terça-feira, novembro 04, 2008

O flâneur de Walter Benjamin pelas ruas de Copacabana: João Antônio
João Antônio retrata em seus contos o homem comum, o homem do povo, aquele sobre quem pesa o maior fardo. Na história da literatura, a presença do homem do povo como protagonista é coisa recente. As artes de modo geral e, no específico, a literatura sempre comportaram apenas heróis oriundos de casas reais, e de preferência do sexo masculino. Seus feitos eram considerados grandiosos, mas, se eram assim classificados, o fato não se dava porque o homem comum seria incapaz de realizá-los, mas porque os heróis descendiam de “dinastias” de longa estirpe. As ações levadas a cabo por eles não deixavam de render fama para si, mas, ao mesmo tempo, conduziam os que lhe estavam próximos a uma certa distância do perigo.
Podemos exemplificar esse tipo de herói voltando à Antigüidade Clássica. Ali, um Aquiles ou um Ulisses aparecem com coragem e força descomunais, capazes de levar avante ações heróicas. Por que essas empreitadas só eram possíveis a eles? Talvez devido à origem desses homens. Nesse tempo, na representação artística, quem os pratica é alguém de origem nobre.
Durante muitos séculos, o herói foi, de modo geral, alguém dessa espécie, um homem de origem nobre, um rei, um príncipe, ou alguém ligado à casa real. Na modernidade, esse tipo de herói entra em decadência. Não é difícil saber o motivo. A burguesia inicialmente tem o poder econômico e, algum tempo depois, o poder político. Como continuar colocando alguém da nobreza no papel de herói se os nobres estavam em derrocada?
A Antigüidade Clássica, então, jazia enevoada num passado distante e idealizado; a nobreza do momento, em crise quase permanente.
Num primeiro momento em que se prenuncia a modernidade, logo após o Renascimento, já se antevê as engrenagens assumindo o papel que caberia ao herói. O mundo começa a mover-se em direção à técnica; quem a domina tem predominância sobre os outros. Embora algumas realezas se beneficiem da expansão marítima, logo se vê que seus domínios não durarão. Com a expansão comercial, lucra a burguesia, mestra na arte do comércio.
No final dos setecentos, levada a cabo a Primeira Revolução Industrial, já, em definitivo não há lugar para o herói. Por isso o vemos representado a princípio como um herói do passado. No presente, a quem caberá esse papel? Quem teria a força de um Hércules, a astúcia de um Ulisses, ou a habilidade de Aquiles?
Talvez tenha chegado a hora do homem do povo. Apesar da vida medíocre, vida de exploração a que é submetido, sem mesmo tempo para o descanso e com a saúde sempre debilitada, ele é o único que tem a força para levar o mundo adiante, mesmo que de forma não consciente, mesmo que aderindo ou não, já no final do século dezenove, ao marxismo.
Walter Benjamin observa essa questão e vai estudar esse tipo de herói no texto “A modernidade”, onde aborda a obra de Charles Baudelaire. Vejamos alguns recortes do que diz o filósofo a respeito desse herói:
O herói é o verdadeiro objeto da modernidade. Isso significa que, para viver a modernidade, é preciso uma constituição heróica. (p.73)
Baudelaire [...] reconhece no proletário o lutador escravizado.(segundo Baudelaire, apud Benjamin) é impossível não ficar emocionado com o espetáculo dessa multidão doentia, que traga a poeira das fábricas, inspira partículas de algodão, que se deixa penetrar pelo alvaiade, pelo mercúrio e todos os venenos utilizados na fabricação de obras primas. (p.73)
Aquilo que o trabalhador assalariado executa no labor diário não é nada menos do que, na Antigüidade, trazia glória e aplauso ao gladiador. (p. 74)
O herói é o verdadeiro objeto da modernidade. Isso significa que para viver a modernidade, é preciso ter constituição heróica. (p. 73)
Os poetas encontram o lixo da sociedade nas ruas e no próprio lixo o seu assunto heróico. (p. 78)
Tais citações nos bastam para que possamos estudar um pequeno aspecto da obra de João Antônio. Escolhemos para esse fim o livro em Ô Copacabana!, sobretudo o trecho em que privilegia a então galeria Alaska, páginas 39 a 50.
