quinta-feira, agosto 06, 2009

Romance da alemã Juli Zeh tem como base a filosofia de Nietzsche

Haron Gamal*, Jornal do Brasil

RIO - Há uma passagem em A menina sem qualidades, de Juli Zeh, em que Alev, um estudante de 18 anos (meio egípcio, um quarto de sangue francês, cresceu na Alemanha, na Áustria, no Iraque, nos Estados Unidos e na Bósnia-Hezergovina) entra junto com Ada, uma menina de quinze anos – sua cúmplice – na sala de informática do colégio onde estudam, senta num boxe e grita: “Heil Hitler!”.

Tais dizeres não significam qualquer tipo de saudação neonazista, mas sim um teste: ambos praticam, naquele momento, um jogo arriscado, e o rapaz deseja se certificar de que os outros jovens que ocupam o mesmo local o estão escutando. Após o chamado e após perceber que ninguém lhe dera a atenção – todos estão mergulhados na rede e com fones no ouvido – ele deduz que pode conversar à vontade com sua companheira de turma enquanto instala um programa clandestino na página da escola, possível de ser acessado por uma senha que apenas ele e Ada conhecem e, mais tarde, o professor chantageado.

Fato periférico

O breve episódio – o fato de ter gritado o nome de Hitler – é periférico na longa narrativa de 508 páginas, mas a autora, ao colocar a saudação na voz de um jovem não-alemão, alguém oriundo do mundo árabe e com passagem por vários países, não cometeu a ação por acaso. É a única vez em que o nazismo é mencionado, e em apenas um momento do romance insinua-se sobre a Segunda Guerra.

O comparecimento da saudação, no entanto, deixa o leitor de sobreaviso. A história é ambientada numa Alemanha pós-11 de Setembro e contemporânea aos atentados de Madri. O romance também não salta em flashbacks com o objetivo de investigar o passado recente do país. Portanto, o que poderia nos revelar a saudação?

Mesmo tendo em consideração as atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra, seria o comportamento dos jovens naquela sala, isolados entre si através de suas torres e fones, imersos cada um no seu próprio mundo, semelhante ao comportamento alienado do mesmo povo durante os anos do Reich? Estariam todos contaminados pelo pior flanco da mundialização e entregues mais do que nunca à ideologia de mercado, fato que leva os dois protagonistas a encetar uma aposta em que o único objetivo digno da existência é um tipo de jogo? Talvez seja isso que leva Ada a dizer que é uma mulher sem alma, isto é, sem essência e consequentemente sem particularidades.

Aqui precisamos falar sobre outro livro, também pertencente à cultura germânica e que declaradamente serve de matriz para o romance em questão: O homem sem qualidades, de Musil. Maurice Blanchot, em um artigo que fazia parte da coletânea O livro por vir, diz o seguinte: “O homem sem particularidades é o homem que tem, por vocação e por tormento, de viver a teoria de si mesmo, o homem abstrato que não é e não se realiza de maneira sensível”.

O mesmo Blanchot, ao discutir a tradução do título do livro de Musil para o francês, acrescenta: “Acho que eu teria ficado com a tradução mais simples, a mais próxima do alemão e a mais natural em francês: L'homme sans particularités [O homem sem particularidades]. A expressão 'o homem sem qualidades', embora de um uso elegante, tem o inconveniente de não ter sentido imediato, e a de deixar perder-se a ideia de que o homem em questão não tem nada que lhe seja próprio: nem qualidade, nem tampouco nenhuma substância. Sua particularidade essencial [...] é de que ele não tem nada de particular. É o homem qualquer, e mais profundamente o homem sem essência”. Embora seja outro o contexto em que o autor vienense escreveu seu extenso livro, enfocando a perda dessas particularidades diante do fim do Império Austro-Húngaro e da marcha da modernidade, o livro intensifica a questão.

Ada afirma: “Somos netos dos niilistas”. Mais adiante, ao depor em defesa de um amigo: “Pode acreditar em mim quando digo que me interesso muito pouco pela minha alma quanto pela sua ou pela de qualquer outra pessoa. Eu nem sequer acredito na existência dela. 'Alma' é um nome para a tentativa famigerada dos homens de se elevar por sobre o mundo dos objetos. [...] Mas quem se atreve a dizer que os homens não têm alma, colocando-o no mesmo nível dos outros fenômenos móveis e imóveis daquele conglomerado de causalidades que estamos acostumados a chamar de 'mundo', porque soa bonito e não diz nada, este se torna suspeito de ser um misantropo, um apoiador da eutanásia e um fã da tecnologia genética, mas, antes de tudo, um ser humano frio. Como se a alma fosse a sede do bem no ser humano! Uma alma é um espaço vazio retorcido em forma espiral, por dentro do qual voa uma bala de pistola. Onde está a alma quando os alemães marcharam em direção a todos os pontos cardeais a fim de molestar metade da crosta terrestre espalhando morte e destruição? Onde está ela quando crianças jogam futebol com as cabeças decepadas de outras crianças?”.

Pacto fáustico

Por isso, a ausência de particularidades revelaria um homem que não vive mais o mundo sensível nem se incomoda com a existência de sentimentos nobres. Talvez seja essa questão que faz o tradutor Marcelo Backes dizer, no seu esclarecedor posfácio, que “Ada faz com Alev um pacto fáustico sem precisar dar em pagamento uma alma que já não tem”. O romance tem como base filosófica Friedrich Nietzsche, com os conceitos de “vontade e poder”, “eterno retorno”, “super-homem” mencionados diretamente. O conceito predominante, no entanto, parece ser o de “amor fati”, única saída num mundo desprovido de crenças e ilusões. “Amor fati” significa “o dizer-sim dionisíaco em antítese à constante negação promovida pelo cristianismo”, segundo Backes.

A narrativa possui várias outras referências à filosofia e à literatura. A história, suas marchas e contramarchas, conceitos e definições também comparecem através do professor Hofi, um dos personagens mais interessantes do livro, depois de Ada, e que vale a pena ser observado com atenção.

O enredo poderia se resumir ao seguinte: uma aluna recém-chegada ao colégio Ernst Bloch (Bonn, Alemanha), mostra-se o contrário das princesinhas de plantão, tanto fisicamente como em leitura e conhecimentos, sendo capaz de duelar e vencer os professores mais perspicazes. Mas dizer que a questão se limita a isso é diminuir, e muito, o valor da narrativa. O que vai intensificar o conflito é a chegada de outro personagem, cuja teoria de vida nada mais é do que um grande jogo, em que predominam instintos de sobrevivências e não a existência de valores. Os dois, juntos, vão chantagear Smutek, um polonês imigrante, professor de germanística.

A narradora é uma surpresa a mais, o que mostra a perda de rumo da justiça, num mundo onde não há mais em que se ancorar. A menina sem qualidades revela a grande cultura dos escritores europeus de nova geração, como Juli Zeh, que conseguem perceber os instrumentos de dominação e dissecar os mecanismos de funcionamento de uma sociedade em que não mais existem parâmetros para nenhum tipo de crença ou valor.

* Professor de literatura e doutorando em literatura brasileira pela UFRJ

23:22 - 10/07/2009