quinta-feira, abril 22, 2010

O drama de todos nós

Talvez o drama de todo poeta seja o mesmo: como transformar seu drama particular, talvez drama de todos, em poesia? Carlito Azevedo, em Monodrama, não deixa de nos remeter a tal reflexão. Ganhador do prêmio Jabuti em seu primeiro livro, o poeta carioca trafega pelo poético no seu mais recente (quinto) livro, conseguindo a mais alta afirmação. Com vinhetas com os dizeres rêve générale, o texto transita entre a constatação da realidade e a metafísica, como em Paraíso: “foi quando a luz / voltou e vimos / o rosto da jovem / que se picava junto / à mureta do Aterro, / a camiseta salpicada, / a seringa suja. / ‘Nenhum poema é mais difícil do que sua época’, / você disse / em meu ouvido / sem que eu soubesse / se era a ela que se / referia ou se ao livro / que passava das mãos / pra o bolso da jaqueta”. Num outro poema se fazem presentes o desejo e a excitação de um segurança por uma jovem de seios grandes: “a jovem / olhos de guepardo / leitora de Rilke / seios grandes / Entre tantos / manifestantes / é ela que arranca / a primeira / ereção do dia / do segurança / de óculos espelhados”.

Ora o poeta apresenta partes que se subdividem em vários pequenos poemas, os quais mantêm a coesão com os títulos, como em Emblema, O tubo, Dois estrangeiros, Margens e, sobretudo, em Monodrama, que dá título ao livro; ora sua voz ecoa em poemas isolados. Sempre, no entanto, mantendo o diálogo com a linha temática estabelecida pelos trechos que se intercalam, sobressaindo-se poemas como Garota com xilofone, As metamorfoses, Conto da galinha, Pequenas humilhações diárias e O anjo boxeador.

Uma característica da poesia contemporânea, que teve início ainda no século XIX e se fortaleceu com o Modernismo, é a demasiada aproximação tanto da temática como das palavras ao cotidiano. Como tornar poético aquilo que vemos e que vivemos no dia a dia? Como tornar mágicas as palavras que usamos na linguagem diária, linguagem banalizada pela pequenez de nossos afazeres? Carlito consegue transformar a língua corriqueira na mais alta expressão, intensificando o limite de tensão entre vocábulos, remetendo enunciação e enunciado a patamares sobre os quais poderíamos perguntar: o poeta tornou poética sua rua, seu bairro e arredores ou conseguiu tirar do inefável a poesia que sempre existiu ao seu lado? Um exemplo interessante há no poema “Purgatório”: “você lembra? / tínhamos dado no / máximo uns vinte / passos sobre o morro – / se abriu um buraco / no meio das nuvens, / um tubo ou coisa assim, / que trouxe até nós, / de cima: / o sol, brilhando / com os seus cem sóis, / e de baixo: / o fundo do abismo, / a cidade, / o torvelinho, / o renque de palmeiras / de alguma rua / irreconhecível / ao menos para mim”.

A resistência contraideológica da tradição poética em língua portuguesa não deixa de estar presente no poema “Drummond”: “Sabe que nada mais agora / poderá mover sua poesia. / Cruza a avenida Rio Branco, o Aterro, / a enseada, o túnel do Pasmado / (do mundo caduco, é a parte / que mais lhe agrada)./ Nem o vestido de flores da / filha do tipógrafo, nem os / pássaros de fogo que dele / partiam de vez em quando / (tudo perdido num antigo / crepúsculo itabirano)”. O gauchismo do poeta de Itabira é reforçado e coroado por Carlito Azevedo no verso: “havia um melro no alto / do muro de cantaria negra”.

Comovente a parte final do livro denominada “H”, em que o eu poético retrata seu drama particular: a morte da própria mãe e a consequente solidão em que se vê mergulhado. Por meio de um texto em prosa, difícil de definir a que gênero pertence, o relato, no entanto, em momento algum soa piegas:

“Passeio agora pela mesma casa de minha infância, adolescência e vida adulta, consolado pela idéia do descanso que ela [sua mãe] terá de agora em diante. Sem precisar de ajuda para levantar da cama, sem precisar de ajuda para tomar banho, sem precisar de ajuda para limpar a própria merda. Passeio pela mesma casa de então, do quarto para a sala, da sala para a cozinha, da cozinha para o quarto e assim por diante, mas começo lentamente a perceber um sinal que me alarma: não tenho nenhum controle sobre meus passos e me será impossível parar de caminhar do quarto para a sala, da sala para a cozinha, da cozinha para o quarto e assim por diante por decisão própria. A cada volta observo com cada vez mais apreensão as paredes, não sei se pelo temor de que me faltem a qualquer momento ou de que comecem a se estreitar sobre mim. Descubro desse modo bem cruel que não é assim tão fácil livrar-me de um medo que vem sendo o meu medo absoluto desde os quatro anos de idade”.

Mais adiante, para encerrar, há referência à literatura como tábua de salvação: “Venho escrever por medo de perder a razão, não pelo estardalhaço dos nervos, que não há, mas pelo seu contrário e sinuoso, a idiotia. Sinto que se conseguir escrever agora o que se passa comigo estarei salvo”.

Talvez seja isso, o poeta a sobreviver ao seu drama através da escrita. E nós, como leitores, ao experimentar o abandono e solidão em que ele se encontra, percebemos o drama em que todos nos irmanamos. Uma maneira também de nos salvar.

Monodrama

Carlito Azevedo

7 Letras, 152 páginas