quinta-feira, dezembro 09, 2010



“O fim abraça tudo”, menos a poesia

A primeira parte do livro Loja de amores usados, de Carmen Moreno, chama-se "Morte Versus Vida", eis um trecho do primeiro poema, Movimento: "O fim abraça tudo / que mal se inicia. / Qual feto morto, / na barriga do dia." Versos prenunciando a vitória da morte, que, inclusive, aparece em primeiro lugar no próprio título. Poderíamos pensar que para essa devastação impossível de ser contida nada restaria. Mas, mergulhando livro adentro, envolvendo-se no ardor da hora poética, logo se percebe que essa morte, que a tudo e a todos devora, não consegue levar consigo a poesia. Permanece esta como marco de uma vitória, como a vida dos deuses olímpicos, que se não eram tão eternos assim, ao menos o são enquanto duram. E duram até hoje.

Num idioma que, entre tantos poetas difíceis de serem hierarquizados, há um Camões e um Pessoa, a própria opção de escrever poemas torna-se uma temeridade. Mas Carmen Moreno arrisca-se, não teme o desafio, parecendo talhada para tal ofício. A epígrafe inicial, colhida na obra de João Cabral, aponta o propósito: "gosto de chegar ao fim, de atingir a própria cinza."

Em tudo que escreve, ela não deixa ideias nem modos de dizer na superficialidade:

"Ninguém parte: aparta-se de nós / apenas o palpável. / Perde-se a casca densa do amado ser. / Seus sonhos, mirados do Alto, / a terra não morde."

"Arriscar é ser mais que o medo."

"Busco o poema como quem se esparrama, / tateando a cama vazia. / Quero, no colo da palavra, / a cor que falta no dia."

Na segunda parte, "Ecos da Casa", os poemas percorrem o universo da memória:

"A família se esvai, / por entre os dedos dos anos. / Encardida fotografia. Grande útero decomposto."

Trata-se, na verdade, de uma memória drummondiana, lembranças que não apenas transmitem saudade, amargor de uma vida sempre vulnerável a perdas, a separações, ao silêncio, mas essa memória também revela o peso da ancestralidade, que permanece em cada um e que é impossível ser descartada.

"A família tomba sobre nós com seus guardados. / Quem seríamos, sem tantas vozes compondo nossos passos?"

Versos que nos lançam à presença perene daqueles que nos antecederam, presenças em pequenos gestos, olhares, palavras perdidas, impossível se livrar do passado, impossível a autossuficiência:

"Meu pai morava no desamparo. / Sorte, que a casa amparava sorriso nas frestas de cal, / nas tréguas do caos. / E havia alegrias resistentes nos cantos dos quartos, /

nas rosas das janelas... / E havia o movimento dos irmãos, / e as mãos da mulher partindo pedaços de pão, / para não perdermos o caminho."

Mais adiante:

"Tenho minha mãe entre as pernas, / Há anos tento pari-la, pari-la de mim, / mas minha mãe não se desgarra."

E, ainda uma vez, a própria poesia surge (metaforicamente, é claro) como um meio de salvação, uma barreira capaz de nos proteger das mazelas do dia-a-dia:

"Vem, poema, me salva do sorriso de minha mãe, / da loucura da minha irmã."

Momento em que alegria e loucura se unem, porque, tanto no universo familiar quanto no percurso da memória, a palavra surge como meio de organização do mundo, não a palavra comum, mas a da poesia, a palavra surpreendente, a palavra até mesmo impossível.

Na terceira parte, "De Cama e Cortes", o livro enfoca o papel do amor, também como antídoto à solidão, ao caos provocado pela inexplicabilidade da vida. A sedução se faz presente como tentativa de driblar a morte:

"Os amantes se penetram. / Injetam-se no outro, e perdem o rosto."

"De que recanto do amor o pássaro da morte / levou no bico o teu beijo."

A temática da morte, como nos grandes poetas de nossa língua, quase sempre se faz presente no texto de Carmen, ora apontando a dualidade amor versus morte, ora vida versus morte, que na verdade tem como origem o próprio amor.

Apesar da divisão do livro em partes, torna-se impossível ocultar temas recorrentes. Memória, amor e morte sempre reaparecem para configurar uma tessitura poética coesa.

"Acariciar sonhos, / enchendo gavetas de guardados. / Amarelados papéis, roídos por baratas e tempo."

A última parte, "Sobre Saias e Sobre (saltos)” enfoca especificamente a condição feminina, apresentando questões do tempo, que apontam o papel da mulher na contemporaneidade:

"A mulher que mora em mim tem tantos mundos, / que todos os homens sou eu." Aqui a mulher tornando-se uma entre todos os gêneros.

"O amor roçou no tempo até esgarçar-se de vez, por excessos. / Quando caminho as coxas roçam uma na outra, por excessos. / Cortar gorduras é exercício estóico (às vezes esmoreço e espreguiço). / Mas tenho apreço pela assepsia da alma: limpo desde menina o lixo entranhado na história."

Ou ainda:

"escondo a barriga sem lipo, / mas a alma - renovada - mostra a cara."

Neste trecho, apresentam-se as exigências da modernidade em oposição ao desejo do eu poético pela autenticidade.

E há também a crítica ao universo masculino, este equilibrado no fio tênue entre o desejo do macho e sua fragilidade, a inobservância do masculino pelo próprio reflexo, difícil de ser admitido:

“viril de crachá / ele é macho de etiqueta / lançar-se no pódio / é sua muleta / Para qualquer suspeito / ele arma sua mira / persegue o gay / que o espelho lhe atira!”

Carmen Moreno é autora de vários livros, tanto de ficção como de poesia. Este Loja de amores usados vem apenas confirmar um talento que há muito se destaca, e revelar uma poeta que sabe trabalhar tanto com os temas universalmente abordados pela poesia, como com aqueles que fazem parte do tempo presente.

Loja de amores usados

Carmen Moreno

Editora Multifoco, 119 páginas

Encomendas: vendas@editoramultifoco.com.br

quinta-feira, dezembro 02, 2010

A capa da Fama

Em seu primeiro romance depois da consagração com ‘O filho eterno’, Cristovão Tezza constrói personagem que é um escritor famoso e inseguro

Um escritor ao desamparo, pode-se dizer sobre o tema do novo livro de Cristovão Tezza. O personagem principal é um autor já famoso, ganhador do prêmio Jabuti. Ele se vê numa cidade estranha, Curitiba, para onde fora divulgar o novo livro. Na primeira noite na cidade conhece uma mulher chamada Beatriz, por quem logo se apaixona, convidando-a para ser sua secretária, uma espécie de leitora especial para o livro que pretende lançar em breve. No dia seguinte cancela a viagem de volta e, à noite, vai à casa dela com uma garrafa de vinho. Ao chegar diz: “cometi um erro emocional. Eu me apaixonei por você”. Dali surgirá um embate tenso, não propriamente permeado por palavras, mas por silêncios, pensamentos, diálogos com personagem imaginários, discussões consigo mesmo a respeito do que o outro traz à mente, ou de que carta esconde na manga.

Os dois personagens se colocam frente a frente, tendo como pretexto a literatura, mas o que escorre nesse fio de lágrimas, vinho e sangue é a vida de cada um, o desamparo a que ambos estão submetidos, à intensa solidão que compartilham sem o saber. O tempo em que os dois se movem é curto, uma noite apenas, mas o suficiente para que, em monólogos interiores, em fluxos de pensamento, saiba-se sobre a origem de cada um, suas dores, inquietações, traumas, perdas e a relação com outros personagens adjacentes, sobretudo os que lhes infernizaram a vida.

O escritor, admirado por sua leitora voraz chamada Beatriz, não demonstra ser o mesmo quando despido da pele de autor. Ele é alguém premiado, admirado por todos, mas na vida cotidiana é de uma terrível fragilidade, um autista, como pensa a personagem que o confronta, nem é capaz de chegar à janela para admirar a vista lá de cima.

A pretexto de discutir literatura, o que vem à tona é a necessidade de espantar os fantasmas do passado representados pela ex-mulher e pelo filho que o ignora. Para tirar a diferença, há Beatriz, a nova mulher, com quem ele tem esperança de recomeçar. Ela também tem seus problemas, mas parece saber lidar melhor com a solidão.

Cristrovão Tezza apresenta também como questão neste livro a precariedade do homem que se encontra sob a capa da fama, alguém cujos leitores costumam ver como uma espécie de super-homem. Um artista, uma vez que cria personagens tão fascinantes, não seria possível em pessoa ser tão medíocre. Mas é isso que acontece. À medida que a noite se esvai, à medida que a garrafa de vinho se esvazia, intensifica-se o temor pela chegada da hora da despedida. Cria-se então sempre um pretexto para se ficar mais um pouco: uma xícara de chá, um café bem forte, uma nova garrafa de vinho. E tenta-se de novo, recomeça-se o embate, como se o anterior estivesse sendo passado a limpo, como se existisse um meio de se escapar da solidão, do desamparo, enfim da morte.

A narrativa em terceira pessoa, tendo como contraponto os dois personagens remoendo suas memórias e, sobretudo, Beatriz a conversar com uma amiga imaginária a respeito da noite vivida com Paulo Donetti, o escritor, proporciona boa proximidade temporal, e faz desse narrador mais um espectador das angústias alheias do que alguém capaz de determinar-lhes os passos.

Um erro emocional, novo livro do mesmo autor de O filho eterno, obra anterior com que ele abocanhou praticamente todos os prêmios literários e que lhe permitiu dedicar-se integralmente à literatura, não deixa a desejar. É importante que no atual momento da literatura brasileira, escritores como Cristovão Tezza saibam sair-se bem da síndrome de seu livro mais famoso, mostrando que o risco e a fragilidade de todo autor podem servir de assunto para uma nova obra.

O escritor, nascido em Santa Catarina mas criado em Curitiba, trata com maestria esse tema, na verdade inquietações de todos aqueles que sabem que o tamanho da vaidade é sempre maior do que o do talento, de quem após colher os louros da vitória começa a beirar a repetição, a colecionar críticas desfavoráveis, acabando por se tornar um fantasma para si próprio. Seria melhor acreditar que somos eternamente geniais.


Um erro emocional. Cristovão Tezza.

Record. 192 páginas. R$ 34,90


Haron Gamal - Jornal do Brasil | Sábado, 27 de novembro de 2010

quinta-feira, novembro 11, 2010

Literatura: amor nada vago

A literatura brota onde se menos espera. É o que se pode dizer ao terminar uma primeira leitura de Amores Vagos, livro publicado pela editora Alternativa, coletânea de sete autores que um dia se conheceram numa oficina literária e depois seguiram seus próprios caminhos, publicaram e tornaram-se até certo ponto conhecidos. Esses mesmos autores encontraram-se mais de uma década depois e resolveram lançar um livro em conjunto. É essa a história desses Amores vagos. Tal decisão deve-se a um projeto em comum, ao qual deram o nome de “estilingues”. Isso mesmo, como o estilingue que no passado era feito a partir de uma forquilha e de um pedaço de borracha. Um artefato que lançava pedras. Só que o estilingue de Alexandre Brandão e de mais seis outras escritoras (isso mesmo, todas as outras são mulheres) serve para arremessar livros. Leiam-se os livros e os lancem adiante, assim a literatura circula sem os impedimentos existentes no Brasil quanto à sua comercialização e circulação. Há até uma página para cada leitor escrever seu nome, necessidade de saber por onde andam os filhos, ou, aliás, os livros, na verdade uma espécie de filhos. Não desejam perdê-los de vista.

Além do belo aspecto gráfico e do fino acabamento, como não poderia deixar de acontecer o pequeno volume traz quatorze narrativas, duas de cada autor, ou autora. A poesia comparece através de páginas em prosa, páginas requintadas, onde a palavra namora na fronteira do abismo.

Nilma Lacerda, no primeiro conto, apresenta uma menina que tem uma relação quase carnal com a leitura. A mãe, apesar da origem pobre, regala a filha com livros, a despeito da opinião contrária de outros parentes. No final, ante a desconfiança da uma tia idosa, a jovem leitora conclui: “que ingênua a minha mãe. Teolinda não, sabia dos riscos, sabia das coisas do corpo entre o livro e uma menina”.

Alexandre Brandão nos traz em “Dois lances do minúsculo amor” um homem dilacerado pelo amor não correspondido. Alguém capaz de se atirar a todos desvarios para reconquistar a mulher, ou mesmo esquecê-la: “O que me restou foi apenas aquela noite vasta e de escuridão imensurável. [...] Parei aqui, ali. Bebi até a morte. [...] Encontrei o chino. Joguei com o chino. Apostei até a alma. Perdi a alma.”

Em “Os olhos de Filipa”, Sonia Peçanha conta um episódio da infância de uma menina que se divide entre o amor por uma boneca e o esconderijo em que permanece alheia ao mundo circundante. Um incêndio, no entanto, muda-lhe o destino.

“Constelações”, de Vânia Osório, é constituído por três pequenas histórias, talvez as narrativas que mais se aproximam da poesia, destacando-se o texto “Eterna menina”, e “Noite feliz”; neste, há uma menina que se vê subitamente só no mundo, tendo como companheiro apenas seu cachorro, chamado Plutão.

Marilena Moraes adentra o universo da Internet, fazendo um personagem tímido adotar inúmeros disfarces por meio dos quais ele experimenta tudo que na vida “real” não teria coragem de experimentar. A questão principal é que no final, de tanto estar na pele dos outros, ele acaba por não saber mais quem é.

“Magnífica”, de Cristina Zarur, aborda a vida de um homem decadente que tem na paixão pela cachaça do mesmo nome o motivo que lhe resta para continuar vivo.

Miriam Mambrini, em “Um homem sem sentimentos” transita no mesmo universo de O homem sem qualidades, de Robert Musil, mas aqui criando um personagem frio, sem compaixão, cujo sentimento é despertado quando um pardal invade seu escritório e ele não tem coragem de esmagá-lo. A partir daí, tal qual um dependente químico às avessas, ele vai lamentar as oportunidades perdidas por se ter deixado vencer pelo seu lado sentimental.

A partir deste ponto, repetem-se os autores com mais uma narrativa cada um, todas tendo como motivo a temática de amores e desamores, não excluindo a perspectiva de um romance incestuoso, nem da mulher que adota a prostituição como meio de dar mais conforto à própria mãe. Não falta o tom rodriguiano, em “Quinze”, de Miriam Mambrini, quando uma mulher confessa, no fim da vida, que o único filho do casal era de outro homem, sendo prontamente perdoada pelo marido, porque este já sabia

Pergunta-se muitas vezes o que caracteriza a literatura. E em tantas outras vezes temos dificuldade de responder. O que se pode deduzir deste simpático livro é que a literatura está no constante esforço dos autores em escrever e reescrever suas histórias tentando voos lingüísticos como os que vão a seguir: “O tapa escuro da noite recebe-o na calçada” (Sônia Peçanha), “a vida tomada pelo verso, lambida pelo verso, cada palavra tomada a sal e pimenta” (Nilma Lacerda), “Não vale a pena sair de um sonho de amor, convenço-me”, (Alexandre Brandão), “Como poeta chegou perto, tão perto que, a exemplo de Ícaro, quase sucumbiu ao calor da poesia” (Vânia Osório), “Quem sabe alguém me acessa numa conexão banda larga? Teria prazer em ser plugado a qualquer hora, de passear por aí como link, viajar numa rede wi-fi, encontrar outro byte perdido, entrar com estilo em alguma formatação de vida” (Marilena Moraes), “o que é belo passa rápido. A beleza se consome em fogos de artifício” (Cristina Zarur), “Fera, meu amigo, estou fudido” (Miriam Mambrini).

Amores Vagos

Alexandre Brandão, Cristina Zarur, Marilena Moraes, Miriam Mambrini, Nilma Lacerda, Sônia Peçanha, Vânia Cardoso.

Ed. Alternativa, 142 páginas

Encomendas: estilingues. wordpress. com

terça-feira, outubro 12, 2010


Casamento
Marta desceu a escada da varanda de casa. Estava quase junto às areias da praia. Era costume seu todo dia ainda permanecer um quarto de hora na cama. Depois vestia o biquíni e descia para a beira do mar. Caso o sol já estivesse quente, ou já o sentisse na pele mesmo de modo brando, sentava-se diante do mar e admirava o horizonte. Pensava qual seria a distância em que céu e mar aparentemente se tocavam. No verão, aproveitava para mergulhar logo cedo, sentir a temperatura da água a estimular-lhe a pulsação.


O dia era especial para ela, sorriu ao lembrar-se. Aliás, toda mulher estaria feliz por viver a perspectiva de um dia como o de Marta. Como sempre, deu os passos costumeiros e foi quase até à beira d'água. Sentou e se espreguiçou. Recostou diretamente na areia sem se preocupar com os pequenos grãos que lhe grudavam na pele. Olhou para o céu. Depois de alguns segundos fechou os olhos para ouvir melhor o estouro da arrebentação. Aquela praia era um refúgio onde quase ninguém aparecia. O barulho de um vento brando e o marulhar lhe faziam constante companhia. Um ruído diferente, no entanto, atraiu sua atenção. Era um som que vinha de uma certa altura. Abriu os olhos e viu no céu uma enorme pipa. Reparou que o ruído era provocado pela resistência das as asas do objeto contra o ar. Seguiu o grosso fio que sustentava a pipa, acompanhou seu peso através de uma espécie de barriga que o cordão fazia no ar. Pela altitude, quem a conduzia não devia estar longe. Marta não quis voltar-se, gostava de estar sozinha aquela hora, preferia não dar pelo inoportuno, que pouco a pouco se aproximava.
Não demorou e surgiu-lhe o homem às costas. O condutor do enorme objeto voador era um senhor, isso mesmo, alguém de meia idade. Passou ao lado dela, a uns dez metros, não deixou de lhe desejar um sonoro "bom dia", e continuou seus passos lentos até molhar os pés e tornozelos dentro do mar.


Marta teve vontade de dar as costas e voltar para casa. Ainda não tinha feito o café, e ansiava por uma xícara. O homem, porém, tinha os cabelos grisalhos, e eram fartos. Não deixou de observá-los. Surpreendeu-se com a quantidade de cabelos para alguém que já devia ter passado dos quarenta, ou mesmo dos cinquenta. Quando ainda não resolvera levantar-se, ouviu o homem:


"Bonito, não?" Após as duas palavras, olhou na direção da pipa, fazendo de conta que apresentava o objeto à mulher. Continuou: "Custou-me dois dias de trabalho", virou-se mais uma vez para ela e sorriu.


Marta não quis ser indelicada. O homem parecia simpático. Não era um intruso qualquer, seu único interesse parecia ser suas asas voadoras.


"Belo lugar, não o conhecia, você vem sempre aqui?", sua voz límpida não levou em conta que ambos eram desconhecidos.


"Mais ou menos", foi a resposta de Marta.


Ele sorriu mais uma vez, sempre com a atenção voltada para a pipa. "Sou de Blumenau, estou viajando a trabalho, mas você não imagina como sou apaixonado por praias e pipas."


Foi a vez de Marta sorrir. Parecia sincero: apaixonado por praias e pipas. Ela achou sonora a expressão. Pelo menos não viera importuná-la como faziam os rapazes que apareciam na praia um pouco mais tarde. Aquele papagaio segurado pelo grosso cordão, aproveitando o vento que não cessava, era a verdadeira intenção do homem de meia idade.


"Carlos Alberto, desculpe-me, acordei indelicado hoje, nem me apresentei. Deve ser por causa desse mar maravilhoso e dessa pipa monstruosa", acabou de falar e Marta pode reparar seus dentes muito brancos. Parecia realmente um homem muito bem cuidado, alguém que se preocupava com os detalhes. Sim, para ela, os detalhes sempre foram o mais importante.


"Marta", pronunciou seu nome, sua voz não soou alta, mas no tom suficiente para que pudesse ouvir.


"Você é dessa região?"


"Sim e não."


"Suas respostas são interessantes: 'mais ou menos, sim e não'."


"É que não nasci aqui, mas vivo aqui desde criança."


"Agora, sim, agora você foi clara como o céu, como a luz desse imenso sol."


Marta gostou daquelas palavras. Pareciam as palavras de alguém muito feliz. Ela olhou mais uma vez para a pipa, para o longo cordão e para o homem, prestou atenção ao seu esforço de empiná-la cada vez de modo mais elegante.


"Você me dá licença, mas tenho de ir", disse a mulher. "Adeus."


Ele deixou a pipa no ar, cuidada apenas pelo vento. Segurava o cordão, mas já não olhava na sua direção.


"Ei, espere, a manhã está tão bonita, fique mais um pouco."


Marta percebeu que o rosto dele se franziu, que aguardava ansioso por uma resposta. Desejava sua permanência, mesmo que precária.


Ela voltou-se, chegou a dar uns passos, estacou e disse:


"Sabe, é que hoje é um dia especial para mim."


"Especial? Que bom saber disso! Então me conte, quero saber por quê."


Ela deu um longo suspiro, piscou os olhos, viu que uma onda maior se desfazia em espuma e vinha desordenada em direção à areia.


"Está vendo aquela casa logo ali?", apontou a ele, "é onde moro; acordei e saí imediatamente, nem tomei café. Estou seca por um café. Espere então um pouco que eu volto. Volto e prometo que lhe conto porque hoje é um dia especial para mim."


Caminhou de volta até a escadinha que levava à varanda. No meio do caminho teve a intenção de olhar trás. Queria saber se o homem a apreciava. Sua seminudez provocava. Mas seguiu. Não se deixou tomar pela curiosidade.


Quando voltou, ele estava voltado para o mar. A pipa, segura no ar; o cordão a sustentava e estava amarrado a uma pedra. O homem parecia um Buda a meditar, os olhos cerrados, alheio ao mundo à sua volta.


"Café?", sua mão direita estendia a ele uma caneca.


Alberto abriu os olhos sem se mexer. Apreciou Marta de rabo de olho. Depois, ainda vagaroso, desfez-se da posição e segurou o café.


"Obrigado!"


"Me desculpe se despertei você do seu transe..."


"Oh, nada disso, sua presença é mais importante."


"Desinteressou-se da pipa?"


"Não, claro que não. Ela é capaz de voar sozinha. Ela e o vento", levantou o rosto e a admirou. "Seu café está delicioso."


"Sou péssima cozinheira."


"Não diga? Você está sendo modesta. Gosto de café forte. Conseguiu me satisfazer. E, olhe, sou exigente."


"Os homens são exigentes, você tem razão. Muitos aceitam qualquer coisa no começo, mas depois se tornam exigentes."


"Não acredito. A única coisa que eu exijo é saber por que hoje é um dia especial para você. É seu aniversário?"


"Ah, sim, já ia me esquecendo. Prometi dizer o motivo. Não, não é meu aniversário. Hoje, vou me casar."


"Sério?", deu uma imensa gargalhada. "Não pense que estou debochando, não. Quero lhe dar meus parabéns! Que bom! Você se casa hoje? Que ótima notícia."


"Você acha mesmo ótima?"


"Claro que sim. Por que pensaria de modo diferente?"


"Geralmente as pessoas viram a cara quando uma mulher fala em casamento.
Muitos até mesmo desaconselham que se case."


"Não os ouçam. Case-se. Você será muito feliz?"


"Jura?"


"Claro que juro."


"Mas como você sabe que vou ser feliz?", Marta parecia ter dúvidas quanto ao futuro.


"Pela sua fisionomia, tenho certeza de que você vai ser feliz. Você possui uma face luminosa."


"Obrigada. Nunca conheci alguém que tivesse me dito isso."


"Fala sério? As pessoas por aqui não conseguem adivinhar quando alguém vai ser feliz?"


"Ah, acho que não. Muitas nem querem a felicidade dos outros."


"Fale-me sobre seu futuro marido. Como ele é?"


"É uma pessoa boa, interessante; é muito atencioso."


"Então, não há o que temer."


"Acho que não. Mas às vezes penso que o problema sou eu, sabe? Sou um tanto temerária."


"Não se preocupe. Ele saberá mantê-la. Os homens adoram temeridades."


Ele riu. Ela também. Permaneceram em silêncio por um longo tempo. Depois, ele tomou nas mãos a pedra que segurava o cordão da pipa. Pegou o cordão e fez alguns movimentos. O enorme papagaio mexeu-se no ar, pareceu que ia mergulhar, mas logo voltou à posição anterior.


"Já segurou uma pipa, alguma vez?"


"Quando era criança, acho."


"Segure, agora. Volte no tempo. Às vezes em alguns aspectos somos sempre crianças."


Marta segurou o cordão, tentou alguns movimentos. Ele a ajudou. Moveram juntos a pipa. Ela pode sentir o arfar do peito dele às suas costas. O homem era peludo. Ela sentiu uma grande vontade de abraçá-lo. Depois deixou novamente o cordão nas mãos dele, virou de frente, olhou diretamente seu rosto e sorriu.


"Dizem que os homens na noite anterior ao casamento fazem uma despedida de solteiro. É verdade?", ela.


"Os homens e também as mulheres, por que não?"


"Não me despedi. Tenho apenas duas amigas e elas estão viajando."


"Creio não haver problema. Você também pode se despedir da sua vida de solteira sozinha, pode namorar este mar, este céu, o sol."


"É, acho que posso."


"Onde vocês vão passar a lua de mel?"


"Vamos viajar para a Bahia."


"Que beleza, a Bahia. O melhor lugar do mundo. Sabia que houve um filósofo francês que sempre vinha à Bahia nas férias? Dizem que não saía de lá. Pena que ele morreu. Mas há outros estrangeiros que adoram a Bahia. Um longo e belo litoral. Muitas praias desertas, a água quente, sempre quente!"


"Vamos mergulhar?", perguntou Marta. "Não quero me despedir daqui porque vou voltar. Vamos continuar morando aqui por uns tempos."


"Ótimo. Entremos no mar", prendeu o cordão da pipa novamente na pedra, caminharam até à beira d'água e mergulharam. Nadaram mar adentro.
"Olhe", apontou ele à pipa, “está se movendo sozinha, de um lado a outro. Mas creio que continuará pairando acima de nós."


"Lembra que eu disse que sou temerária? Assim como sua pipa. Mas acho que vou conseguir ficar por cima. É sobre o casamento, sabe."


Nadaram mais um pouco. Ele ainda voltou-se para a pipa, observou que se mantinha aprumada. Sentiu então a mão de Marta a tocar-lhe o ombro, depois o peito. Voltou-se para ela. Ela sorria. Um sorriso luminoso.


Ambos se aprofundaram no mar bravio. Não pensaram que se distanciavam da costa. Preferiam aquelas águas agitadas. Talvez fosse mais fácil domá-las do que domar as intempéries provocadas pelo amor.


Naquela manhã se amaram. Ainda que apenas aquela vez.

sábado, outubro 09, 2010

Esqueça isso, sobre eleições

Desci para ir à banca de jornal. Era segunda de manhã. No meio do caminho, encontrei o Jofre.

“Oi”, falou quase me segurando por um dos braços, “já sabe o resultado das eleições?”

Fiz que não com a cabeça.

“Tanto sacrifício à toa, esses palhaços vão estar por cima por mais quatro anos.”

Eu não tinha visto a TV nem ouvido o rádio. Ia até a banca, mas também não era para saber sobre eleições. Até mesmo esqueci que tinha havido eleições.

“Lembra-se daquilo que lhe falei na última vez em que estivemos juntos?”

Não esperou que eu respondesse.

“Aconteceu exatamente o que eu temia.”

Fiz menção de continuar o meu caminho.

“Mas ouça, isso não pode ficar assim, são os mesmos que sofrem os que votam nesses caras. Acham que as coisas acontecem porque têm de acontecer.”

Fiz um movimento vago, que podia ser interpretado como concordância.

“Vai comprar o jornal?”, perguntou, “posso ir com você?”

“Fiquei vendo filmes até muito tarde, me esqueci de tudo.”

“Que filmes você assistiu?”

“Alguns que estavam na casa de meu pai. Fui até lá, ontem. Encontrei-os e resolvi trazê-los.”

“Vou até a banca com você.”

“Tudo bem. Sabe quem me procurou, na sexta?”

“Não.”

“O Reinaldo.”

“O Reinaldo?”, surpreendeu-se. “Não o vejo faz tempo. Acho que não tem aparecido por aqui. E o que ele queria?”

“Disse que ia fazer uma viagem, ficar fora por uns meses, não sei. Não acreditei muito na história dele.”

“O Reinaldo é uma pessoa estranha. Ninguém consegue entendê-lo. Certa vez, pensei que fosse viciado em algum tipo de droga. Mas nem pra isso ele serve. Bebe um pouco, fala umas besteiras e desaparece por uns tempos.”

“Acho você muito exigente com ele. Todos têm seus problemas.”

Tínhamos chegado à banca de jornal.

“Olhe só a cara do palhaço. Já colocaram a foto na primeira página. Esses jornais subservientes apoiam todos que lhes dão algum trocado.”

Olhei uma revista. Não era sobre política. Futilidades. Mas era o que me interessava. Peguei um exemplar e paguei ao dono da banca. Jofre me olhou enviesado. Mas nada falou.

“Vou tomar um café, em casa não tenho mais açúcar”, eu disse.

Atravessamos a rua e entramos no bar. Acabou me acompanhando. Em um canto, dois homens ainda conversavam sobre as eleições. Notei que Jofre esforçou-se para ouvi-los, mas logo desistiu. Bebemos nossos cafés. Pagou o dele e o meu.

“Vamos até lá em casa”, falei.

Tomei-o pelo braço e seguimos de volta. Pareceu animar-se, esboçou um ligeiro sorriso.

Quando entramos, abracei-o.

“Esqueça isso, sobre eleições, eles não vão conseguir reger nossas vidas”, terminei a última palavra e o beijei na boca.

Falou, quase em surdina:

“Não sei, Joana. Mas talvez você tenha razão.”

Recostamo-nos no sofá, ainda abraçados um ao outro.

sábado, setembro 25, 2010

Entre a paixão e o pensamento
Resenha do livro de poemas de Ronaldo Lima Lins

Mais do que a areia menos do que a pedra é o novo livro de Ronaldo Lima Lins. Conhecido ensaísta, romancista e professor de teoria literária da UFRJ, ele lança seu primeiro livro de poesia. Para quem já se acostumou à refinada prosa de reflexão presente tanto em seus romances como em seus livros de crítica da cultura, seus poemas não traem o pensamento filosófico do autor e contribuem para enriquecer o atual panorama da literatura em língua portuguesa.

Todo poeta certamente deseja que sua produção seja original e, ao mesmo tempo, apresente com maestria os temas que sempre frequentaram a alta literatura. Uma vez que a gênese do autor é a filosofia, teorias que discutem questões existenciais e/ou sociais, seu texto poético também parte do pensamento crítico. Mas nele não deixa de estar presente uma grande dose de emoção. Os poemas de Ronaldo Lima Lins sugerem que, para a consolidação do pensamento crítico, o autor precisa trafegar também na via da poesia. Sempre que as perspectivas de soluções engendradas pelo método ameaçam naufragar, a poesia surge plena de possibilidades, mostrando que na criação estética está uma das principais saídas para o ser humano. Isso não quer dizer que, além da prevalência do caráter estético, poemas não levariam o homem a um novo patamar de indagações. Talvez aqueles que no decorrer da vida conseguiram atingir a maturidade nas suas reflexões tenham percebido que a poesia é a forma que nos resta para tentar uma espécie de salvaguarda existencial, a partir do momento em que caíram por terra muitas das perspectivas filosóficas.
O poema é uma construção estética que não tem compromisso com a explicação de sistemas nem com a apresentação de respostas. Sua necessidade estaria no fato de o poeta captar o “eu” dilacerado do ser humano para que, através desta arte feita de palavras, rearticulasse a humanidade perdida.

A filiação literária de Lima Lins remonta aos trovadores, navega nas mesmas águas de Camões, passa ao longo da modernidade por Baudelaire. Na literatura brasileira, estão presentes, como também afiança o prefaciador J. M. Neistein, Augusto dos Anjos, Carlos Drummond de Andrade e mais discretamente João Cabral de Melo Neto. Da filosofia, dentre muitos autores – difícil enumerar todos eles – , percebe-se a forte presença da teoria crítica. Adorno foi um autor que fez a crítica da cultura através da arte. Ronaldo Lima Lins segue seus passos, somando sua visão de mundo bastante pessoal.

O livro é dividido em três partes: “Mais do que a areia menos do que a pedra”; “O direito pelo avesso o avesso pelo direito”; e “Chegar para partir”.
Já na epígrafe de Victor Hugo, é anunciada a proposta poética do professor Ronaldo: “Pois a poesia verdadeira, a poesia completa, está na harmonia dos contrários”. Sua construção poética vai gravitar na tensão imanente em que trafega a própria literatura: forma e conteúdo, metonímia e metáfora, antíteses, paradoxos, diálogos entre os temas da literatura e da filosofia, diálogos com outros autores e, enfim, a dialética da dor e de uma espécie de esperança, que somente a arte poderia acalentar.

Na abertura, o poema “Odores” apresenta os sentidos não em oposição ao espírito, à imaginação, à memória ou ao sonho, mas como meio de despertá-los. “Algumas lembranças surgem / perfumadas. / Evocam momentos. / Eternizam instantes”. Mais adiante: “Se fosse possível / construir/ um sonho, / eu / começaria abrindo esse frasco / De magia.” Resta a possibilidade de tentar a palavra impossível, o sonho de todo poeta: “deixaria que os odores me viessem / com tudo / que não pode ser dito. / Só com eles atingiria o infinito. [...] Lá onde o sol não se põe / e as estrelas cintilam no horizonte.”

O poema “Chocolates de Pessoa” retoma Fernando Pessoa de uma forma lúdica, e mostra “os ideais traídos”: “Os chocolates de Pessoa / têm um sabor amargo. / Não se dissolvem na boca, / não lembram festas juninas. / [...] São doces da maturidade / cozidos com ingredientes / exóticos entre pitadas de / sal e frutos da consciência. / Formam navios à deriva de / navegações sem farol sobre os / mares em fúria de ideais traídos.”

Em “O momento”, o autor descobre que somente a paixão é capaz de movê-lo, e isto se dá através de um aparente paradoxo, a observação de uma escultura: “Um beijo de mármore / de uma estátua de Rodin / roubou-me / do veneno da / paralisia.”

Dois poemas, na parte final, são bastante representativos ao apresentar uma realidade que não acontece ao acaso e que exige do ser humano o cumprimento do seu papel no vasto teatro do mundo. São eles “Catástrofes” e “Ouvir tambores”. Eis alguns versos do primeiro: “Catástrofe / é o que se dá / quando um mundo desaba / e leva a vida de roldão. / Os homens / são arquitetos, / vanguarda da sua ação. / Armados marcham, / queimam e devastam / o que lhes impede o caminho. / [...] Homens que se afastaram / por um tempo, / ao voltar, / encontraram ruínas: / casas, ruas, famílias, / templos e credos / sob escombros. / Quase desmoronaram. / Mas um deles, / com argamassa / e pá de pedreiro, / começou a empilhar os tijolos. / Não dizia nada: agia. / Outros o acompanharam. Uma febre.”

No segundo poema há, no início, o chamado através do bater de tambores: “Ouvi tambores. / Eles batiam sincopados, / como se me chamassem. / Tum! Tum! Tum.” Uma série de vidas, toda uma tradição visita o poeta: “Fisionomias conhecidas, / que me visitavam, / com gestos / e movimentos de corpo, / montavam um teatro / que só existia para mim. / Tum! Tum! Tum! [...] Escorreguei / num fio de esperança. / Senti que caía / numa rede de distâncias / e aproximações. / À maneira de um trapezista, / com um passo em falso, / num clamor de espanto / voei para o abismo.” No final é a consciência que irá predominar, ainda que despertada pelos sentidos: “Um gosto / de morangos silvestres / despertou meu paladar. / Tum! Tum! Tum!” Enfim, o poeta encontra uma porta para ao menos um sinal de salvação, que, na verdade, está no pensamento e nele mesmo: “O pensamento que me ocorre / é mais duro, mais forte / e mais definitivo do que eu.”

Talvez a poesia seja isso: tambores. Uma espécie de chamado que desperta e procura na dialética entre as paixões e o pensamento uma síntese do humano.

Mais do que a areia menos do que a pedra
Ronaldo Lima Lins
7 Letras
281 páginas

segunda-feira, agosto 23, 2010

A bordo da Vespúcia(18/08/2010)
por Haron Gamal

Vespúcia do Sul, de Paulo de Paiva Serran, é um livro de aventuras. O narrador é um jornalista que vive constantemente na corda bamba, ameaçado de perder o emprego.Ao começar a contar sua história, diz: "Lá pela virada do milênio, quando eu tinha tudo na vida. Emprego, namorada, dinheiro, carro, eu tinha tudo.Menos vida".

A partir desse narrador decaído, que nos lembra detetives de romances noir, vamos saber a história de Emanuel, um velho caçador de tesouros, fanático por relatos de naufrágios. A narrativa se inicia em Cabo Frio, passa pelo Rio, depois segue para Pernambuco, aonde o personagem viaja com o intuito de produzir matéria sobre artes plásticas mas acaba investigando a suposta morte do velho capitão da embarcação Vespúcia do Sul.

O enigmático nome surge em homenagem a um dos primeiros desbravadores da costa brasileira, Américo Vespúcio. O continente, segundo Emanuel, deveria ter o mesmo nome do seu barco, porque, em todas as ocasiões, o sobrenome prevalece: "Pra começar: por que diabos América e não Vespúcia? Afinal de contas, não é Cristóvia, mas Colômbia. Não é Pedrália, mas Cabrália. O estreito é de Magalhães, e não de Fernão. Vespúcia combina muito mais e soa muito melhor!".

Na verdade Emanuel está atrás do tesouro que, segundo a lenda, vinha numa das naus da mesma expedição em que viajava Vespúcio, a nau capitaneada por Gonçalo Coelho, que naufragou nas proximidades de Fernando de Noronha. O tesouro, que estaria na nau capitânia, foi transladado para a nau de Vespúcio. Este, continuando a navegação rumo ao sul, teria costeado Cabo Frio e ancorado. Ali, teria desembarcado as peças valiosas dentro de uma arca e a enterrado nas imediações da antiga feitoria.

O autor segue a trilha aberta por Stevenson no clássico A ilha do tesouro, romance também de aventuras no mar em que o narrador Jim Hawkins passa por sérios perigos até alcançar seu objetivo. Em Vespúcia do Sul, João parte em busca não propriamente de um tesouro, mas de uma boa história capaz de lhe render algum lucro e de mantê-lo empregado no jornal. Na literatura brasileira, o périplo aberto por Stevenson encontra ressonância na obra do escritor brasileiro de nome dinamarquês Per Johns, sobretudo no livro Aves de Cassandra, ao qual o livro de Serran se filia.

Uma outra via que se pode seguir é a do romance noir, devido às peripécias vividas pelo narrador ao viajar para o Nordeste. A princípio, vai com o objetivo de fazer uma espécie de documentário sobre o artista plástico Francisco Brennand, mas casualmente se depara com um dos tripulantes que teria morrido no naufrágio da Vespúcia do Sul.Neste trecho da narrativa, ele vai se deparar com bandidos, prostitutas, pederastas, um menor infrator e até com uma senhora mafiosa que o intimará a deixar o Recife, caso não queira perder a vida. Não fica de fora o envolvimento amoroso, que acontece com Lindinha, mulher fatal, namorada e amante de vários outros personagens nada recomendáveis.

Vespúcia do Sul, segundo livro de Paulo de Paiva Serran, mostra a habilidade do autor em contar histórias com toda a riqueza que elas podem proporcionar, sendo estas tanto de extração histórica, de aventuras - devido às peripécias de Emanuel em busca de tesouros perdidos - de naufrágios, ou mesmo de natureza policial, o que move o fracassado jornalista ao perceber que os estranhos acontecimentos vivenciados por ele podem render uma boa reportagem.É bom deixar o restante como surpresa a ser descoberta pelo próprio leitor.

Também são dignos de louvor o cuidado gráfico e o fino acabamento editorial que o livro apresenta.

Fonte: Jornal do Brasil

terça-feira, julho 20, 2010

Obras de Frank Wedekind revelam conflitos e anseios da adolescência

Haron Gamal*, Jornal do Brasil

RIO - No posfácio à edição brasileira de O despertar da primavera, escreve Marcus Tulius Franco Morais: “No drama, jovens desabrocham para a primavera dos sentidos e se amam no seio de uma paisagem onírica, opondo-se aos preconceitos e ao conservadorismo das instituições”. Na época predominava o naturalismo, mas o dramaturgo conseguiu, através de seu texto teatral, introduzir a discussão sobre o despertar da sexualidade nos jovens e sobre a consequente repressão a que esta discussão era submetida. O esperado debate que a peça desencadeou foi duramente reprimido, ficando o autor durante muito tempo sem poder encená-la. O texto de Wedekind, escrito entre o final de 1890 e a Páscoa de 1891, foi visto como algo capaz de abalar as instituições e a autoridade.

Inspirada na própria vida do autor, que não viveria para gozar o título de um dos mais populares dramaturgos da Alemanha, a peça aborda o percurso dos adolescentes Melchior, Wendla, Moritz, Otto, Robert, Zirschnitz, Röbel, Lämmermeier, Bessel, Thea e Ilse, e é composta quase que inteiramente de diálogos entre eles. Estão presentes suas instabilidades psicológicas em consequência da chegada da puberdade, idealizações e angústias. Aparecem também, como personagens, os pais de alguns deles e os professores, todos extremamente repressores. Frank Wedekind, quando adolescente, teve dois amigos que se suicidaram, tendo prometido a um deles contar sua história. É o que faz através do texto. Moritz Stiefel não consegue viver sua identidade sexual, atravessa vários tipos de conflitos e acaba por suicidar-se. Melchior Garbor também quase se suicida, mas é salvo no final por um personagem simbólico chamado de o Homem Disfarçado. Wendla, uma menina de apenas 14 anos, morre em decorrência de um aborto.

A peça, que já foi encenada várias vezes nos palcos brasileiros – a mais recente delas em forma de musical, com direito à polêmica da aparição do seio da atriz Malu Rodrigues, de 16 anos – possui três atos com cinco cenas no primeiro, e sete no segundo e terceiro. Wedekind quando a escreveu chamou-a de “tragédia infantil”.

Mine-Haha, que tem como subtítulo Sobre a educação corporal das meninas, inicialmente foi escrito para ser um romance, mas seu texto não chegou aos dias de hoje. Em 1903, Wedekind publicou-o como um conto, com três capítulos e mais uma pequena peça denominada o “Príncipe dos mosquitos”, que passou a integrar também o texto. Na edição brasileira, tem 60 páginas. O texto é apresentado como se Wedekind fosse, na verdade, o editor. A autoria do manuscrito é atribuída a uma senhora que, prestes a morrer, o entrega a ele. Ela conta seus primeiros anos de vida, passados num parque, onde vários grupos de meninas e meninos são criados, e toda a educação é voltada para o corpo. Em momento algum há menção a respeito da educação intelectual. Também não se fala sobre pais e mães. Na maioria das vezes, as crianças chegam ali bem pequenas e dentro de uma caixa. Elas cuidam uma das outras, sob supervisão de uma criança mais velha. A partir de determinada idade os meninos são separados das meninas. Estas são educadas fazendo constantes exercícios físicos, aprendem acrobacias e a tocar instrumentos musicais. Próximas da adolescência, trabalham num teatro, único meio de se relacionarem com o mundo. O texto também é simbólico, transparecendo a lascívia dos frequentadores do teatro quando observam sugestões de cenas de sexo ou de sadomasoquismo.

Wedekind denuncia neste texto a exploração a que são submetidas principalmente as meninas, que vivem uma situação de quase servidão. O final é enigmático. Saindo do local pela primeira vez ao chegarem à adolescência, são apresentadas ao mundo formando pares com os meninos que conhecem naquele instante, e sob a expectativa de uma multidão eufórica.

Tanto em Despertar... como em Mine-Haha o que se percebe é a preocupação constante do autor com a consciência do estar-no-mundo das crianças e dos adolescentes, suas primeiras manifestações da sexualidade e a repressão e exploração a que são submetidos por intermédio dos adultos.

À primeira vista, pode parecer que os textos são datados e que se tornaram anacrônicos. Caso se consiga perceber que crianças e adolescentes ainda se autodestroem, enxergaremos uma mordaz crítica ao neoconservadorismo dos dias de hoje, fundamentado nas religiões, no preconceito social ou mesmo num suposto cuidado com a saúde. Não só a sexualidade continua submetida ao controle do poder, mas todo um modo de vida. Ao invés de negar e reprimir assuntos que dizem respeito à sexualidade, como nos dias em que viveu Wedekind, nega-se hoje o esclarecimento sobre os mecanismos perversos de perpetuação da ideologia, expondo-se crianças e adolescentes ao lixo cultural, fruto do mais acirrado meio de incentivo à violência: a voracidade desenfreada do capital.

* Professor e doutor em literatura brasileira pela UFRJ