O bairro, um dos mais característicos do Rio, é retratado pelo autor de Malagueta, Perus e Bacanaço como um bairro onde se mistura todo tipo de gente. A galeria, citada no conto, até os anos de 1970 era um conglomerado de comércio a varejo, bares e boates. O freqüentador do local de modo geral era o homem ou a mulher do povo, ávido por algum tipo de prazer ou divertimento. Dentre esses predominava um número muito grande de malandros, vadios, pequenos aproveitadores, homossexuais masculinos e femininos etc.
Eis como João Antônio caracteriza o bairro, a galeria e as personagens:
[...] esta hora cinza, chumbo carregado, hora parada, neutra, a que os boêmios, os pederastas, os artistas da noite, as mulheres e seus cáftens, as curriolas da galeria chamam de rabo da manhã.
Sete da noite, quando Copacabana troca de mão, num golpe, na muda da turma de garçãos, barbeiros, balconistas, motoristas de táxi, botequineiros, e o resto dos serviçais, a luz elétrica acende o olho diferente, vesgo da noite na galeria.
A moçada sai da Zona Norte ou dos subúrbios lá longe, toma suas luzes como modelo de vanguarda no Rio. No bairro se sabe vestir bem, comer bem, beber o melhor. E os meninos, cabeça cheia, começam a descer dos ônibus xexelentos, vindos do outro lado da cidade, o bravo e esquecido, onde moram três quartos das gentes do Rio de Janeiro. Sem praia e sem recreio. A meninada principia na galeria Alaska, certa de que com o físico, juventude, gingas, bossa, conseguirá o melhor em mulheres, boates, facilitações e exuberância.
O trecho começa com o amanhecer no bairro, o conto descreve os primeiros empregados que chegam dos subúrbios distantes, o caminhão com o entregador de leite, os bares iniciando o expediente, as lojas se abrindo, o acordar dos moradores e também os vagabundos que vivem do esforço alheio. O autor observa a vida dos trabalhadores da galeria: zeladores, seguranças, manicuras, copeiros, barbeiros, vendedores ambulantes etc, como também a dos moradores do prédio acima da galeria, apelidado de balança; estas pessoas fazem o papel de classe média, mas na verdade vivem em dificuldades, cuidando para que a máscara da aparência não descole. A vida marginal não é desprezada. Seres humanos emigrados de bairros distantes, que viverão às custas de alguém, muitas vezes mesmo de modo humilhante, apenas para livrar-se do modelo de vida provinciano e sem perspectiva da Zona Norte, ou da Baixada Fluminense.
Todos esses personagens são tratados senão com simpatia, ao menos como seres capazes de direcionar a própria existência. João Antônio não os julga. Apesar de rotulá-los, não os condena dentro do moralismo predominante, mesmo no momento em que o esforço de cada um deles na luta pela sobrevivência redunde em fracasso.
O caráter heróico desse flâneur da pós-modernidade está em demonstrar força suficiente para o que der e vier, a troco de que consiga ascender socialmente, ou ao menos viver de modo melhor do que vivia outrora. Copacabana está mais próxima de uma Nova York, uma Londres, ou uma Paris, do que da localidade distante de onde provém esse herói, que não sucumbe por antecipação.
O homem comum anda pelo bairro, observa as mulheres, olha as vitrinas, procura oportunidades. Alguns se agarram ao pequeno emprego, outros biscateiam para, durante a noite, escapar em uma boemia que há de recompensar o esforço. Tudo em troca de uma vida que lhes afigura senão heróica, ao menos uma vida de Zona Sul, local badalado, centro de poder econômico e de emancipação social, ao menos em teoria. O simples cidadão sabe construir abstrações.
João Antônio poderia ser esse flâneur que Benjamin retrata na modernidade baudeleriana. Não estaria deslocado no tempo nem no espaço, porque observa a decadência de um sistema e também constata que, na verdade, o lugar do herói continua vago; e se por acaso em algum momento o homem do povo o preenche é através das mãos do artista que o transforma em ser que resiste, ao menos nessa arte de representação chamada literatura.
Referências bibliográficas:
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas III – Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. Tradução de José Carlos Martins Barbosa e Hemerson Alves Baptista. São Paulo: Brasiliense, 1994.
ANTÔNIO, João. Ô Copacabana! Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.

Nenhum comentário: