observar que isso já indicia que algo contrário às expectativas pode estar por acontecer. Nesse jogo, em que o teatro pode servir de meio para o estabelecimento de outro sentido, a premência do narrador em se fixar a determinados nomes ou objetos permite que se desconfie de rumo diverso que a narrativa poderá seguir.

“– ‘Representar é aprender a viver além dos levianos sentimentos, na verdadeira dignidade’ – exortava o Dr. Perdigão, sobre suas sérias barbas.” Nesse momento da narrativa, podemos constatar a presença do elemento religioso que tenta dar sentido transcendente às ações dos homens. O padre tenta dar novo significado ao ato de representar, colocando-o em posição diametralmente oposta a que os alunos entendem por teatro. Aqui, o aspecto ordenador procura estabelecer-se, inclusive como o próprio desenrolar do parágrafo demonstra, com a melhora no comportamento dos alunos que fazem parte do grupo que vai atuar na encenação. Acabam “com essa tolice dos apelidos”; os rapazes até passam a ser chamados pelo nome das personagens que irão representar. Aos que tem nomes de subalternos ou de criminosos na trama da peça, logo se arranja solução: criado passa a ser “fabulo”, filho criminoso torna-se “o redimido”. Os rapazes se esforçam para viver dentro da ordem – ou do sentido – estabelecido pelos padres. “Íamos proceder muito bem até o dia da festa, não fumar escondido, não conversar nas filas, esquivar o mínimo pito, dar atenção nas aulas”. É relacionada uma série de deveres que normalmente eles deixavam à margem. Passam a cumpri-los, temendo, caso burlem as regras, que a apresentação não se concretize. Ensaiam com afinco. A exceção é Zé Boné: “Esse, entrava marchando, fazia continências, mas não havendo maneira de emendar palavra e meia palavra.” Vemos que, dentro da nova ordem, temos um personagem “desordenador”, que mina e ameaça, mesmo de forma ingênua, toda a estabilidade do empreendimento.

No parágrafo seguinte, dentro dessa correlação de forças que se mostra em tensão contínua, há uma nova informação. Mais uma vez temos os outros alunos do colégio, liderados pelo Gamboa, se contrapondo à trupe. Circula a informação de que

Diziam já saber a verdadeira estória do drama, e que não passávamos de impostores. De fato, circulava outra versão, completa, e por sinal bem aprontada, mas de todo mentirosa. Quem a espalhara? O Gamboa, engraçado e de muita inventiva e lábia, que afirmava de pés juntos, estar dono da verdade. O cume de cachorro!

Resumamos: há a versão oficial – a história escolhida pelos padres –, há a do próprio grupo que ensaia, que é a criada para despistar os outros alunos; e, agora, existe uma terceira, que parece ser do grupo dos alunos incorrigíveis. Estes, através de drama próprio, procuram debochar do grupo “oficial”. O sentido primeiro se dilui num segundo, e depois num terceiro.

Adiante, aparecem três acontecimentos importantes: a indignação dos garotos, agora exemplares, diante do grupo dos incorrigíveis; um padre a afirmar “o nosso teatro roubava ao ensino”; e, como outros alunos já comentam as cenas oficiais pelo colégio, descobre-se um traidor, o filho da cozinheira:

[...] o Alfeu. O gebo, pernas tresentortadas e moles, quase de não andar direito, mas o capaz de deslizar ligeiro por corredores e escadas, feito uma cobra; e que vinha escutar os ensaios, detrás das portas.

Novamente, há a presença de um elemento desequilibrador, que se contrapõe à ordem: ele é aleijado, não estuda no local, e ainda furta para os alunos guloseimas da cozinha dos padres. No final do parágrafo, o narrador se apressa em fazer correr o tempo, dando mostras da ansiedade do grupo pela chegada do dia do espetáculo.

Um parágrafo nos apresenta o ensaio geral, onde todos representam a contento. Apenas como a demonstrar alguma sinuosidade, encontramos o próprio narrador – ele se queixa de que todos estão “na ponta da língua seus papéis – para meu desgosto” – e o padre Diretor que, ao assistir ao quinto ato, “disse: que nós estávamos certos, mas acertados demais, sem ataque de vida válida, sem a própria naturalidade pronta, [...] o trom de Júpiter”, em que já se prenunciam os contratempos do dia do espetáculo.

O dia seguinte, domingo, é diferente da rotina do colégio, “os rebuliços, as horas curtas”. Há a descrição de toda a movimentação; descrição esta que muda o sentido e a vida do local: há pão de mel e biscoitos no café, arrumação do teatro, “caixa-do-ponto verde, repintada fresca, as muitas moças e senhoras aparecidas, chegadas de roupas nossas teatrais, novinhas nos embrulhos". À entrada do Surubim, o padre Regente, avizinha-se o desastre, que vai ser desenvolvido no parágrafo seguinte.

De modo sucinto, ele descreve a chegada do padre e a comunicação de que o Ataualpa terá de partir, seu tio o espera na portaria com a incumbência de acompanhá-lo, pois o pai do rapaz, deputado, “estava à morte no Rio de Janeiro.” Mas Ataualpa era o que exerceria o papel principal, o Doutor Famoso. “E o teatro, o espetáculo?” Apenas quem podia substituí-lo era quem faria o “ponto”, pois este sabia a fala de todas as personagens. “[...] ótimo [...]. Se disse, se fez.”

A partir desse momento, há a mudança do sentido, ou reversão das expectativas. Com uma narrativa concentrada na força de vocábulos que ora aparecem como pequenos períodos ora fora da sintaxe usual, o clima de expectativa, pouco a pouco, acentua-se. Há uma sequência de parágrafos – o primeiro inicia-se com a expressão “o contentamento” e termina pela palavra “silêncio” – onde há mostras do clima que antecede o início de espetáculo: o tempo passando, as pessoas ocupando seus lugares, os últimos preparativos dos atores, o momento em que entram em cena e reparam os conhecidos na platéia. Então, já é o momento em que se inicia a festividade, tendo o narrador a ocupar o papel principal. O programado não se dá, pois ele sabe as falas da peça, mas não os versos em homenagem à santa, que deveriam anteceder o início do espetáculo. Este trecho termina com o narrador em situação adversa. A mesma passagem focaliza a solução encontrada em meio à balbúrdia e agitação que se estabelece; o ator, como solução, diz: “–Viva a Virgem e viva a Pátria!” Solução provisória, porque ressoam os aplausos. A partir daí, dar-se-ia início à encenação programada.

O sentido original, no entanto, se perde e outro se estabelece. Em primeiro lugar, alguns aspectos técnicos não funcionam, como a descida do pano para que fiquem apenas em cena os personagens necessários à primeira cena:

Mas o pano não desceu, estava decerto enguiçado; não desceu, nunca. Os que tinham de sair de cena, não saíam. Tornamos a avançar, todos, sem pau nem pedra, em fila, feito soldados, apalermados.

É interessante o uso do vocábulo “soldados”, porque ele nos remete a uma imagem de sentido e obediência, o que na verdade não vai acontecer, “E aí veio a vaia. Estrondou...” A vaia é o primeiro sinal para que haja uma reação, “A vaia, que ninguém imaginava”. Esse período é interessante porque, pouco a pouco, mostrará a expansão de um entusiasmo que poderíamos chamar de negativo, no sentido de que corrói a tessitura oficial do texto dos padres. O ponto culmina com a gritaria da platéia por Zé Boné. “Zé Boné pulou para diante, Zé boné pulou de lado. Mas não era de faroeste, nem em estouvamento de estrepolias. Zé Boné começou a representar.” “A vaia parou total.” Então começa a representação propriamente dita, mas não a oficial. A princípio percebe-se que Zé Boné representa a história do Gamboa. Mas a trupe reage e contrapõe com a própria história, “Começávamos, todos, de uma vez, a representar a nossa inventada estória.”

Daí até o penúltimo parágrafo, assiste-se à representação sem precedentes, que ocorre feito um surto. Os papéis se encaixam dentro da mais alta precisão; os rapazes se saem bem sem mesmo saber o que dizer. Tudo se dá dentro da mais completa realização do desejo. Como se trata de um colégio religioso, onde a força da disciplina e da repressão imposta pelos padres parecia pairar, vemos em contrapartida a liberação desenfreada da imaginação e a realização daquilo que só poderia acontecer em sonho. Eis as palavras do próprio narrador:

A princípio, um disparate – as desatinadas pataratas, nem que jogo de advinhas. Dr. Perdigão se soprava alto, em bafo, suas réplicas e deixas, destemperadas. Delas, só a pouca parte se aproveitava. O mais eram ligeirias – e solertes seriedades. Palavras de outro ar. Eu mesmo não sabia o que ia dizer, dizendo, e dito – tudo tão bem – sem sair do tom. Sei, de, mais tarde, me dizerem: que tudo tinha e tomava forte, belo sentido, esse drama do agora, desconhecido, estúrdio, de todos o mais bonito, que nunca houve, ninguém escreveu, não se podendo representar outra vez, e nunca mais. Eu via os do público assungados, gostando, só no silêncio completo. Eu via – que a gente era outros – cada um de nós, transformado. O Dr. Perdigão devia estar soterrado, desmaiado em sua correta caixa-do-ponto.

O sentido oficial, original, o texto estabelecido pela escola se perde totalmente para dar lugar à outro que, poderíamos dizer inventado e inconsciente ao mesmo tempo. A subversão é completa, como se se atirasse uma pá de cal no Dr. Perdigão, não por coincidência atuando como “o ponto”.

Mas essa reviravolta também possui seus perigos e artimanhas. A partir do momento em que se experimenta esse círculo, torna-se quase impossível sair dele. O arrebatamento do não sentido – ou sentido outro – parece indômito. É preciso não se deixar levar por um inconsciente desenfreado. Aqui, então, ouvimos as conjecturas do narrador, que tenta vencer o arrebatamento e parte em busca de uma saída. A representação entrara em círculo, afigurava-se jamais cessar:

Mas – de repente – eu temi? A meio, a medo, acordava, e daquele estro estrambótico. O eu: aquilo nunca parava, não tinha começo nem fim? Não havia tempo decorrido. E como ajuizado terminar, então? Precisava. E fiz uma força comigo, para me soltar do encantamento. Não podia, não me conseguia – para fora do ocorrido, contínuo, do incessar. Sempre batiam, um ror, novas palmas. Entendi. Cada um de nós se esquecera de seu mesmo, e estávamos transvivendo, sobrecrentes, disto; que era o verdadeiro viver? E era bom demais, bonito – o milmaravilhoso – a gente voava, num amor, nas palavras: no que se ouvia dos outros e no nosso próprio falar. E como terminar?

Dentro de uma concepção psicanalítica, a representação em círculos nada mais seria do que a repetição incessante de um significante, o que se poderia nomear de sintoma. A passagem, que se dá de forma lúdica, e o próprio título do conto ratificam essa possibilidade de leitura. Todos estão imersos numa espécie de encantamento, mergulhados como que num surto – que para eles não deixa de ser prazeroso –; experimentam voos que não desejam interromper. Mas, por outro lado, há também a presença de um alter ego que exige a volta. Lembremos que o narrador é não só quem organiza o texto literário, mas também aquele que tinha a função do ponto, algo também organizador. Agora, é ele quem sente a necessidade de dar fim à representação desenfreada, ao sentido subversivo, à negação da versão oficial, à saída da razão. Ele quer o retorno ao mundo da ordem, ao universo organizado como “sanidade”. E eis o salto; mas não para fora, para dentro da vida preestabelecida.

Então, querendo e não querendo, e não podendo, senti: que – só de um jeito. Só uma maneira de interromper, só a maneira de sair – do fio, do rio, da roda, do representar sem fim. Cheguei para frente, falando sempre, para a beira da beirada. Ainda olhei, antes. Tremeluzi. Dei a cambalhota. De propósito, me despenquei. E caí.

É o mundo que se acaba. Mas o mundo do sonho, do sentido outro, da desrepressão total que, na verdade, não poderia ser sustentada por mais tempo sob o perigo de não se ter a racionalidade restituída. O narrador restitui – o que faz também a todos os outros – o tênue fio da razão.

O texto literário, quando é de boa qualidade como o de Guimarães Rosa, é capaz de explorar a multiplicidade de sentidos não só vocabular e sintático, mas se constituir em novos significantes capazes de criar outras unidades de sentido. “Pirlimpsiquice” transita nessa via, permite novos sentidos e outras sintaxes, que se situam dentro do que se convencionou chamar de loucura. Mas, na verdade, é um universo que também possue organização e sentido próprios, acabando por colocar em questão a razão vigente.   

Talvez caiba à literatura, à filosofia e à psicanálise levantar essas questões, que não deixam de estar irremediavelmente relacionadas ao que se entende por liberdade.


[i] Todas as citações deste conto estão em: ROSA, 2005, pp. 83-91.

Referências bibliográficas:

ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.

LACAN, Jacques. Escritos. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.


quarta-feira, dezembro 05, 2007

Farol em mar de ressaca

É fato incontestável que Machado de Assis foi célebre por ter escrito romances, como Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro, entre outros. Mas há três textos de crítica literária – menos conhecidos no universo de sua obra e publicados antes dos romances que o tornariam famoso – que demonstram a agudeza de pensamento do intelectual interessado nos assuntos de seu tempo e na produção literária do Brasil e de Portugal. Estes textos revelam não só o que o autor pensava sobre literatura, mas tam­bém o projeto que tentará encetar ao dar curso à sua obra maior – os romances publica­dos a partir de 1880.
É preciso observar que, em termos de estudos sobre Machado de Assis, são pou­cos os trabalhos de pesquisa que levam em conta a obra de crítica escrita por ele e como esta participa na construção da obra de ficção do autor, sobretudo naquela que veio a público a partir de Memórias Póstumas de Brás Cubas.

Machado: o crítico literário
Em “Notícia da Atual Literatura Brasileira – Instinto de Nacionalidade” (20/03/1873), o escritor constata logo no início que "todas as formas literárias do pen­samento buscam vestir-se com as cores do país" (MACHADO DE ASSIS, 1979, Vol. III, p. 801). Cores estas que estariam no aproveitamento artístico da natureza americana e do habitante original. Seguindo o fio condutor estabelecido por Machado, observamos o que diz a respeito de Basílio da Gama e de Santa Rita Durão, os quais, segundo ele, souberam transformar em arte o que oferecia a terra colonial: "a razão é que eles buscam em roda de si os elementos de uma poesia nova, e deram os primeiros traços de nossa fisionomia literária [...];” (p. 802). Os dois escritores foram os que souberam melhor explorar, em todo o período que ante­cedeu a independência política, a natureza americana e tomar como um dos temas – em Basílio de modo mais feliz –, a representação estética do habitante original da terra bra­sileira. Machado vai além e enumera os continuadores desses dois escritores no mo­mento em que a letras nacionais já iam na pátria independente e à procura de identidade própria.
A seguir, Machado traz à tona o debate existente em meio à intelectualidade da época: a importância de utilizar ou não, como tema, os costumes da cultura "semibárba­ra" como meio de dar ares nacionais à nossa literatura. O autor constata que depois do que "escreveram os Srs. Magalhães e Gonçalves Dias, não é lícito arredar o elemento indiano de nossa aplicação intelectual." (p. 803)
Compreendo que não está na vida indiana todo o patrimônio da literatura brasileira, mas apenas um legado, tão brasileiro como universal, não se limitam os nossos escritores a essa só fonte de ins­piração. Os costumes civilizados, ou já do tempo colonial, ou já do tempo de hoje, igualmente ofere­cem à imaginação boa e larga matéria de estudo. (p. 803)
Ao dizer que o patrimônio da vida indiana também é um legado universal, Ma­chado expande os limites do que se chamará de literatura brasileira, sobretudo porque poderá abordar na própria ficção temas que aparentemente não retratem a cor local nem são inerentes apenas à nossa pátria, mas legados universais de outras culturas. Outra expressão interessante que o escritor menciona é a seguinte: "larga matéria de estudo". Isso demonstra que o que escreve Machado de Assis não tem apenas o intuito de entreter o leitor; na verdade, sua literatura é constituída pelo levantamento de questões que até então eram pouco exploradas pelos escritores contemporâneos a ele.
Outro ponto importante sobre o qual escreve, mas que o deixa encoberto por al­gum tipo de véu é o seguinte:
Não há dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente, deve principalmente alimen­tar-se dos assuntos que lhe oferece a sua região; mas não estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a empobreçam. O que se deve exigir do escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem de seu tempo e do seu país. (p. 804)
"Alimentar-se de assuntos que lhe oferece a sua região"; até aqui não há dúvida alguma sobre o que quer dizer, mas, em seguida, quando se refere a "sentimento íntimo" e a "homem de seu tempo e do seu país", num primeiro momento se percebe que há algo vago e abstrato em suas palavras. Mas, em seguida, levando-se em consideração o que se está acostumado a encontrar, de modo geral, em toda a sua obra, talvez se possa definir "sentimento íntimo" como a abordagem de temas que tenham relação à na­tureza humana, levando-se em conta a perscrutação da alma do homem; "homem de seu tempo e do seu país” seria tentar representar esse tempo e esse país elevando-os a foro universal.
Outro ponto interessante que o autor de Dom Casmurro expõe é a necessidade de "uma crítica doutrinária, ampla, elevada, correspondente ao que ela é em outros países."(p. 804) Essa crítica, aos olhos do escritor, contribuiria para o desenvolvimento e apri­moramento de nossas letras. Machado coloca – talvez uma peculiaridade de seu tempo – a crítica tal qual lanterna que sinalizaria em mar bravio, mostraria escolhos a serem con­tornados, evitando choques e naufrágios. Assim teríamos obras literárias maduras, aper­feiçoadas, condizentes a uma concepção de arte que daria ares superiores e universais a uma literatura, no nosso caso à brasileira. Machado se queixa de que na crítica contemporânea a ele predomina o ódio, a camaradagem e a indiferença (p. 798); sua exigência é de uma crítica honesta e sincera:
Saber a matéria em que fala, procurar o espírito de um livro, escarná-lo, aprofundá-lo, até encon­trar-lhe a alma, indagar constantemente as leis do belo, tudo isso com a mão na consciência e a con­vicção nos lábios, adotar uma regra definida, a fim de não cair em contradição, ser franco sem aspe­reza, independente sem injustiça [...] (p.800)
A reclamação de Machado não deixa de ter sentido pleno. Embora se saiba — até mesmo em termos de literatura universal – que muitas obras não foram consideradas pela crítica do próprio tempo, que só a posteridade conseguiu ver e lhes medir o verdadeiro valor, esse valor foi fruto de visão crítica mais séria, madura e aperfeiçoada. Ao que aspirava Machado, sobretudo no artigo “Ideal do Crítico” (1865), na verdade se concreti­zou; só que muito tempo depois: é a crítica já exercida há alguns anos pela universidade. Essa crítica procura ser isenta e prima sempre pela análise rigorosa e fundamentada. Muitos poderiam achar que o ideal preconizado pelo escritor teria uma função pseudopedagógi­ca e revelaria postura conservadora do próprio escritor; na verdade, porém, nada mais seria do que uma leitura equivocada feita por quem ainda não compreende seu pensa­mento sobre o assunto. Para comprovar a função salutar e fecunda de uma crítica ho­nesta, que o próprio Machado nunca deixou de reivindicar, tomemos um exemplo dos dias de hoje: a profusão de poetas e ficcionistas entre os professores universitários. Estes são os que em primeiro plano exercem a crítica e dão a verdadeira importância que ela merece.
O romance é tratado em tópico à parte pelo autor. Ele constata que esse tipo de gênero é o mais cultivado "atualmente no Brasil"(p. 804); procura mostrar as razões de sua aceitação. Encerra o primeiro parágrafo colocando-o como "obra d'arte como qual­quer outra, e que exige da parte do escritor qualidades de boa nota."(p. 804) No período em que Machado escreve esse texto, aparentemente já está superada a aceitação do ro­mance como obra de arte; o que estaria em questão seriam as qualidades do romancista, não só relativas à arte do bem escrever, mas também a respeito do modo como trabalha as questões locais e universais, que nunca deixaram de estar presentes nas representa­ções artísticas de qualquer época. O gênero literário não é o mais importante, mas a ge­nialidade do autor.
Machado volta à questão do que é representado pela maioria das obras brasileiras até então quando diz: "Aqui o romance, como tive ocasião de dizer busca sempre a cor local"(p. 804) Embora não censure a utilização dessa temática na literatura brasileira, acha que falta alguma coisa para que o gênero possa atingir o mesmo nível que já des­fruta em outras culturas:
Do romance puramente de análise, raríssimo exemplar temos, ou porque a nossa índole não os chame para aí, ou porque seja esta a casta de obras ainda incompatível com a nossa adolescência li­terária. (p.805 )
Machado concorda com Alencar ao retomar-lhe a expressão "adolescência literária". O criador do genial Aires ainda vai além:

Pelo que respeita à análise de paixões e caracteres são muito menos comum os exemplos que po­dem satisfazer à crítica; alguns há, porém, de merecimento incontestável. Esta é, na verdade, uma das partes mais difíceis do romance, e ao mesmo tempo das mais superiores. Naturalmente exige da parte do escritor dotes não vulgares de observação, que ainda em literaturas mais adiantadas, não andam a rodo nem são a partilha do maior número. (p. 805)
É o que ele, Machado de Assis, vai tentar fazer na sua obra de ficcionista. Investi­gará a natureza humana através da construção de seus personagens e dos acontecimen­tos à volta deles. Voltaremos ao tópico na segunda parte desse trabalho.
"As tendências morais do romance brasileiro" (p. 805) fazem, do mesmo modo, parte de suas preocupações. Nosso crítico repudia "os livros de certa escola francesa" que "não contaminaram a literatura brasileira". Machado reivindica para a arte, e em conseqüência para a literatura, status nobre e refinado, temas e maneiras de dizer que conduzam o leitor a reflexões e que lhe aprimorem ao menos o gosto. Em seus romances, nota-se que o autor se preocupará com a representação artística exemplar; e quando tra­balhará temas que nas mãos de outro escritor poderiam resvalar na vulgaridade, nas suas assumem ares que possuem a força trágica das obras clássicas.
Assunto também interessante, que Machado trará para suas obras de ficção e sobre o qual faz menção nesse texto, é a abordagem dos problemas do dia, do século e as crises sociais e filosóficas. Diz o autor: "Esta casta de obras, conserva-se aqui no puro domí­nio da imaginação [...]”. (p. 805) No que diz respeito à crise filosófica, em que não deixa de estar imerso todo o século XIX, nosso escritor não passará isento por ela; seus perso­nagens serão mestres a espelhá-la, para que possamos refletir não só sobre a época, mas sobretudo a respeito da natureza e condição humanas.
Apesar da enumeração de pontos que acha necessários ao aprimoramento do gêne­ro, Machado de Assis termina o artigo com algum elogio e esperança:
Em resumo, o romance, forma extremamente apreciada e já cultivada com alguma extensão, é um dos títulos da presente geração literária. Nem todos os livros, repito, deixam de prestar a uma crítica minuciosa e severa, e se a houvéssemos em condições regulares, creio que os defeitos se corrigiriam, e as boas qualidades adquiririam maior realce. Há geralmente viva imaginação, instinto do belo, in­gênua admiração da natureza, amor às coisas pátrias, e além de tudo agudeza e observação. Boa e fecunda terra, já deu frutos excelentes e os há de dar em muito maior escala.( p. 806)
Se não cometemos um pecadilho, somos tentados a dizer que o grande Machado aqui protege os seus pares de obra maior – a ficção – e dirige uma nova estocada à críti­ca literária da época. Na verdade, os textos de Machado sobre literatura sugerem que seu alvo não é apenas a obra apreciada, mas a crítica contemporânea a ele. Talvez ao exercer essa difícil missão, quisesse iluminar aqueles que pensavam e escreviam sobre arte e literatura.
Outro momento que revela a pujança crítica de Machado de Assis é o artigo em que resenha O Primo Basílio, de Eça de Queirós. São páginas excelentes, onde o texto machadiano atinge status exemplar, contribuindo de forma decisiva para elevar a crítica literária brasileira a nível jamais alcançado até então. O autor inicia sua explanação fa­zendo comentários sobre o livro anterior de Eça, O Crime do Padre Amaro, em que assevera que "não foi decerto sua (de Eça) estréia literária." (p. 903) Qualifica o estilo do autor português como "vigoroso e brilhante", mas mostra certo pesar pela escolha esté­tica – escola realista – feita por Queirós. Machado aponta o que nomeia de força "qui­mérica e impossível" a respeito do desenlace da narrativa: "não se compreende o terror do Padre Amaro, no dia em que do seu erro lhe nasce um filho, e muito menos se com­preende que o mate."(p. 904) Na verdade, na introdução à crítica de O Primo Basílio, Machado aproveita para fazer suas ressalvas ao realismo, e ao mesmo tempo mostrar o que vê de problemático no livro anterior de Eça.
Não se conhecia no nosso idioma aquela reprodução fotográfica e servil das coisas mínimas e ig­nóbeis. Pela primeira vez, aparecia um livro em que o escuso e o [...] torpe eram tratados com cari­nho minucioso e relacionados com uma exação de inventário. (p. 904)
Nosso autor acredita que há coisas que não precisam ser ditas, que o escritor não deve ser aquele "que não esquece nada, não oculta nada"(P. 904); em sua obra de ficção, não é difícil constatar tal fato. É importante ressaltar que a crítica de Machado ressalva as qualidades deste escritor, classificando-o como "um dos bons e vivazes talentos da atual geração portuguesa"(p.903); e chega a dizer que "o autor d'O Primo Basílio tem em mim um admirador de seus talentos" (p.913).
Ao analisar o romance, Machado, de início, diz que o autor português "reincidiu no gênero"(p. 904) Atribui essa reincidência "ao requinte de certos lances, que não destoaram do paladar público."(pp. 904-905) Mas o que torna a crítica severa está em três pontos. O primeiro é a construção da personagem Luísa, a quem o crítico atribui "um caráter negativo" e a designa "um títere" (p.905); o segundo, acontece quando diz que o acessório substitui o principal, no episódio em que a criada se apodera de "cartas comprometedoras"; e o terceiro está na vocação sensual do romance, em que há o pre­domínio da sensação física (p.907). Machado a aponta como "medula da composição”.
Não é nosso objetivo estudar minuciosamente esse texto de Machado. É interes­sante, no entanto, levantar algumas questões a respeito desses tópicos, porque aqui já se insinua o rumo que a ficção machadiana percorrerá nas obras posteriores – segundo a crítica, seus melhores textos.
Machado condena na personagem feminina de Eça a volubilidade; chega a dizer que "Luísa resvala no lodo, sem vontade, sem repulsa, sem consciência, Basílio não faz mais do que empuxá-la, como matéria inerte, que é." (p. 905) Mais adiante, continua:
Para que Luísa me atraia e me prenda, é preciso que as tribulações que a afligem venham dela mesma; seja uma rebelde ou uma arrependida; tenha remorsos ou imprecações; mas, por Deus! Dê-­me a sua pessoa moral. (pp. 906-907).
A respeito da transferência, no transcurso da ação, do principal para o acessório,
Machado escreve:
Ora a substituição do principal pelo acessório, a ação transplantada dos caracteres e dos sentimen­tos para o incidente, para o fortuito, eis o que me pareceu incongruente e contrário às leis da arte. (p. 910)
Nesse ponto, percebemos que o autor brasileiro não descarta que a arte é consti­tuída por algumas regras ou leis que precisam ser observadas, o que revela uma concep­ção aristotélica a respeito da obra de arte; sobretudo quando levamos em conta que o filósofo grego fala em unidade de ação quando se refere, no caso, ao teatro; portanto quando há a substituição do principal pelo acessório perde-se a configuração às "leis da arte".
Em terceiro, o crítico condena de modo veemente a vocação para o sensual: "Parece que o Sr. Eça de Queirós quis dar-nos na heroína, um produto da educa­ção frívola e da vida ociosa: não obstante, há aí traços que fazem supor, à primeira vista, uma vocação sensual." (p.907) Ainda vai mais longe:
Os exemplos acumulam-se de página a página; apontá-los seria reuni-los e agravar o que há neles desvendado e cru. Os que de boa fé supõe defender o livro, dizendo que podia ser expurgado de al­gumas cenas, para só ficar o pensamento moral ou social que o engendrou, esquecem ou não repa­ram que isso é justamente a medula da composição. Há episódios mais crus do que outros. Que im­porta eliminá-los? Não poderíamos eliminar o tom do livro. Ora o tom é o espetáculo dos ardores, exigências e perversões físicas. (p.907)
A afirmação sobre o tom do livro é digna de ser destacada. A partir dela, pode-se entender, e Machado já o fazia de forma brilhante, que para se colocar em questão al­gum tema, não basta mencioná-lo; torna-se necessária a descoberta da intenção do autor, de como este trabalha a própria questão. Quando Machado de Assis escreve que não se pode eliminar o tom do livro, percebe-se a vocação da obra, que a seu ver vem mais a satisfazer o "paladar público" do que levantar questões; ato que permite à arte discutir uma época ou uma visão de mundo senão com superioridade, mas, pelo menos, com o mesmo rigor de obras que se dizem científicas.
Vamos, agora, à obra de ficção de Machado de Assis.
Em primeiro lugar, é importante observar que o escritor brasileiro não tem como doutrina o realismo; em seus romances há o predomínio da sugestão. Machado não diz tudo, apenas insinua. Em segundo lugar, Machado jamais representaria o torpe, o ignó­bil; se estes aparecem em sua obra, não é através de descrição realista, mas nos faz che­gar a eles através da insinuação de algum personagem.
Talvez Machado já discernisse o perigo que a arte en­frentaria em futuro não muito distante. A representação do ignóbil e do obsceno encon­traria grande aceitação entre o público, justamente na camada de pessoas que não teve a oportunidade de desenvolver o "gosto" e conhecer "as leis da arte".
Encontraremos em Machado certo refinamento que ainda não estava presente em nossa literatura. Em Dom Casmurro, como veremos mais adiante, até mesmo ao tratar o tema do ciúme e o do possível adultério, o escritor não sucumbe ao gratuito e proporciona ares de alta literatura.

Como Machado tornou ficção o que disse como crítico literário
Em Dom Casmurro há trechos em que o autor não deixa de apre­sentar algumas questões sobre literatura, alguns aspectos da vida brasileira e perso­nagens que representam pessoas típicas da época retratada. Tudo isso, de certo modo, contribui para estabelecer questões a respeito da cultura brasileira, do modo de vida na se­gunda metade do século XIX, do próprio país e, sobretudo, da natureza humana.

A literatura fala de si própria
O primeiro e segundo capítulos do romance, além da importância que apresentam no contexto geral da narrativa, são interessantes porque têm como tema a própria literatura. No primeiro, há uma passagem curiosa: o protagonista vai no trem da Central e é in­terpelado por "um rapaz aqui do bairro, que eu conheço de vista e de chapéu" (MACHADO DE ASSIS, 1979, Vol. I, p. 809). O mesmo rapaz conversa com ele sobre os assuntos do dia, considerando tempo e política, e acaba por pedir a Bento Santiago que ouça seus versos. Descobrimos, então, o próprio Dom Casmurro represen­tando o papel de crítico literário!
O segundo capítulo se inicia com o narrador explicando os motivos que o levaram a escrever o livro. Descreve a casa em que mora, que é perfeita réplica daquela em que viveu na infância e na adolescência; a seguir, completa: "o meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência"(p. 810), o que na verdade não conseguiu: "Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui" (p.810). No parágrafo seguinte, o narrador diz não sentir falta desse passado, mas que conserva "alguma recordação doce e feiticeira"(p.810).
Diz o verdadeiro motivo de estar escrevendo o livro: "Ora, como tudo cansa, esta monotonia acabou por exaurir-me também. Quis variar, e lembrou-me escre­ver um livro."(p.810). Aqui, faz menção a outros assuntos que poderia ter abordado, todos relacionados a algum tipo de saber, mas alega "não me acudiram as forças necessári­as."(p. 810) Daí em diante, põe-se a contar algumas passagens dos tempos idos.
É interessante observar que a literatura, no caso a escritura de um romance, é colocada como algo mais fácil de ser executado do que qualquer outro tipo de obra escrita. É claro que se trata de fina ironia; não do narrador, mas sim do próprio Machado. A construção de um romance, por mais simples que seja – o que não é o caso em Dom Casmurro – requer tanto ou mais trabalho e cuidado como qualquer outro tipo de texto, mesmo que científico, além de exigir talento do escritor. Em um de seus textos críticos, Machado afirma:
Não se fazem aqui (falo sempre genericamente) livros de filosofia, de lingüística, de crítica histó­rica, de alta política, e outros assim, que em alheios países acham fácil acolhimento e boa extração; raras são aqui essas obras e escasso o mercado delas. (p.804, t. III)
O próprio autor diz que essas palavras não desmerecem o romance, muito pelo contrário, porque exige qualidades de quem o escreve.
Outro fato relevante é o grande efeito produzido por esse artificio narrativo que é a criação desse personagem-narrador, que escreve suas lembranças num tempo distante dos fatos acontecidos e num momento em que já não é a mesma pessoa. Seus comentá­rios revelam alguém que já não experimenta o mesmo entusiasmo a respeito do que viveu e a respeito de quem foi. Machado, ao criar esse narrador, aborda – talvez de modo indireto – a própria literatura, proporcionando-nos um memorialismo às avessas. Em primeiro lugar, é o personagem-­narrador que relembra o próprio passado; e, em segundo, esse personagem não é o mes­mo. Ao voltar no tempo, ele já não se identifica com aquele mundo; o próprio narrador vive um período irreconciliável àquele que retrata.
Outro elo entre o romance analisado e os textos críticos do autor é a tentativa – muito bem sucedida por sinal – de fazer o que ele nomeou de "romance puramente de análise". Não se pode deixar de observar que a análise da natureza humana se dá, so­bretudo, a partir do próprio protagonista; o narrador, ao se referir a comportamentos de outros personagens, acaba por revelar mais que tudo sobre si mes­mo.
O escritor como homem de seu tempo e de seu país
A literatura de Machado de Assis abre novos caminhos para a representação do nacional porque vem mostrar que existem outras formas de pensar a brasilidade. O indianismo de Gonçalves Dias e José de Alencar, o romance regionalista ou histórico deste último já não são as únicas representações daquilo que se poderia chamar, naquele momento, de literatura brasileira. Durante grande parte da narrativa, teremos, como cenário, o que poderíamos chamar de reconstituição do Brasil no Segundo Império, com os costumes da época e seus valores.
Dom Casmurro pode ser considerado uma narrativa em que há também a preo­cupação com a recuperação física e moral de um tempo que já se foi; isso se dá porque o próprio narrador, ao resgatar algumas vivências do passado, reconstitui toda uma época que, mesmo para ele, não mais existe.
Estabelecendo um paralelo entre os textos críticos do autor e os de ficção, sobretudo quando diz naqueles: "o que se deve exigir do escritor [...] é certo sentimento íntimo que o torne homem de seu tempo e de seu país” (p.804, t. III), retiramos alguns exemplos, no romance, que atestam a afirmativa.
O primeiro deles são dois capítulos em que o narrador nos apresenta o persona­gem José Dias. O agregado era um tipo de pessoa comum nas casas de famílias mais abastadas, na época; de modo geral era alguém de classe social inferior e que procurava a sobrevivência entre os mais ricos. O aparecimento de J. Dias se deu na fazenda do pai de Bento Santiago. Dizia ser médico homeopata e até mesmo chegou a curar alguns escra­vos, contudo era um charlatão. Mesmo depois de ter confessado a verdade, é convidado a continuar morando com a família de Bentinho. O pai do pro­tagonista até mesmo lhe deixa de herança uma apólice. José Dias não só conseguiu se estabelecer ali, como se fez ouvir dentro da própria família. É um personagem caricatural tanto no modo de vestir, como no de falar:
José Dias amava os superlativos. Era um modo de dar feição monumental às idéias; não as havendo, servia a prolongar as fra­ses [ ...] (p.812). Era lido, posto que de atropelo, o bastante para divertir ao serão ou à so­bremesa, ou explicar algum fenômeno [...](p. 814).

O personagem Pádua, pai de Capitu, é outro típico representante do homem comum, funcionário público, que tenta sobreviver em meio às contradições da segunda metade do século XIX. Sua casa, obtida através de um golpe de sorte “um meio bilhete de loteria” (p. 825), se situa ao lado da dos integrantes da família Santiago, mas ele não pertence à mesma classe social dessa família. Através dele, pode-se perceber um outro tipo de brasileiro: aqueles que não são privilegiados mas, ao mesmo tempo, também não são agregados, como é o caso de José Dias. Pádua era um empregado “em repartição dependente do Ministério da guerra” (p. 825). Seu trabalho mostra como funcionava a burocracia do Império e como esta proporcionava meios de vida a algumas pessoas da população. No capítulo, “O administrador interino” (p. 825) há um saboroso relato sobre o pai de Capitu. Além de sabermos mais sobre o funcionamento da repartição onde trabalhava, Machado já nos apresenta pequena investigação sobre a natureza humana.
O fato se dá quando o personagem assume um cargo interino – que julgava seu por tempo indeterminado –, passa a receber mais e a usufruir de um modo de vida mais confortável. Quando o chefe retorna, porém, e novamente tem de voltar ao posto anterior, Pádua não quer perder a pose e ameaça suicidar-se. O peso da opinião dos conhecidos o atormenta. Ele, que galgara alguns degraus acima da condição ordinária – inclusive com sapatos de verniz –, sente a vaidade ferida. No fim do capítulo, tudo se resolve não só devido à intervenção de D. Glória, mãe de Bentinho, como também pela presença de amigos. Mais tarde, a interinidade se transformara em motivo de orgulho, porque é citada por ele em conversas informais como referência temporal aos fatos que lhe ocorreram à volta. O cargo provisório, mesmo que exercido e findo, ainda lhe proporcionava uma ponta de orgulho.
O capítulo sobre “Tio Cosme” é outro exemplo do modo de vida de quem trabalhava, agora em meio às profissões ligadas à Justiça. É importante observar que o bacharel em direito já é uma figura importante no Brasil, desde o Império, e Machado não deixa de apontá-lo. Tio Cosme emite algumas opiniões sobre a vida política contemporânea a ele e sobre a anterior, a da Regência, no caso a do Governo Feijó: “Governou como a cara dele.” (p. 812)
O personagem revela quase sempre bom-humor e também opina sobre assuntos inerentes à religiosidade, como a promessa da irmã: “[...] – Mas, olhe cá, mana Glória, há mesmo necessidade de fazê-lo padre?” (p. 812).
Essa mesma religiosidade, presente de modo geral nos brasileiros, permeia grande parte do romance. Além da promessa de D. Glória, há a freqüência do padre Cabral, como amigo da família e professor de Bentinho, à residência dos Santiago; encontramos referências ao meio eclesiástico, como a padres, bispos e até ao papa. Bentinho, durante a infância, brinca de celebrar missas com Capitu; e, por fim, a solução arranjada para livar o personagem da carreira sacerdotal é interessante porque se percebe as acomodações religiosas em meio às necessidades de não desagradar a classe dominante, que proporcionava boas doações à Igreja.
No romance, grande parte de tudo que compõe o Brasil está presente. Temos até mesmo o Imperador a interceder, embora de modo imaginário e na mente do narrador, a favor de nosso herói. Há, portanto, todo um painel do tempo.

Paixões e caracteres
“Pelo que respeita à análise de paixões e caracteres” (p. 805, v. 3) como pleiteava Machado, o capítulo XII, “Na varanda”, é revelador. Bentinho se põe a descobrir, depois das palavras de José Dias, o envolvimento afetivo com a amiga Capitu. É interessante a personificação de elementos da natureza: um “coqueiro velho”, está a conversar e opinar, assim como “pássaros, borboletas e uma cigarra”; na verdade, contudo, é o próprio protagonista que está a dialogar consigo sobre a descoberta do amor e de seus sentimentos pela menina (pp. 820 - 821).
Os capítulos 31, 33, 37 e 38 traçam a personalidade de Capitu. Nessas passagens quase não se nota um descolamento (ou afastamento) dos fatos narrados (enunciado), por parte do narrador. Aqui, não é o ensimesmado e velho Casmurro, já contaminado pelo ranço do passar dos anos, mas alguém embevecido com a descoberta do amor.
Os pequenos gestos e artimanhas de Capitu nos auxiliam a compreender a construção da personagem. Em alguns momentos, o narrador ressalta atitudes que revelam algum caráter ardiloso da menina ainda na fase adolescente. Mas a narrativa em primeira pessoa torna tudo suspeito; o que se pode constatar é o caráter complexo e ambíguo (Machado o utiliza como mais alta literatura) que o autor estabelece através das palavras do narrador. A metáfora “olhos de ressaca” poupa a Bento Santiago explicações maiores sobre a adolescente. E há de se sublinhar que a metáfora marítima revela toda a insegurança dele, que teme se ver arrastado. Daí que a definição atribuída a Capitu define mais que tudo o temor do narrador em se ver dominado e levado pela incerteza ou, talvez melhor dizendo, pela intempérie do caráter feminino. Ele não admite ser conduzido:
[...] Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá idéia daquela feição nova. Trazia não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como uma vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros, mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía dela vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me. (p. 843)

No mesmo parágrafo, há dois vocábulos reveladores, são eles: felicidade e suplício.
Quantos minutos gastamos naquele jogo. Só os relógios do céu terão marcado esse tempo infinito e breve. A eternidade tem suas pêndulas; nem por não acabar nunca deixa de querer saber a duração da felicidade e dos suplícios. (p. 843)

Nessa passagem, as duas palavras – que são de significados contrários – se referem ao que experimentou Bentinho naquele momento; o personagem percebe o perigo em que se encontra, mas não deixa de se sentir atraído. Há também, nas linhas que se seguem, uma genial referência a Dante:
[...] Há de dobrar o gozo aos bem aventurados do céu conhecer a soma dos tormentos que já terão padecido no inferno os seus inimigos; assim também a quantidade de delícias que terão gozado no céu os seus desafetos aumentará as dores dos condenados ao inferno. Esse outro suplício escapou ao divino Dante; mas eu não estou aqui para emendar poetas. (p. 843)

Tais divagações discutem a complexidade da natureza humana, que não deixa de ser contraditória. Do mesmo modo, podemos observar que a felicidade e suplício também dão o tom de todo o livro. Não podemos negar que Dom Casmurro seja uma narrativa de um relacionamento amoroso que transita nessa via. A referência a Dante impregna a obra de atmosfera universal, já que é oportuna, embora o narrador diga que não está a “emendar poetas”. O argumento apresentado por Machado é pequena pérola que dá ao romance foros de literatura universal.

O sensual em Dom Casmurro
Machado de Assis, ao criticar Eça em O primo Basílio, diz que um dos principais problemas deste romance é a personagem Luísa. O autor brasileiro a nomeia de títere, alguém manipulado totalmente pelos outros, personagem que não possui “músculos” ou “nervos”. Pelo contrário, as personagens machadianas primam pela personalidade. A principal criação feminina em Dom Casmurro, Capitu, demonstra determinação desde a idade juvenil. Grande parte da trama para que Bentinho se veja livre do seminário é arquitetada por ela e, durante todo o tempo em que ele se vê no colégio, a moça cumpre bem um papel muito político, que é o de conquistar a simpatia de D. Glória. (“Intimidade” p. 877). Se há alguém que, em determinado momento, se deixa levar é o narrador. Ele não age diretamente, não quer ferir a mãe, espera por pessoas como José Dias, que não é de total confiança. Mas não podemos dizer que esse narrador é uma marionete. Ele tem certeza de que foi traído (ao menos para ele) e toma atitudes extremas, que resultam no exílio de Capitu e do filho.
O caráter inexplicável de algumas atitudes das personagens machadianas comprova o aprofundamento do romance de análise. Percebe-se isso em dois momentos. O primeiro ocorre no capitulo em que Capitu não se defende da acusação de adultério, aceitando passivamente o exílio; o segundo, quando Sancha aperta a mão de Bento Santiago de modo sensual e enigmático.
Machado aproveita alguns enigmas relativos à própria natureza humana que talvez nunca tenham sido decifrados e os utiliza sem também os tentar decifrar ou nos dar respostas.
Ao criticar O primo Basílio, de Eça, o autor brasileiro diz que há na narrativa um certo sensualismo e que este é a “medula” do romance; não perdoa as cenas “cruas” que focalizam as personagens. O que nos interessa para finalizar essa apreciação é o modo como o universo das sensações se dá em Dom Casmurro. Entende-se aqui, aliás, sensações como percepções ligadas aos sentidos físicos.
No romance de Machado há, em primeiro lugar, os beijos que Capitu proporciona a Bentinho; o primeiro ocorre quando este acaba de pentear-lhe os cabelos; o segundo, num momento em que o pai da moça está prestes a entrar no cômodo onde os dois se encontram.
Vejamos o primeiro em: “O penteado” (cap. 33):
– Levanta, Capitu!
Não quis, não levantou a cabeça, e ficamos assim, a olhar um para o outro, até que ela abrochou os lábios, eu desci os meus, e...
Grande foi a sensação do beijo; (p. 844)

A cena revela a descoberta de algo novo, algo ainda inefável para a idade que tem Bentinho. A passagem não resvala num sensualismo vulgar, mas mostra a descoberta do amor, de um sentimento que vai torná-lo ainda mais próximo à amiga.
[...] Capitu ergueu-se rápida, eu recuei até a parede com uma espécie de vertigem, sem fala, os olhos escuros. Quando eles clarearam vi que Capitu tinha os seus no chão. Não me atrevi a dizer nada; ainda que quisesse, faltava-me língua. Preso, atordoado, não achava gesto nem ímpeto que me descolasse da parede e me atirasse a ela com mil palavras cálidas e mimosas... ( p. 844)

São poucas as vezes em que o tocar de corpos apresenta-se na narrativa machadiana e quando isso acontece é porque trata-se de passagem que se suprimida faria muita falta no universo do romance. A cena do beijo consagra a determinação e personalidade de Capitu, características fundamentais na construção da personagem e no desenrolar da intriga, enquanto monstra um Bento Santiago ainda ingênuo e sem a possibilidade de domínio do próprio destino.
O final do capítulo 37, "A alma é cheia de mistérios", focaliza novamente outro beijo dado por Capitu a Bentinho. A cena se desenvolve de modo muito parecido com a anterior, só que aqui é o narrador que de mãos dadas à menina tenta beijá-la. Mas ela não cede, pelo menos por momentos, fazendo-o apenas quando o pai está na iminência de surpreendê-los.
[...] Capitu, antes que o pai acabasse de entrar, fez um gesto inesperado, passou a boca na minha boca , e deu de vontade o que estava a recusar à força. Repito, a alma é cheia de mistérios. (p. 849)

No trecho, não só há um reforço à personalidade de Capitu, como encontramos insinuações do narrador de que a moça é plena de ardis; a inteligência dela suplanta as habilidades desse mesmo narrador, o que vai dar margem a que, mais tarde, quando Capitu já for sua esposa, se pense de forma desabonadora em relação a ela.
Os capítulos 102 e 103 tratam da lua de mel dos dois. Machado investe nesses capítulos não com a intenção de nos relatar a intimidade do casal, não há sequer uma cena de beijo entre eles. Apresenta-nos o cenário da Tijuca, como de ideal acolhimento para tal tipo de retiro; mostra-nos a natureza se alternando entre chuva e sol. E o máximo de – o que se poderia chamar de sensualismo – aproximação física que se dá entre eles é o momento em que Capitu tem entre as mãos o rosto de Bentinho. Mas na verdade trata-se de um gesto de mais pura inocência. O ambiente é tão familiar que, em plena lua de mel, eles recebem a visita de José Dias.
Pelo menos outros três momentos poderiam ser apontados como de sensualismo no romance. O primeiro está no capítulo 105, “Os braços” (p. 910), em que o narrador sente ciúmes dos braços nus de esposa, durante os bailes que freqüentam. Capitu acaba por dizer a ele que passará a sair com os braços cobertos. Mas é o ciúme do narrador que já se põe a crescer logo após estarem casados e viverem a felicidade dos primeiros anos. O outro episódio que revela o sensual é a qualificação que Bento dá ao olhar de Capitu quando ela olha o defunto Escobar, já no caixão e prestes a ser levado. Diz Bento:
Momento houve em que os olhos de Capitu fitaram o defunto, quais os da viúva, sem o pranto nem palavras desta, mas grandes e abertos, como a vaga do mar lá fora, como se quisesse tragar também o nadador da manhã. (p.927)

Além de aqui haver a volta dos olhos de ressaca, talvez o que mais insinue o elemento sensual seja o vocábulo "tragar". Mais uma vez é importante salientar que tudo é dito por alguém que é parte interessada nessa narrativa; assim, tudo que poderia ser chamado de sensual, torna-se necessário para acentuar a natureza do personagem-narrador, um ser mergulhado em um ciúme doentio.
Por último, temos o episódio a que já nos referimos; o do olhar e toque de mãos entre Bento e Sancha (cap. 118, “A mão de Sancha”), no dia anterior à tragédia. Pode-se perceber através desse capítulo todo um desdobramento mental do narrador a respeito do significado dos gestos da mulher do amigo. Tal passagem é importante porque embaralha as concepções de Santiago a respeito de insinuações amorosas e possíveis traições, o que nos leva a tornar suspeita a interpretação dele à respeito da possível traição da esposa.


Através desses trechos da obra de ficção de Machado de Assis, percebe-se a realização de tudo aquilo que o autor especulou nos seus escritos de crítica literária. É indiscutível que o escritor brasileiro tenha como obra maior os romances – sobretudo os publicados num período em que predomina o amadurecimento de sua obra –, mas não deixa de ser interessante perceber que Machado conseguiu realizar no árduo terreno da crítica literária um receituário e uma preparação, para que ele próprio atingisse a realização plena, tornando-se um autor que atuou com sucesso em praticamente todos os campos da escrita. O que imprimiu como modelo de obra de arte a ser perseguida, perseguiu-o ele próprio, com empenho e genialidade.
Da mesma forma, não se pode dizer que o autor brasileiro deixou de lado as cores de seu país. Talvez o que não perceberam alguns de seus críticos é que ele tenha dado a elas contornos universais.
Referências bibliográficas:
MACHADO DE ASSIS. Obras Completas. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1979, vol. I.

MACHADO DE ASSIS. Obras Completas. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1979, vol. III.